Política

Governantes “cabeça quente” e os alfinetes

Governantes “cabeça quente” e os alfinetes

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Esporte intelectual imensamente fascinante, até mesmo divertido, é especular sobre os efeitos do acaso. Na verdade, “acaso’ é um termo apenas cômodo, porque o próprio acaso não é fruto do acaso. Obedece a uma rigorosa relação de causa e efeito, nem sempre limpidamente discernível, tal a interferência concomitante de milhares de outros “acasos” — olha ele aí de novo… — no cruzamento das diversas relações causais. Um alfinete, ou qualquer insignificante objeto, pode decidir o futuro do planeta, se, engolido acidentalmente por um menino. A diminuta peça pode caminhar lentamente no seu organismo, atingindo o coração vários anos depois, quando o moleque — já adulto —, estiver na iminência de tomar uma decisão decisiva para o destino da humanidade. Tive um tio que morreu disso, sem atingir a maturidade.

 

Obscuro, o que foi dito atrás? Nem tanto. Se George W. Bush, por exemplo, quando criança, tivesse engolido, sem querer, o tal alfinete e depois, com medo da repreensão dos pais, não lhes tivesse revelado o fato, vindo a falecer antes da eleição do ano 2.000, o mundo estaria hoje bem diferente. Não teria havido, provavelmente, a invasão do Iraque, porque um outro presidente americano no poder, usualmente mais prudente, teria checado as informações — equivocadas — relacionadas com o alegado papel de Saddam Hussein nos ataques de 11 de setembro de 2001. Igualmente, teria exigido provas mais seguras de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa que, afinal, verificou-se depois, não existiam. Como Bush estava “alfinetado” de outra forma, na alma, ressentido com as atitudes não só arrogantes como também criminosas de Saddam — o tirano teria planejado explodir uma bomba para matar Bush pai quando em visita deste ao Kuwait, em 1993 — a mera suspeita da existência das poderosas armas letais, insuflada pelos “falcões” republicanos, caiu em terreno propício, ansioso por encontrar um motivo, ou pretexto, para derrubar o posudo inimigo. E com isso os EUA meteram-se numa confusão difícil de sair sem vexame. Confusão que respinga por toda parte, conseqüência da globalização. Quando os Estados Unidos vão mal, diminuindo as compras, o resto do mundo sofre com a economia do rico cliente.

 

Limitações pessoais — Bush parece orgulhoso de ser estritamente “um homem de ação” —, também impediram o chefe do país mais poderoso do planeta de discernir, com lucidez, qual a atitude mais inteligente a tomar em relação ao já rançoso conflito entre os israelitas e os árabes palestinos. Cada vez mais, nos tempos modernos, o pensar deve preceder o agir na vida dos governantes. Ações precipitadas tornam-se fatais. O já acontecido nem Deus pode apagar. Mesmo os teólogos não se atrevem a dizer que Deus pode modificar o passado. Equivaleria a negar a si mesmo, ser contraditório, incoerente, algo impensável em um ser infalível. Deus pode, no máximo, apagar a memória dos fatos.

 

O mundo atual já não comporta governantes do estilo de Bush, “estourados”, “valentões” que primeiro agem e depois pensam. Há, infelizmente, um certo risco de McCain atuar desse modo, se eleito. Fosse Bush um homem mais inclinado à leitura ou reflexão, preocupado em ser acima de tudo um justo, não teria se prendido tanto ao que lhe sugeriam seus assessores, vice-presidente e secretários de defesa “tough guys”— interessados apenas no bem próprio e dos EUA, “the rest is the rest”. Essa preocupação com uma justiça mais abrangente, mundial, certamente teria o efeito de evitar o ataque de onze de setembro.

 

Por que essa hipótese? Porque o ataque foi apenas decorrência do ódio. Não havia interesse financeiro nos terroristas. E qual o principal abastecedor desse ódio? O sofrimento dos palestinos, expulsos de suas terras, depois de uma ocupação de quase dois mil anos.

 

Osama bin Laden é um fanático, um fundamentalista que quer, ridiculamente, forçar o mundo a acreditar no que ele acredita? É. Mas é um homem que tem ainda muito dinheiro para gastar com suas fantasias. Quer, pela força, converter o mundo ao islamismo. O dinheiro em mãos erradas — e doentiamente determinadas — é uma desgraça. Até mesmo, em última análise, para o próprio dono. Bin Laden jamais terá sossego. Vive em um “corredor da morte” móvel, em variadas cavernas que, a qualquer momento, podem explodir, alvo de um míssil. E depois de morto sua alma — para aqueles que acreditam em alma — nem mesmo terá o consolo de ser bem lembrado porque o mundo evoluiu, avançou muito além de suas acanhadas convicções. Em termos prosaicos, sua alma apenas “estava mal informada”, mal sintonizada com a época em que viveu. Um desperdício de determinação, qualidade, em tese, muito apreciada.

