Dick Cheney critica a Rússia
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
“Tentando compreender Cheney”, seria também um título pertinente.
Quase não acreditei em meus olhos quando li, no jornal, que Cheney, em uma conferência, na Capital da Lituânia, atacou severamente a Rússia, argumentando que ela viola os direitos humanos e chantageia outros países usando para isso petróleo e gás. Nesse encontro estavam presentes os líderes de nove ex-satélites soviéticos, EUA, União Européia e a Otan. A Rússia, claro, não foi convidada, porque réus não participam de reuniões compostas de juízes e vítimas, embora hoje em dia seja algo difícil distinguir quem é réu e quem é vítima, ou juiz. Tudo depende do enfoque. Até parricidas e assaltantes — de transeuntes ou de bancos —, são mencionados como “vítimas da sociedade”, o que pode ser verdade, se abrangente demais a lente do fotógrafo.
Gandhi dizia que todo criminoso no fundo é um doente. A resposta para isso é que enquanto não houver vacina ou injeções contra a criminalidade a solução é trancar o doente com surtos agressivos contra a vida ou o patrimônio alheio. Apesar de vítima de uma “doença”, mental ou moral, ele não pode passear com uma machadinha nem com a chave do tesouro comum. A filosofia tem isso de bom e de mau. Muito aberta, tonteia, confunde. Tudo encontra uma explicação e até uma justificação. Mas não entremos nessa área brumosa porque nosso convidado de hoje, Cheney, já traz sobre sua cabeça nuvens demais. Aliás, essa nuvem o persegue há anos. Quem acessar o site de busca “Google”, na Internet, encontrará 10.900.000 de “páginas” sobre Dick Cheney, quase todas com opiniões bem negativas sobre a sua personalidade. Obviamente, seria impossível ler todo esse material, mas a imensa preponderância da nota má é visível. No entanto, presumo que se houvesse um aparelho que medisse o grau de patriotismo de um cidadão, um “patriotrômetro”, ele se sairia bem. Mas também se sairia muito bem, até melhor, se houvesse um aparelho assemelhado que medisse a sede de poder e dinheiro, um “gananciômetro”.
Dick Cheney sempre me despertou imensa curiosidade. Se eu tivesse vocação para biógrafo, com um pé na canoa da Política e outro na da Psicanálise, ele seria um de meus retratáveis preferidos. Personagens históricos maus, ou polêmicos, ou perigosos — pelo menos ”irregulares” — são muito mais interessantes que aqueles comportadinhos, cheios de escrúpulos, que cumprem seu mandato, dizem o que pensam — na medida do politicamente possível — e vão embora. Estes são razoavelmente transparentes e, justamente por não suscitar revoltas nem enigmas, recebem poucas linhas e atenção. São logo esquecidos. Não havia, na personalidade deles, nada que produzisse o necessário “thrill” das grandes biografias, cheias de aventuras e manipulações da verdade.
Analogicamente, estudiosos da vida selvagem dizem que os grandes herbívoros africanos — zebus, gazelas, gnus — futuros jantares dos leões, sentem verdadeira fascinação pelos grandes felinos. O gnu fica ali, parado, tolo, seus grandes e inocentes olhos brilhando. Admiram aqueles seres mais fortes e astutos do que ele, em uma curta distância que pode ser fatal. E assim se comporta boa parte do eleitorado republicano nos EUA, que só pensa em trabalhar e rezar, na maioria simplório mas capaz de decidir uma eleição. E Dick Cheney sabe disso. Quem, medianamente informado em política internacional, ouviu Cheney, na internet, discursando em campanha, ou em debates, não pode deixar de notar com que frieza ele é capaz de alterar a verdade, dando a impressão de que limita-se ao fatos. Nesse item, ele é muito melhor ator do que W.Bush, que sorri amarelo e pisca muito quando se vê encurralado pela verdade. Cheney não pisca. Fala pausadamente e transmite uma estudada impressão de segurança. Como a maior parte do eleitorado não tem condições nem tempo para examinar bem os meandros das políticas e intenções, ele se deixa convencer só pela postura de segurança e isso explica a longa permanência de Cheney no topo da política. E é bem capaz de dormir com a consciência em paz, porque crê em Deus, é um bom marido — tudo indica — um bom pai e um bom avô. Quando moço, devia ser o sonho de toda futura sogra: trabalhador, extremamente ambicioso, organizado, previdente, articulador e ainda por cima um patriota que quer ver todos os países em nível mais baixo que o seu.
