Política

O falso Khadafi no cadafalso


Tudo
começou no Egito em que multidões nas praças, em protestos pacíficos, exigiam a
renúncia do ditador Moubarak, há mais de vinte anos no poder, e a imediata
abertura de eleições. À primeira vista,
parecia um fenômeno puramente local.

Mas, simultaneamente,
em outros países islâmicos de etnia árabe, como a Tunísia e o Iêmen, houve
protestos contra os respectivos ditadores de seus regimes teocráticos
abençoados por Allah.

Parecia
que, num mundo globalizado sob a forte influência da Internet, os países
islâmicos árabes tinham finalmente despertado de seu sono letárgico, com seus
povos passando a exigir regimes democráticos.

Mas isso não
passava de uma aparência enganosa. O fato de terem se rebelado contra
governantes tirânicos não implicava que desejassem regimes democráticos, mas
sim que estavam insatisfeitos com seus líderes no poder e queriam substituí-los
por outros. Seu conhecimento sobre a democracia talvez se resuma a apenas um
dos seus componentes: eleições para um novo governante.

Ora, no
Iraque havia eleições com vários candidatos e Saddam Hussein do Partido Baat costumava
ser eleito com 100% dos votos. É preciso acrescentar que o voto era aberto e
era registrado o nome de quem votou em quem. Assim era a “democracia” do Iraque: uma
democracia de araque.

Um pouco
menos contundente foi o reinado mexicano do PRI (Partido Revolucionário
Institucional) – uma verdadeira contradictio in adjectio! – que permaneceu no poder durante 70 anos, sendo
eleito e reeleito, graças a uma poderosa rede de corrupção eleitoral.

No Egito
dos antigos faraós, após alguma relutância, Moubarak renunciou e os militares
assumiram o poder, “provisoriamente”, prometendo eleições em setembro, como já
estava legalmente previsto pelo calendário eleitoral.

As
agitações continuaram nos demais países, sendo que na Líbia ocorreu algo mais
contundente: grupos de guerrilheiros, de desconhecida orientação política, iniciaram
guerrilhas contra o ditador e chegaram a tomar algumas cidades longe da capital
do país, Trípoli, a fortaleza de Khadafi.

Também há
mais de vinte anos no poder, Muammar Khadafi era um violento antiocidentalista
e antiamericanista, responsável pelo atentado terrorista em Lockerby (Escócia) que
derrubou um avião matando centenas de “infiéis”, i.e. não-seguidores de Allah e
de seu profeta, Maomé.

Porém, nos
últimos anos, ele se esquecera das patacoadas que havia escrito no seu Livro Verde – sob a inspiração do livro
do mesmo nome do ayatolah Komeyni do Irã – e desapareceu das manchetes dos
jornais. Dizem que ficou dando milho aos pombos…

Estava
até fazendo bons negócios com a Europa e os Estados Unidos, principalmente com
Berlusconi, Primeiro-Ministro da Itália. E ao mesmo tempo, continha a grande
massa de imigrantes para a Itália – multidões de líbios e de outros países
pobres do norte da África, que costumavam fazer escala na Ilha de Lampedusa,
possessão italiana, verdadeira porta da “invasão dos bárbaros”, segundo a feliz
expressão de Guy Sorman.

A guerra
civil recrudesceu e muitos civis estavam sendo vítimas da mesma. Foi aí então
que a ONU – aquele ninho de burocratas corporativistas – tomou uma decisão
simplesmente desastrosa:

Permitiu
que tropas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) sob a liderança
confusa dos Estados Unidos, Reino Unido, França e Itália invadissem a Líbia,
não por terra nem por mar, mas sim violando o espaço aéreo líbio, tendo por
finalidade criar uma zona de exclusão aérea, de modo que os aviões de Khadafi
não pudessem bombardear cidades sob o poder dos guerrilheiros líbios.

A
justificativa para tal medida radical era de que, com ela, estariam evitando
muitas mortes de membros da população civil. Será que conseguiriam mesmo realizar
o prometido?

Tal
justificativa poderia ser aceita, caso a Líbia tivesse invadido ou sido
invadida por outro país, mas nunca no caso de uma guerra civil de líbios contra
líbios. Ora, se eles querem se matar que se matem, ninguém tem nada a ver com
isso! Caindo no popular: em briga de marido e mulher, ninguém deve meter a
colher!

Tal
medida da ONU é na realidade um grave desrespeito à soberania de um país! Imaginemos
que amanhã um ou mais Estados da Federação de um país como o Brasil pegassem em
armas contra um governo tirânico, como realmente é o de Khadafi. Justificaria
isso uma intervenção da ONU numa questão interna que diz respeito ao Brasil e
unicamente aos brasileiros?

As
esquerdas no mundo todo fizeram protestos contra a invasão da Líbia dizendo que
se tratava de uma recolonização daquele país ambicionando o precioso ouro
negro, o petróleo. Já expressei meu protesto contra a invasão, porém por
diferente razão: a inaceitável violação da soberania de um país sobre seu
território.

Acontece
que nos últimos anos os burocratas da ONU – apoiados pelos chefes de governo e
líderes políticos de alguns países – têm se nutrido de uma perigosa utopia: a
do “governo mundial”, extrapolando assim suas atribuições legais que consistem
em mediar conflitos entre as nações em busca de soluções diplomáticas e
promover a paz no mundo.