 

Esse ódio fundamentalista, no entanto, não teria sido tão intenso, lesivo e contagiante — um arregimentador de suicidas —, se não contasse com o reforço emocional das cenas de injustiças cometidas contra palestinos. Se estes tivessem sido tratados de forma mais humana, mesmo por imposição americana; se Bush tivesse levado em conta também os interesses dos palestinos expulsos — como lhe competia face à posição privilegiada de seu país no mundo — teria simplesmente enviado essa mensagem aos israelenses, ao seu lobby americano e ao resto do mundo: “Nós, americanos, juramos preservar a existência de Israel. Jamais abandonaremos essa nova nação, criada por um povo que muito sofreu no passado e merece um descanso. É, porém, nosso dever moral,— como nação preponderantemente cristã e líder mundial —, olhar também para as populações árabes que, sem culpa própria, acabaram sendo vítimas de um retorno populacional judaico descontrolado. Assim sendo, é inevitável estabelecer fronteiras entre os dois povos. Se as duas partes não chegarem a um acordo, num prazo “x”, caberá a ONU fixar tais fronteiras, indenizando-se aqueles que foram prejudicado com tal decisão”.

 

Mas não foi essa a política aplicada por Bush. Não gastou horas meditando sobre a questão, longe dos falcões, adeptos da guerra — sempre um bom negócio para os fabricantes de armas e acessórios. Não tentou, com determinação, prosseguir nos esforços diplomáticos iniciados pelo governo Clinton. Essa omissão estimulou o desânimo e a inconformidade dos árabes mais aguerridos — fanáticos ou não —, revoltados com a parcialidade, pró judeus, da poderosa nação. Nação que poderia, com sua influência, riqueza e poder militar, pressionar na criação de uma nova forma de justiça internacional, mais efetiva que a atual. Bastaria dar à Corte Internacional de Justiça uma diferente moldura, tornando obrigatório o cumprimento de suas decisões. Isso não teria sido tão difícil. Agora, porém, parece tarde para Bush conseguir uma paz duradoura na região. Seu prestígio é mínimo. Apenas seu sucessor poderá construir uma paz livremente acordada na região ou — preferencialmente — um edifício legal, internacional, que realmente evite ou faça cessar todas as guerras. Tudo isso já foi dito em outros textos mas que não custa repetir.

 

Abandonemos, aqui, o controvertido presidente que até possui alguns traços simpáticos. É amável, acolhedor. Daria um ótimo relações públicas. É leal a seus amigos, bom marido, bom pai, excelente filho, temente a Deus, risonho e patriota. Seu problema é não ser o homem certo para a cadeira que ocupa, exigente demais de seus ocupantes. O patriotismo de hoje tem que ser exercido de modo diferente do patriotismo de algumas décadas atrás. Com a intensa globalização, todos os chefes de governo — notadamente os poderosos — precisam se conscientizar de que suas decisões, embora legalmente direcionadas apenas ao próprio país, acabam repercutindo intensamente em outras nações. Não mais basta agradar os eleitores de seu país. É preciso, a todo custo, tentar não prejudicar as demais nações. Deve ouvi-las, pelo menos, e com boa-vontade. Em um mundo cada vez mais “neo”, não poderia mesmo faltar um “neopatriotismo”, diferente do anterior, que se preocupava apenas com o próprio país. “Para minha pátria, tudo; para o resto, nada!”

 

A revista “Newsweek” , de 11 de fevereiro de 2008, traz uma extensa e detalhista reportagem de Evan Thomas e outros sobre John McCain, o senador que neste momento aparece como o mais provável candidato republicano nas próximas eleições americanas. É um texto que deveria ser lido por todos os interessados em política internacional— principalmente pelos eleitores americanos — porque é quase um livro, bem sintetizado.

 

McCain entrou na política como um herói de guerra. Em 23 de outubro de 1967, na guerra do Vietnam, pilotava um avião de caça da marinha sobre a cidade de Hanói. Sua missão era jogar algumas bombas na cidade. Tarefa especialmente arriscada porque fazia isso sob intensa barragem de artilharia e mísseis SAM que, no dizer dele, mais pareciam, “postes telefônicos voadores”, tal o tamanho.