Dick Cheney, embora, formalmente, não exerça uma chefia de estado, está bem próximo disso, porque George W. Bush tem por ele admiração aparentemente ilimitada. Cheney está para Bush assim como François Leclerc estava para o Cardeal Richelieu, na França da primeira metade do século XVIII.
Como sempre considerei Cheney uma espécie de “eminência parda” do governo W. Bush fui ao site do Prof. Cláudio Moreno — “Sua Língua”, é fácil acessar — para saber a origem dessa expressão: “eminência parda”. Por que “parda”? O homem que inspirou essa expressão era mulato, ou um oriental bem moreno? E no referido site fiquei sabendo que no tempo de Richelieu — que foi ministro do rei Luís XIII — havia um padre capuchinho, tudo indica de raça branca, “Père Joseph”, que graças à sua grande perspicácia era secretário particular, conselheiro e confidente do famoso Cardeal Richelieu. Antes de ingressar na vida religiosa, esse padre chamava-se François Leclerc, e era nobre, “Marquês de Tremblay”. Como quem mandava, mesmo, na França era Richelieu — o rei era apenas rei, não tinha seu grau de discernimento — e quem “fazia a cabeça” de Richelieu, ou ajudava demais nisso, era o referido “Père Joseph” — que usava o hábito de Capuchinho, de cor parda, ou “gris” —, quando alguém queria algo importante do rei era-lhe recomendado que procurasse, não o homem vestido de púrpura — reservada aos cardeais (Richelieu) —, mas o homem usando o modesto hábito de cor parda. Daí a “eminência parda”, porque o tratamento de “eminência” era reservado aos cardeais. Vivendo e aprendendo.
Cheney é uma personalidade forte, persuasiva — se necessário —, dominadora, e que prefere atuar nos bastidores. Ele mesmo já admitiu não gostar do palco, dos refletores. Nisso mostra muita habilidade, coincidente com seu temperamento reservado, embora dominador. Atuando nos bastidores, as articulações ficam facilitadas, os parceiros de conversa se abrem mais — porque podem se abrir, não há repórteres por perto — e fica muito mais fácil o “ir e vir” das infindáveis propostas e contrapropostas necessárias às complicadas articulações dos grandes negócios, entre negociantes e entre estes e governo. Não existe, nos ambientes reservados, a aborrecida necessidade de “jogar para a galera simplória”, esse “ônus da democracia”, contornável com inverdades ditas em tom sério. Além do mais, um cargo de vice-presidente desperta muito menos curiosidade malsã que um cargo de presidente. Todo presidente tem sua vida examinada com lupa e microscópio. Até sua lata de lixo é inspecionada para ver se há algum item que possa gerar um “abençoado” (para o repórter) escândalo. E já diz a Bíblia que “quem procura, acha”. É prognosticável que Cheney nunca pretenda disputar a presidência, desde que possa atuar nos bastidores. Além do mais, qualquer presidente gasta um tempo enorme com superficialidades cívicas: banquetes, recepção de chefes de estado, discursos nem sempre de sua redação, desfiles, condecorações de vaidosos, beijos em crianças que nem mesmo acha bonitinhas e podem urinar na sua roupa. O sacrifício já começa no período eleitoral. No Brasil, comendo pastel — frito em óleo duvidoso —, e arriscando as preciosas entranhas em saladas de maionese que podem derrotar o candidato antes mesmo das eleições. Candidatos a presidente do Brasil ainda assumem o risco extra das “buchadas de bode”. Presumo que seus seguranças tenham a cautela de testar, previamente — talvez usando gatos esfomeados — esses quitutes, orientando o candidato sobre onde e quando comer, dando a impressão que a escolha do pasteleiro foi acidental. Não sei qual é, nos EUA, o sacrifício gastronômico imposto aos candidatos, mas algum deve haver, porque os eleitorados têm muito em comum. E um vice-presidente está muito mais livres desses sacrifícios. Eminências pardas nunca quiseram ter outra cor. Basta-lhes a sensação de poder e a riqueza. Esta, por sinal, pode ser melhor saboreada sem as responsabilidades diárias de uma presidência.
