Dizem que tudo começou com uma profecia de um tal de Dom Bosco: “Do Planalto Central surgirá uma nova civilização que assombrará o mundo”. De fato, surgiu e produziu m grande assombro!
E no Brasil, como sabemos, não é nada raro a profecia e a ficção tornarem-se realidade. Aliás, no Hemisfério Sul, a linha separando os delírios da imaginação e a incomodativa realidade é demasiadamente tênue, como mostrou sobejamente o livro mais aguçadamente crítico escrito na América Latina até hoje: o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano de Mendoza, Montaner e Vargas Llosa, que serviu de modelo e estímulo para escrevermos um Manual do Perfeito Idiota Brasileiro (até hoje inédito).
Porém, ainda que Juscelino Kubitschek não tivesse construído Brasília para fazer com que uma profecia se cumprisse, a teria feito para preencher diversos anseios provenientes do inesgotável e polifacetado imaginário caboclo. John Gunther, um aguçado observador do cenário latino-americano, dizia ao final da década de 60:
Talvez a analogia com Ankara seja a mais adequada. Kemal Atatürk mandou construir Ankara na década de 20, para tornar sua nova república turca dinâmica, para atenuar as influências européia e bizantina de Constantinopla, e para desenvolver o interior do país. De modo semelhante, Kubitschek criou Brasília para atenuar a obsessiva concentração nacional no Rio, para se afastar do mar e para exorcizar a grande falta de admiração pela grandeza do país como um todo. Mesmo assim, tem ocorrido uma acirrada controvérsia sobre Brasília, desde a sua criação. (Gunther, 1967, p.89).
Concordamos com Gunther no que diz respeito à analogia de Brasília com Ankara, mas consideramos que as razões para as obras faraônicas de Atatürk e Juscelino estão longe de ser convincentes, seja de um ponto de vista econômico, político, geopolítico ou de qualquer outro relevante. Brasília é muito mais um produto de delírios quixotescos do que uma imposição da fria razão e do bom senso.
Alguns militares há muito que desejavam a centralização da Capital da República, pois pensavam que estaria mais protegida de possíveis invasões estrangeiras, provavelmente do seu preferido e indispensável antagonista fictício: a Argentina. Mas, pensando bem, que seria dos estrategistas militares argentinos se não existissem forças armadas no Brasil, nem as Ilhas Malvinas perto do Pólo Sul – ou como Maggie, The Iron Lady, certamente corrigiria: “Falkland Islands, please!”
Não faz tanto tempo assim, o país do samba e o do tango estavam se preparando para entrar em uma corrida nuclear, pois um temia fortemente que o outro produzisse primeiro uma bomba atômica – aquela mesma que, uns vinte anos depois, Enéas Carneiro do PRONA, nas eleições presidenciais de 1998, disse se tratar de uma “bomba defensiva”, que não era para ser jogada no inimigo, mas para evitar que este – temeroso de uma retaliação – jogasse primeiro a sua sobre nós.
Apesar de bastante sutil, esse raciocínio não levava em consideração a relação custo-benefício, pois – caso a Argentina jogasse primeiro uma bomba atômica no Brasil – seria muito menos dispendioso para o erário bombardear as paredes da represa de Itaipu e inundar boa parte do território argentino. Afinal de contas, há quem veja ali uma estratégia defensiva sob a aparente forma de uma usina hidrelétrica ou uma hidrelétrica em tempos de paz e uma arma natural em tempos de guerra, algo parecido com aqueles tratores soviéticos que, com poucas e rápidas adaptações, transformavam-se em tanques prontos para atacar.
Sabe-se que Napoleão invadiu a Rússia e tomou Moscou, mas de que adiantou sua épica proeza? Ficou esperando pela rendição do czar; e como este não aparecia nunca, viu-se compelido a fazer uma idiotice maior do que a de ter invadido aquele extenso e gelado território: ordenou uma trágica retirada em que seu exército, fustigado na sua retaguarda pelo grande general russo – o General Invernov – ficou reduzido a um bando de esfaimados e maltrapilhos. Carlos XII da Suécia já havia feito a mesma coisa e Hitler – o cabo insano que se autopromoveu a general e estrategista, apesar de nunca ter lido von Klausewitz – voltou a cometer o mesmo erro. Mais um capítulo da marcha da insensatez tão bem caracterizada pela historiadora Barbara Tuchman (1985).
