Dia 31 de agosto de 2016 foi um dia histórico para a República Federativa do Brasil, exatamente como foi um outro dia 31, em março de 1964. Em ambas as datas houve uma ruptura institucional gravíssima (vale a redundância…). Daquela vez, os civis utilizaram-se do auxílio decisivo dos militares e, em conluio, também derrubaram um Governo legítimo. Nesta segunda vez, não foi preciso valer-se das Forças Armadas, mas, de toda maneira, ontem como hoje, houve um golpe de Estado e, mais uma vez, foi derrubado um Governo eleito de forma democrática.
Nada obstante, uma coisa é certa: se hoje não perdoamos os golpistas de ontem, certamente mais tarde as novas gerações não perdoarão os golpistas de hoje (e eles sabem disso…). Aliás, a História não os perdoará. Os seus filhos e netos sentiram vergonha do fato dos seus ascendentes terem protagonizado uma tal estratégia ilegítima, ilegal e inconstitucional para alcançarem o Poder que não conseguiram pelo voto direto, secreto e universal.
A propósito, lembremos que muitos daqueles que participaram do golpe de 1964, mais tarde foram alcançados pelos próprios militares. Mandatos foram cassados e muitos foram presos, inclusive. Eles não mediram exatamente as consequências do golpe de Estado que tinham ajudado a implantar. E os militares foram implacáveis, não somente com os que resistiram ao golpe desde o início, como também com aqueles que, antes convenientes e oportunistas aliados, não aceitaram depois todas as condições impostas por um regime de exceção. Eis a lição da História:
“O processo coercitivo de desmobilização política desencadeado em 1964 contra a esquerda transbordara primeiro contra uma parte da militância liberal, depois contra as próprias lideranças conservadoras que pretendiam sustentar projetos pessoais e políticos independentes. Em 1970, no apogeu, transformara-se num fenômeno de mutilação e desmoralização da elite nacional. Esse ciclo, percorrido em seis anos, não obedeceu a doutrinas, planos ou estratégias. Foi produto de uma anarquia institucional na qual a cada avanço da desmobilização correspondeu um vácuo de legitimidade e a cada vácuo sobreveio um novo espasmo desordeiro. Cada setor interessado na desmobilização saqueou um pedaço das instituições nacionais. Todos fizeram isso acreditando que no final sobrariam instrumentos suficientes para assegurar-lhes uma parcela de poder. Assim, políticos sem voto saquearam as eleições diretas. Parlamentares sem opinião tungaram a inviolabilidade dos mandatos. Guildas patronais surrupiaram a liberdade sindical. Grandes montadoras do ABC paulista submetiam ao DOPS nomes de funcionários que contratavam. Terminada a tosa, a elite brasileira aniquilara-se.” (Elio Gaspari, “A Ditadura Escancarada”, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 226).
Obviamente que a História repetiu-se, se não como uma tragédia, certamente como uma farsa, como previu Karl Marx. Não tardará, estes mesmos que apoiaram a deposição da Presidenta Dilma Roussef sentirão o gosto da derrota e do erro cometido. Chegamos, definitivamente, ao fundo do poço. Tudo é possível. Infelizmente, a razão está com Giorgio Agamben:
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (…) O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo.” (“Estado de Exceção”, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 13).
