O dia em que Sócrates ressuscitou
Mario Guerreiro
Por uma dessas estranhezas da natureza, coisa que só costuma ocorrer uma vez em 5.000 anos, um belo dia Sócrates ressuscitou e não se sabe por que cargas d’água foi parar justamente no Brasil.
Ficou muito impressionado com o tamanho do país, sua diversidade zoológica e psicopatológica, bem como com constantes epidemias de esquerdopatia galopante. Pensou com seus botões: “Será que o regime deste país é uma democracia como a de Atenas? Será que aqui também existem sofistas preparando os jovens para exercer cargos públicos? Será que neste país existe Filosofia ou algo que a ela se assemelhe?”
Essas foram algumas das questões que Sócrates – só para não perder o hábito e acabar deixando de ser o que sempre foi – colocou para si mesmo numa praia deserta da Bahia, local onde, tal qual Cabral, aportou nestas plagas. Por uma dessas incríveis coincidências era um ano eleitoral: vários candidatos disputavam quem seria o Mandão da Bruzundanga, perdão: o Presidente do Brasil. Assim sendo, Sócrates quis saber como era o processo eleitoral.
Pensou que os candidatos faziam comícios em praças públicas e que não representavam ninguém, a não ser eles próprios. Mas logo descobriu que não se tratava de uma democracia direta como a ateniense, porém que os candidatos eleitos o eram para representar os interesses do povo, não seus próprios interesses. Quanto aos comícios, dado o grande número de eleitores, eram feitos na televisão. Desse modo, Sócrates foi apresentado a este moderno meio de comunicação. Ficou muito impressionado! Chegou mesmo a concluir que nunca tantos viram e ouviram tantas asneiras ditas por tão poucos e enviadas no ar para tão longe! E olha que ele nem chegou a assistir ao Big Brother da TV Globo…
Mas foi aí que ele colocou outra questão: Se existem candidatos, devem existir sofistas preparando os mesmos para conquistar, a qualquer preço, os ambicionados votos dos eleitores. Perguntando aqui e ali, disseram a ele que a função que mais se parecia com a do sofista era a do marqueteiro político. Sócrates começou a fazer então algumas perguntas tais como: “Cobra ele um bom preço pelos serviços prestados?” Disseram-lhe que sim e que isto era apenas uma parte ínfima dos custos de uma campanha cujo dinheiro tinha de ser depositados num paraíso fiscal. Só não disseram onde ficava e quem financiava a campanha eleitoral por baixo do pano.
Como muitas eram as diferenças entre a democracia ateniense e a brasileira, Sócrates quis saber em detalhes o que fazia o marqueteiro. Disseram a ele que as últimas coisas em que ele estava interessado eram as idéias políticas de seu cliente. Sócrates não se mostrou minimamente surpreso, pois os sofistas também eram assim. A única coisa que lhes interessava era fazer com que seu cliente angariasse o maior número de votos possível. Como, na democracia ateniense, apresentação de idéias políticas nunca elegeu ninguém, a não ser Péricles, Sócrates foi levado a pensar que naquela terra estranha também devia ser assim. Só estava faltando descobrir quem era o Péricles brasileiro, se é que existia um.
Como sua curiosidade era algo insaciável, perguntou como eram os modos de um marqueteiro preparar seu cliente, para que este vencesse uma eleição. Disseram que a primeira coisa, a mais importante de todas, prioridade das prioridades, era a aparência audiovisual, ou seja: o candidato a Presidente não podia aparecer na tela de TV vestido como operário ou estudante, de jeans surrada e desbotada, T-shirt básica e sandálias havaianas. Isto era traje apropriado para líder estudantil ou líder sindical nos inícios de suas promissoras carreiras…
Devia despontar envergando um elegante terno Armani e sóbria gravata italiana de seda pura. O candidato não podia aparecer barbado, dando a impressão de falta de asseio e desleixo. Mas se fosse barbudo e caso se recusasse raspar a honorável barba, devia ao menos afeitá-la bem curtinha, para dar impressão de limpeza – ainda que limpo mesmo não fosse por natureza. E tivesse ele cabelos crespos, um alisamento japonês seria considerado de bom alvitre.
Além disso, certos cuidados com a fala eram exigidos. Se o candidato tivesse língua presa ou outros defeitos quaisquer de fonação, devia fazer tratamento intensivo com uma boa fonoaudióloga, para a dicção ficar tão justa e perfeita quanto o SUS, que, como todos sabem, está a um passo da perfeição, como, de resto, declarou o preclaro Supremo Manda Otário da Nação.
Mas não era somente o aspecto fisiológico da fala que exigia cuidados especiais, sua forma gramatical também. Deviam ser corrigidos todos aqueles erros de português e cacoetes verbais que denunciassem incultura ou baixa extração social, que nem “tauba”, “ôtôridadi” e “isso vareia de conforme aquilo” ou como no caso daquela moçoila de My Fair Lady, aos cuidados do professor Doolittle, que não conseguia pronunciar corretamente: The rain in Spain stays mainlly in the plain, a não ser com a pronúncia do cockney dos subúrbios londrinos * . Foi aí que Sócrates perguntou se eles não tinham um mínimo de preocupação com o conteúdo da fala de um candidato-cliente.
Eles lhe disseram que sim, obviamente. O candidato devia tomar o maior cuidado para não expelir palavras-fracasso e para rechear seus discursos com palavras-sucesso. Como Sócrates nunca tinha ouvido falar nesses tipos de palavra, perguntou imediatamente de se tratava.
E a resposta veio batida: Algo que nada tem a ver com o significado das palavras. Aliás, no discurso do político brasileiro, o significado não tem a menor importância. Tudo o que importa é a impressão causada no psiquismo do eleitor proveniente de um eleitorado composto de 90% de apedeutas, alienados e corruptos. Tal representado, tal representante! Tweedledee, Tweedledun! Cara d’um, focinho d’outro! Representados etíopes não podem exigir representantes finlandeses [por razões que não são de cunho racial, nem muito menos geográfico, porém cultural e político].
Por exemplo: “elite” é uma palavra-fracasso, ao passo que “igualdade” é uma palavra-sucesso. Como Sócrates insistiu muito, apresentaram-lhe uma pequena lista d’algumas palavras-sucesso e algumas palavras-fracasso.
palavras-sucesso palavras-fracasso
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socialismo ….. …………………………….. concorrência empresarial
coletivo ………………………………… …. individual
aluno com carência afetiva ………….. .. aluno de baixo Q.I
comunidade ………………………………….. favela
competição esportiva ……………………. competição no mercado
pessoas com necessidades especiais…. deficientes físicos
progressista ………………………………….. conservador
amigo do povo …………………………….. elitista
direitos trabalhistas…………………………. deveres do trabalhador
de esquerda …………………………………. de direita
etc. usw.
Diante dessas e d’outras, Sócrates acabou chegando à conclusão de que se tratava da Terra do Eufemismo e do Chavão povoada por um povo padecendo gravemente de epistemofobia e corruptofilia crônicas. Aliás, 90% da população nem sabe as doenças que têm… Arre égua! Barbaridade, tchê! Ô louco, meu! Que trem doido, sô! Ta variando, meu rei?! É mole ou quer mais, gente boa?!
* Em Londres, três tipos de inglês correntemente falados denunciam a classe social do falante: (1) royal English (fala típica da aristocracia), (2) common English (fala típica da classe média) e (3) cockney (fala típica da classe pobre). Não estamos levando em consideração o inglês falado por imigrantes, tal como o Indian-English e o African-English, etc
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