Tudo isto foi mais do que suficiente para mostrar que a tomada da capital por si só não acarreta necessariamente a derrota do inimigo. De onde se conclui – quando se deixa de lado a elucubração paranóide e se emprega o raciocínio lógico – que a centralização da capital é estrategicamente um recurso tão obsoleto quanto sua possível tomada. O surgimento da estratégia de guerrilhas – em Cuba e posteriormente no Vietnã – só fortaleceu essa tese criada logo após 1812 – ano da retirada de Napoleão da Rússia comemorada pela Abertura 1812 de Tchaikowsky, com salvas de canhão e tudo. E se é pasmoso que José Bonifácio – um homem inegavelmente culto e perspicaz – defendesse a centralização da capital em 1820, mais pasmoso ainda que na década de 50 do século recém-passado não se levasse em consideração o desastroso equívoco estratégico de Napoleão no século XIX.
Outros militares, mais argutos, também sonhavam com a interiorização da Capital, mas por outro motivo bem diferente. Eles não estavam preocupados com uma possível – porém muito pouco provável – agressão externa à soberania nacional, mas sim com a manutenção da ordem interna. Neste sentido, era importante transferir o Distrito Federal do Rio de Janeiro e a sede do Governo do Palácio do Catete, para dificultar quaisquer atentados ou golpes de Estado. Como se sabe, em maio de 1938, quando o Presidente ainda morava no Palácio Guanabara, um grupelho de integralistas com sigmas [Anauê!] em vez de suásticas [Heil Hitler!] fez uma tentativa de invasão, e o próprio Getúlio e sua esposa tiveram de dar uns tiros para afugentar aquela malta exaltada. E passaram a noite toda atirando, pois o socorro só chegou quando o dia estava amanhecendo. E os telefones do palácio? Todos mudos que nem os da TELEBRAS.
Neste sentido, duas coisas pareciam importantes do ponto de vista de uma estratégia de segurança do Poder: afastar a Capital de uma cidade grande e muito politizada. De preferência, situar a sede do Poder em uma cidade estrategicamente construída, de modo a dificultar quaisquer tumultos ou levantes e, ao mesmo tempo, facilitar uma repressão eficaz de caráter policial ou militar, dependendo da gravidade do abalo à ordem constituída.
Para satisfazer esses requisitos, tal cidade tinha que ser mais ou menos como uma espécie de “corredor polonês”, com um gargalo de entrada e outro de saída; devia ser distribuída em unidades distanciadas umas das outras e, se possível, evitar as terríveis esquinas – estas encruzilhadas em que não só costumam despontar galinhas pretas de macumba e desocupados jogando “purrinha”, como também – coisa mais séria – sinistros conspiradores. “Tchan Tchan-Tchan-Tchan!” [O maestro ataca a Quinta Sinfonia de Beethoven].
Como não é raro ocorrer na história, um remédio aparentemente eficaz acabou se revelando pior do que a doença. Matou todos os carrapatos, mas em compensação matou também a vaca. Planejada para ser uma cidade protegida de possíveis atritos políticos e golpes, Brasília aniquilou a própria vida política. Planejada pressupondo uma constante alternância democrática do Poder – uma pressuposição que não devia ser tomada muito a sério por quem conhecesse a instável história da República com seus repetidos golpes e levantes – Brasília acabou se encaixando, como a mão e a luva, com a meta de despolitização e tecnologização do país buscada, após 1964, por sucessivos regimes de exceção.
E temos certeza que quando dissermos tudo o que pretendemos, alguns espíritos exaltados ficarão com vontade de construir a execrável bomba, só para jogar em cima de Brasília. Ocorre, no entanto, que bombas podem destruir cidades, mas infelizmente não podem destruir idéias tortas e mirabolantes. E Brasília não é uma cidade, nem exatamente uma idéia: é efeito semelhante ao de uma forte ingestão de LSD ou – para ser nacionalista – do “santo daime”.