E por quê insistimos em falar que houve um golpe? Sim, certamente foi um golpe! Desde o início do processo de impeachment sabia-se que não havia sido praticado qualquer tipo de crime de responsabilidade, nem remotamente… Neste sentido, apesar de longo, vale transcrever um trecho de um artigo do Professor Ricardo Lodi:
“As chamadas pedaladas fiscais nada mais são do que o apelido dado ao sistemático atraso nos repasses de recursos do Tesouro Nacional para que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal paguem benefícios sociais como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, seguro desemprego, crédito agrícola etc. Como as instituições financeiras pagam em dia os benefícios, o atraso no repasse dos recursos públicos gera contratualmente o pagamento de juros pelo governo aos bancos públicos. (…) Os defensores da tese da criminalização das pedaladas alegam que a medida se traduz, na verdade, em operação de crédito entre a União e os bancos federais, o que seria vedado pela Lei Complementar 101/200, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na verdade, o nosso Direito Financeiro positivo define o que é uma operação de crédito, quando se encontram no polo passivo as pessoas jurídicas de direito público, no artigo 3º da Resolução 43/2001 do Senado Federal, a quem compete dispor e limitar as operações de crédito contraídas pelos entes federativos, de acordo com o artigo 52 da Constituição Federal. Nesse conceito, como é óbvio, não pode ser inserido qualquer montante constante no passivo contábil da entidade pública. De acordo com tais definições senatoriais, não é possível enquadrar na acepção do termo operações de crédito, o nascimento de débitos com instituições financeiras decorrentes do inadimplemento de obrigações contratuais, como a ausência de repasses de recursos para o pagamento de prestações sociais pelos bancos públicos. Não se pode confundir operação de crédito, que tem um regramento jurídico próprio, inclusive quanto à vedação contida no artigo 36 da LRF, com o nascimento de um crédito em decorrência de um inadimplemento contratual, que, obviamente, não sofre as mesmas restrições. A União, como qualquer outro contratante, deve responder pelo inadimplemento das obrigações por ela assumidas com as instituições financeiras que contrata, ainda que seja controladora dessas entidades. Mesmo que assim não fosse, a atuação não poderia ser enquadrada em qualquer das hipóteses de crime de responsabilidade do presidente da República por violação da lei orçamentária, conforme previsto pelo artigo 4º, VI da Lei 1.079/50, cujas condutas sancionadas são esmiuçadas exaustivamente no artigo 10 da Lei 1.079/50. É que a manobra contábil, que vem sendo utilizada desde o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, sempre com o beneplácito do Tribunal de Contas da União e do Congresso Nacional, ainda que se traduzisse em operação de crédito, o que, vimos, não é o caso, não viola propriamente a Lei Orçamentária Anual, que constitui o bem jurídico tutelado em todos os tipos do referido dispositivo sancionador dos crimes de responsabilidade, mas a Lei de Responsabilidade Fiscal, que com ela não se confunde. Violar a LRF não é a mesma coisa que violar a LOA. Esta última é a norma que prevê todas as receitas e despesas da União. É aqui que as condutas comissivas e dolosas do presidente da República poderão ensejar, em tese, o crime de responsabilidade. Já a LRF é norma geral de Direito Financeiro que orienta a elaboração, controle e fiscalização da LOA, mas que não faz qualquer previsão de receitas e despesas e com a lei de normas gerais não se confunde. (…) Outro ponto que alicerça o pedido de impeachment, e que foi acolhido pelo presidente da Câmara, diz respeito a seis decretos, no valor de R$ 2,5 bilhões, que foram baixados em 2015 para abertura de créditos suplementares, supostamente sem a devida autorização legal. Os créditos suplementares visam a aumentar as dotações orçamentárias destinadas a determinadas despesas, em face da insuficiência dos valores que foram originalmente previstos. Tal procedimento é muito corriqueiro na vida da Administração Pública, uma vez que o orçamento é uma previsão quanto ao que será gasto ao longo do ano, o que, quase sempre, precisa ser revisto à luz dos fatos que acontecem durante a execução orçamentária. Por isso, o Congresso Nacional, por ocasião da elaboração da lei orçamentária anual, já autoriza a abertura de créditos