 

Um desses mísseis explodiu a asa direita de seu avião. Enquanto a aeronave rodopiava na queda, ele acionou o ejetor, escapando da morte certa. A violenta ejeção, porém, por uma razão qualquer, quebrou sua perna direita e ambos os braços. Caiu de pára-queda em um lago e, detido por inimigos, recebeu uma violenta coronhada de rifle no ombro que, parece, deixou seqüelas. Além disso foi ferido com perfuração de baioneta no tornozelo e na virilha. Quase morto, acabou se recuperando, Passou cinco anos em prisão vietnamita, submetido aos rigores de interrogatórios extremamente agressivos, levando socos e tapas para revelar detalhes militares. Detalhes que, parece, não revelou, ou revelou de forma incompleta. No entanto, sendo John McCain filho e neto de almirantes, os comunistas, por propaganda do regime — os guardas chamavam-no “príncipe coroado” —, ofereceram-lhe a libertação após um ano de prisão. MacCain, no entanto, recusou o privilégio, dizendo que só aceitaria a liberdade se todos os seus companheiros de armas tivessem igual benefício. Como isso foi negado, ele ficou mais quatro anos preso, só sendo libertado em 1973, como resultado de um acordo de paz. Voltou a seu país como herói. Algum tempo depois, divorciou-se e casou com a rica herdeira de um fabricante de bebidas.

 

Pelo que dizem os autores da reportagem, McCain é um boa praça. Gosta de contar e ouvir piadas, mas não pode ser facilmente contrariado. Nesses momentos perde as estribeiras, fica vermelho, grita. Certa vez chegou a empurrar o interlocutor, Strom Thurmond, senador nonagenário. Isso sem mencionar que, por vezes, especialmente exaltado, usa o palavrão — “Fu…you!” — utilizado contra um colega de Senado, John Cornyn, do Texas. É o diz o artigo da revista americana.

 

Por outro lado, McCain é um homem honrado, certamente incorruptível. Quando suspeita que há alguma coisa menos limpa escondida em um projeto de lei, abre a boca, briga e até persegue funcionários. É temido.

 

No balanço total de virtudes e defeitos, tudo parece indicar que, para seu país, é uma pessoa compatível com a presidência. Porque, enfim, é honesto e patriota.

 

No entanto, em termos de melhoria da imagem dos EUA — hoje imprescindível —, provoca a apreensão a possibilidade dele se tornar presidente de uma nação militarmente tão poderosa. “Cabeça quente” na presidência de país sem importância não representa perigo de incêndio global. Isso porque, sendo fraco seu país, sem armas nucleares ou biológicas, o “esquentado” logo receberá um “chega pra lá” internacional caso pretenda assumir atitudes de imperador. Como um “pavio curto” presidencial americano vai poder dialogar, por exemplo, com um representante do Hamas, do Hezbollah, ou o atual presidente do Irã? E sem diálogo as coisas continuarão como estão. Não basta, na situação atual, ser um homem honesto. Os maiores guerreiros não são os melhores diplomatas, e vice-versa.

 

Nesse ponto, será bem melhor — para os EUA e para o mundo —, que o futuro presidente americano seja não só um homem igualmente honesto e corajoso, como também, e principalmente, calmo, capaz de ouvir ressentimentos longamente armazenados. Sem ficar vermelho, respondendo aos gritos. Nesse ponto, Barack Obama oferece as melhores perspectivas, bem superiores a Hillary Clinton, que também é “esquentadinha” e já adiantou que não se rebaixará a “conversar com terroristas”. Classificação de rigor discutível num mundo ainda muito impregnado de injustiças. Na análise química de um terrorista pode haver infecções oriundas de muita pancada recebida. O assunto é um tanto técnico, e não para políticos especialmente impacientes.

 

Viria a propósito, em outro texto, uma comparação das personalidades de Obama e Hillary, com microscópicas biografias. A mente e o temperamento dos políticos merecem mais atenção que seus “programas”, sempre alteráveis e ao gosto dos telespectadores. Já o temperamento, esse dificilmente muda. E não se pode confiar nos alfinetes. É melhor investigar as biografias.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Governantes “cabeça quente” e os alfinetes. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/govcabqu/ Acesso em: 26 jul. 2024