Se bem que é verdade que Walter Gropius – o fundador da tão-decantada Bauhaus – inaugurou uma nova dimensão no urbanismo por acreditar que o planejamento urbanístico era essencial para o condicionamento de condutas politicamente adequadas [obs. Naquela época não existia ainda o “politicamente correto” dos pós-modernos]. Deus nos livre de “engenheiros sociais” e de urbanistas bauhausianos e seus mirabolantes planejamentos embasados na falsa crença de que podem transformar a sociedade com planos feitos entre as quatro paredes de um gabinete! Eles se esquecem que a sociedade humana é demasiadamente complexa, para que seja dirigida como uma pequena empresa ou, coisa pior, como ratinhos pavlovianos ou sikennerianos condicionados em laboratório.
Dizem que um dia um desses ratinhos se virou para outro e disse: “Lá vem de novo aquele cara vestido de branco que está condicionado a trazer todo dia a esta hora um queijinho pra gente”. E é por isto que adversários da psicologia experimental pensaram em aplicar a psicanálise aos animais. O único problema é que eles não contavam seus sonhos, nem cometiam lapsos de linguagem. Ah! se os animais falassem… Porém, mesmo não falando, há quem psicanálise cães e gatos. Eles podem não falar, mas os donos deles falam e entendem muito bem quando são cobradas as consultas. Coisas da pós-modernidade! Já tem até gente criando leitão em casa com fitinha no pescoço, pois afinal de contas os pequenos suínos são simpáticos e o porco não é porco como se pensa.
Mas, a esta altura, os mais perspicazes poderiam alegar: Sabe-se que Brasília foi projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Será que estes profissionais civis entendiam alguma coisa de estratégia militar ou – coisa pior – em um regime democrático aceitaram assinar projetos manipulados por estrategistas militares? Como o projeto da cidade coube a Lúcio Costa e o da maioria dos prédios a Niemeyer, parece que esta pergunta deve ser endereçada ao primeiro.
E tudo indica que se trata de uma dessas estranhas coincidências, ou melhor: de algo que, tendo sido feito com determinada finalidade, acabou servindo perfeitamente para outra. Quando, por exemplo, foram construídos viadutos e marquises no Rio de Janeiro, nenhum engenheiro poderia imaginar que eles acabariam servindo de telhados para o Lumpenproletariat [o proletariado “lúmpen” composto de mendigos, vadios, débeis mentais abandonados, marafonas de última categoria e outros infelizes párias urbanos].
Quando Santos Dumont inventou o avião tinha a esperança de que ele servisse para encurtar distâncias, aproximar os povos e desempenhar outros papéis benéficos para a humanidade. Jamais imaginou que, na Primeira Guerra, passasse a ser usado como uma arma devastadora. Artistas, cientistas e inventores geralmente padecem de falta de imaginação política ou costumam aderir emocionalmente ao culto rousseauniano da “bondade natural” do ser humano [obs. J.J.Rousseau não era francês: era suíço, assim como A. Hitler não era alemão: era austríaco e J. Stalin não era russo: era georgiano – entenda-se: da Geórgia no Cáucaso, não da Georgia on My Mind da bela canção de Carmichael magnificamente interpretada por Ray Charles ou Alberta Hunter].
Se havia algum aspecto funcional, este se limitava a uma cidade sem cruzamentos, para facilitar o fluxo de veículos, apesar de gerar o enfado; com suas quadras destacadas umas das outras em que foram distribuídas as diferentes categorias de servidores públicos, apesar de gerar a impressão de insuportável uniformidade. Os assim chamados “apartamentos funcionais”, tal como a suposta alternância de Poder, pressupunham uma alternância de moradores; mas como no Brasil a mera ocupação temporária costuma gerar propriedade, mesmo quando o bem não é usucapível – e os bens públicos não o são, ao menos na fria letra da lei – o provisório tornou-se definitivo que nem o CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] e o que era “funcional”, na acepção de cumprir bem uma finalidade prática, tornou-se “funcional” no sentido de pertencer ao funcionário público.
* Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.