suplementares por decreto do presidente da República, podendo estabelecer limites e condições para o exercício dessa faculdade. A alegação dos que sustentam a caracterização do crime de responsabilidade se baseia no texto do artigo 4º da Lei 12.952/14, a Lei Orçamentária Anual de 2014, que condicionou a autorização para a abertura de créditos suplementares ao atingimento da meta de superávit primário estabelecida para o exercício de 2014. Na visão dos defensores do impeachment, na quarta pedalada hermenêutica, como o superávit primário foi obtido mediante as pedaladas fiscais, inexistiria a autorização legal dele derivada. Quanto a esse argumento, vale destacar, inicialmente, a impropriedade de se falar em limites previstos pela LOA de 2014, no que se refere a créditos suplementares abertos em relação ao orçamento de 2015. Logo, o que precisa ser verificado é se a abertura dos créditos suplementares em 2015 feriu a lei de orçamento em vigor. Esta, a Lei 13.115/15, só aprovada em abril de 2015, previu, em seu artigo 4º, texto semelhante ao mesmo artigo da LOA/14, condicionando a abertura de créditos suplementares ao cumprimento da meta dos superávits primários para 2015. Na verdade, o que ocorreu em 2014, e está ocorrendo em 2015, é que as metas de resultado primário tiveram que ser revistas ao longo do ano, em razão da frustração de arrecadação tributária causada pela crise econômica, o que foi levado a efeito por leis em sentido formal. A consequência automática dessas alterações legislativas é a legitimação da abertura de créditos suplementares por decreto ao longo do ano. Deste modo, os limites previstos para a abertura de créditos suplementares previstos na lei de orçamento foram revistos antes do final do exercício financeiro.”
Mas, isso pouco importava, pois o propósito não era restabelecer a “ordem e o progresso”, mas derrubar um Governo e acabar com um Partido Político. Se não havia mais possibilidade do uso de armas, como em 1964, outros meios foram pensados, especialmente a partir das experiências vizinhas, como em Honduras, quando, em 28 de junho de 2009, o Presidente Manuel Zelaya foi destituido pela Suprema Corte; e no Paraguai, onde o Presidente Fernando Lugo, eleito também pelo voto popular e pondo fim a quase seis décadas de domíno do partido Colorado, foi afastado no dia 22 de junho de 2012, por meio de um impeachment, processo que durou pouco mais de 24 horas, em que o Presidente teve apenas duas horas para a sua defesa.
Ao invés de armas e dos militares, contou-se agora com as instituições: o Poder Judiciário, o Ministério Público, o Poder Legislativo e o Tribunal de Contas da União. Sabiam que tinham, ademais, duas armas fortíssimas: a grande mídia (dominadas por três ou quatro famílias) e com “setores moralistas da classe média“, desinformada, ressentida, conservadora, manipulada por “meia dúzia de endinheirados” e, sobretudo, “infantilizada que se autoidealiza.” (Jessé de Souza, “A Tolice da Inteligência Brasileira – Ou como o País se deixa manipular pela elite”, São Paulo: Editora LeYa, 2015, p. 257). Tudo, obviamente, gerenciado pela embaixada americana.
Ademais, tinham um aliado: o Deputado Federal Eduardo Cunha, portador de um notório histórico de corrupção e ladroagem na vida pública. Foi um jogo tramado logo depois de perdidas as eleições presidenciais. Obviamente, era preciso que tudo se revestisse de ares de legalidade. Escolheu-se, então, o art. 85 da Constituição Federal (“Da Responsabilidade do Presidente da República”) e a Lei nº. 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento.
Chamado para se pronunciar algumas vezes, o Supremo Tribunal Federal nada vez, omitindo-se. Já em Curitiba, cuidava-se de pavimentar o caminho para o golpe, vazando informações sigilosas extraídas de autos de delações premiadas e de interceptações telefônicas. Havia também o Tribunal de Contas da União. Não esqueçamos, igualmente, da Ordem dos Advogados do Brasil que, tal como ocorreu em 1964, apoiava as ações dos líderes do golpe. Este fato, também, não deixa de ser mais uma faceta do enorme conservadorismo que assola o País, “essa relação dinâmica entre as gerações também é o que queremos chamar, ou que deveríamos chamar, de residência. Na melhor das hipóteses, os esforços conservadores são tentativas de preservar um lugar-residência comum – um lugar que é nosso.” (Roger Scruton, “Como ser um Conservador”, Rio de Janeiro: Record, 2014, 4ª edição, p. 272).