Voltando ao Cheney, o que me chamou a atenção, no jornal, foi o fato dele atacar francamente a Rússia, em matéria de direitos humanos. Aproveitou o fato de Putin parar, ameaçar parar, ou alterar, os preços no fornecimento de gás à Ucrânia e desbordou para os direitos humanos, tentando enfraquecer politicamente o dirigente russo. Se a crítica de Cheney a Putin se limitasse à questão do fornecimento de combustível à Ucrânia, e, por tabela, a outros países europeus, não haveria porque estranhar. O que causa espanto, pelo caradurismo, é a ampliação do tema e sua coincidência com o problema da falta de unanimidade no Conselho de Segurança das Nações Unidas na questão do Irã.
A explicação evidente para a mudança de enfoque na conduta russa, está na inconformidade de Cheney quanto à recusa de Putin em apoiar medidas “severas” — “nenhuma medida está excluída”, disse Bush — contra o Irã, que insiste em desenvolver seu programa de energia nuclear, embora aceitando a inspeção, sem aviso prévio, da agência fiscalizadora da ONU. Sem a concordância da Rússia e da China, não pode o Conselho de Segurança apoiar um ataque bélico ao Irã, para destruição das instalações nucleares, aeroportos e outros pontos estratégicos. E é isso que Cheney deseja a todo o custo. Atacar, destruir e, quem sabe, liderar depois, economicamente, a “reconstrução” da infra-estrutura, como ocorreu no Iraque. “Business”. Ele não aceita um “não” como resposta. E seria agora uma total desmoralização diplomática dos EUA se ele atacasse militarmente o Irã contrariando as normas da ONU.
Cheney só poderá ser admirado, no futuro, por americanos — nem todos, certamente uma minoria — obcecados com a idéia de que é perfeitamente legítimo(!?) obrigar o resto do mundo a ficar num plano inferior — “the rest is the rest” — porque a América conseguiu conciliar a riqueza com a possível liberdade. A América, para esses, é “confiável” porque realiza eleições livres — com pequeníssimos senões — e, quando usa a força o faz pensando apenas no “bem comum”, isto é, da América, primeiro, e depois do país invadido. Se é, por vezes, violenta, essa violência — ao ver desses entusiastas — no fundo é benéfica ao próprio violentado. Algo assim como uma injeção dolorosa, mas necessária, aplicada à força numa criança que estrebucha por não saber o que é melhor para ela.
Parece-me que assim é Dick Cheney por dentro. Ele certamente pensa que têm vista curta os inocentes democratas que o censura por manter, a todo custo, a predominância americana no mundo, até ameaçando concorrentes — China — que querem por as manguinhas de fora, avançando no seu quintal, a América Latina e outros continentes E como um “corajoso americano que vê longe” — na opinião dele — ele sabe o quão importante é o petróleo e o gás para garantir o futuro de seus país. Dirá que a China não é menos ambiciosa e astuta, e usa a diplomacia para suplantar a força dos EUA, coisa que Cheney “não permitirá!”, nem que tenha que usar dupla força e astúcia. Em troca desse “relevante serviço’ — é ele que continua pensando — “não tem importância que eu receba o meu salário, mantendo um pé no governo e outro conduzindo vultosos interesses comerciais no petróleo, na guerra, na destruição e na reconstrução dos países invadidos. Quem quiser, efetivamente, beneficiar o seu país deve saber que, por vezes, a mentira é necessária. É assunto para profissionais, não para amadores, na imprensa. A História e Deus me perdoarão”. Nesse ponto ele vira para o lado e dorme o sono dos justos.
Encerrando, deixo aqui expresso que não confundo a nação americana com Dick Chaney. Ela é muito melhor que ele. É um organismo ainda vigoroso, na sua maior parte solidário, e um impulsionador do progresso, embora também pensando em si mesmo, o que é perfeitamente natural. A complexidade do mundo moderno e as limitações do cérebro humano explicam alguns “escorregões” da grande nação e talvez do próprio Cheney. A América criou uma tecnologia com imensas possibilidades para a humanidade. Sem os EUA este artigo não estaria sob as vistas do leitor.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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