O que
assistimos agora é um erro podendo ter drásticas consequências. Sarkozi, com
olho nas próximas eleições na França e Berlusconi , preocupado com seus
negócios particulares com Khadafi, não conseguem se entender quanto ao comando
das operações. O estadista italiano chegou mesmo a ter um atrito com o francês,
dizendo que este pensava que era “dono do Mediterrâneo”…

E para
piorar as coisas, os aliados decidiram fornecer melhores armas aos
guerrilheiros líbios e já estão querendo fazer invasões do território líbio
desembarcando fuzileiros e despejando paraquedistas.

Será que
os governantes desses países nutrem a tola idéia de que os muçulmanos desejam
agora algo que nunca desejaram: trocar seus regimes teocráticos, em que seus
emires e califas reinam pela vontade de Allah (direito divino), por regimes
democráticos?! Isso não passa de uma visão extremamente equivocada da visão de
mundo e da cultura islâmica, que ainda não chegou ao Iluminismo, permanecendo
ainda na Idade Média.

Os
americanos, particularmente, como vivem há séculos numa cultura democrática –
sem conflitos internos desde a Guerra de Secessão, pensam que a democracia é
alguma fazendo parte da natureza humana e que todos os povos -independentemente
de suas arraigadas tradições fortemente autoritárias – podem se transformar em
democracias da noite para o dia. Ledo engano!

Tal coisa
consegue ser ainda mais tola do que a idéia disseminada pelas esquerdas no
Brasil: a de que Marighela, Lamarca e outros líderes guerrilheiros – entre seus
membros a companheira Estella do Var-Palmares, hoje presidente da República –
lutavam contra a ditadura militar e pela democracia. Só se fosse a “democracia”
estabelecida em Cuba pelo Coma Andante Fidel Castro!

Além
disso, ninguém sabe dizer qual a ideologia política desses grupos de
guerrilheiros que se revoltaram contra a tirania de Khadafi. Como esses países
muçulmanos árabes não possuem uma cultura democrática, nem sequer sociedades
civis organizadas, eles só podem ser adeptos do fundamentalismo islâmico, com
seus membros arregimentados só esperando a hora de dar o ar de sua graça e
tomar o poder.

Não
ficarei nem um pouco surpreso se amanhã for descoberto que quem está por trás
desses tumultos nos países muçulmanos e dessa guerrilha líbia é Al Kaeda do famigerado Osama Bin Laden
que, ainda que tenha morrido, está mais vivo do que nunca na memória e na
veneração dos fundamentalistas.

Isto não
é nenhum delírio de uma teoria conspiracionista: é coisa bastante provável,
principalmente quando levamos em consideração o ardente desejo de Bin Laden e
seus acólitos de criar um novo Irã com um cão raivoso como Ahmadinejad lançando
imprecações e ameaças contra “o Grande Satã”, i.e. a cultura ocidental civilizada
que há séculos separou o Estado da religião, talvez um dos primeiros passos na
formação da democracia moderna.

Mais
recentemente, na Costa do Marfim (África Ocidental), a ONU cometeu o mesmo erro
antes cometido na Líbia. Neste país, o presidente eleito, Alessane Quattara,
não pode assumir, porque o ex-presidente derrotado nas urnas, Laurent Gbagbo, movimentou
tropas contra ele e o sitiou no palácio na capital em Abdjã.

Como a
Costa do Marfim é uma ex-colônia francesa e a França possui uma base militar
próxima de Abdjã, a ONU permitiu que as Forças Armadas francesas marchassem em
defesa de Quattara, quando os dois lados travavam negociações há quatro meses.

Como
membro permanente do Conselho de Segurança da ONU – o sonho dourado de Lula e
Celso Amorim! – a Rússia foi contra questionando a legalidade da invasão
francesa com o aval da ONU, assim como antes havia questionado a invasão da
Líbia. E por mais que gostemos de fazer,
não podemos discordar da Rússia.

Em uma matéria
sobre o assunto, a Folha de São Paulo (6/4/2011) fez o seguinte comentário: “Tanto o ataque em Abdjã quanto a zona de
exclusão na Líbia são frutos da doutrina ‘responsabilidade de proteger’, que
estabelece que a comunidade internacional deve agir quando um Estado falha em
cuidar da população”.

Que é
isso?! A que ponto chegou a globalização da imbecilidade?! Por acaso, nações
soberanas estão na mesma condição que menores de idade, silvícolas
não-aculturados e/ou débeis mentais, irresponsáveis e inimputáveis exigindo a
tutela de um super-Estado – a ONU – que, sob a pífia alegação de uma
“responsabilidade de proteger”, pratica um abominável intervencionismo em
assuntos internos das nações?!

Abaixo o
intervencionismo e o paternalismo desse ninho de burocratas corporativistas que
enganam os beócios e os ingênuos com o sonho de um mundo melhor sob o comando
de um “governo mundial”! Só se for o de Big
Brother
, o tirano supercontrolador de 1984 de George Orwell!

* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor
Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do
ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de
Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF,
Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima
Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da
Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso
Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação
Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS,
Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói,
1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século
XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber,
Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil
(Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já
apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos.
Atualmente tem escrito regularmente artigos para
www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para
www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. O falso Khadafi no cadafalso. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/o-falso-khadafi-no-cadafalso/ Acesso em: 28 jul. 2025