E o desfecho foi digno de uma opera buffa: o Senado da República, presidido por um Ministro do Supremo Tribunal Federal sem pulso, dois acusadores despreparados tecnicamente (e uma delas desprovida também de preparo emocional), uma defesa atônita e impotente e parlamentares fisiologistas (alguns investigados ou acusados de corrupção). Ao final, a última cena e o reconhecimento do golpe: cassaram o mandato da Presidenta da República e não aplicaram a outra pena prevista na lei, cumulativamente: a incapacidade eleitoral passiva da condenada, ficando óbvio que o que se queria mesmo era tomar o Poder e, se possível, acabar com um Partido Político e com o seu maior líder.
Eis o resultado: assume o Poder, mais uma vez na História do Brasil, um cidadão sem nenhuma representatividade popular que, sequer, seria eleito parlamentar em seu Estado de origem. E, mais: citado em delação premiada como recebedor de vantagens ilícitas.
Agora, é esperarmos desalentados os estragos que serão produzidos nas conquistas sociais dos últimos anos. Evidentemente, serão eles, os pobres que, ao final e ao cabo, pagarão a conta. É mais um aspecto perverso do neoliberalismo que “não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma como somos levados a nos comportar, a nos relacionar com os outros e com nós mesmos.” Enfim, “o neoliberalismo emprega técnicas de poder inéditas sobre as condutas e as subjetividades.” (Pierre Dardot e Christian Laval, “A Nova Razão do Mundo – Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal”, São Paulo: Boitempo, 2016, páginas 16 e 21).
Resta-nos, portanto, ainda que irresignadamente, reconhecer a derrota e com ela aprender, pois “a vitória pode engendrar facilmente uma ideologia triunfalista que entorpece o espírito autocrítico e leva o pensamento a se instalar num carro blindado. A derrota, ao contrário, nos desafia a nos revitalizarmos e pode nos dar uma preciosa ocasião para nos renovarmos; com a derrota, podemos ´aprender todas as fintas da ascensão e podemos nos banhar na vergonha como no sangue de um dragão.`” (Walter Benjamin, “Gesammelte Schriften”, Ed. Suhrkamp, Frankfurt/Main, Vol. 4, Tomo 1, p. 372, citado porLeandro Konder, “A Derrota da Dialética”, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1988, p. 206/207).
Finalmente, a classe média brasileira voltará a não ter que conviver com alguns indesejados nos aeroportos e shopping centers do Brasil. Seus filhos, finalmente, não vão conviver mais com os filhos deles, desfrutando das mesmas frivolidades próprias do neoliberalismo. A propósito, veja-se o debate sobre o Bolsa Família: “Nos mais variados ambientes sociais os pobres são acusados de preferir viver do dinheiro da bolsa, em vez de trabalhar; de fazer filhos para ganhar mais dinheiro do Estado; de usar o dinheiro para comprar cachaça etc. (…) Esse tipo de argumento é muito comum no discurso público geral, no qual não se admite que os pobres possam não ser responsáveis por sua situação. O estigma que lhes é atribuído se baseia na premissa neoliberal de que cada um é responsável pela sua posição socioeconômica como adulto, mas tal premissa desconsidera o fato de que a maioria das pessoas que pertencem à elite ou às classes mais ricas já nasceu em famílias abastadas e, portanto, não são responsáveis por sua situação de bem-estar ou de poder.” (Walquíria Leão Rego e Alessandro Pinzani, “As Vozes do Bolsa Família”, São Paulo: Editora UNESP, 2014, 2ª. edição, p. 233/234).
Concluo, com o extraordinário Eric Hobsbawm, que, definitivamente, “não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.” (“Era dos Extremos – O breve século XX – 1914-1991”, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, 2ª. edição, p. 562).
Autor: Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS