Política

A questão do mal


01/01/2011

Passei as últimas semanas lendo o livro
FAUSTO, de Goethe, e vasta literatura em torno do tema. Essas leituras são
destinadas a fundamentar o curso que vou dar sobre o livro neste semestre. Não
é uma obra simples, porque está carregada de simbolismos cujo sentido deixou de
ser percepção corrente há muito tempo, provavelmente desde que foi escrito. É,
por esse aspecto, uma obra muito difícil para os leitores de hoje. No centro do
poema está a questão do Mal, da sua personificação. A sociedade laica e atéia
que se tornou majoritária em nosso meio sequer dá-se conta da dimensão prática
dessa discussão, que só teve algum interesse no período imediatamente posterior
à segunda guerra mundial e, ainda assim, sob a perspectiva atéia. Um exemplo
conspícuo é a obra de Hanna Arendt, tentando entender o que se abateu sobre a
Europa e, em especial, sobre o povo judeu. Creio que ela fracassou por tentar
responder à questão escapando ao desafio teológico colocado pelos eventos.

[Hanna Arendt deu grande impulso à linha
teórica que reforça a tese dos direitos humanos como fundamento da filosofia
política e jurídica enquanto instrumento para combater o totalitarismo, sem
perceber que esta tese já havia sido empolgada pelos cultuadores do mesmo
totalitarismo então vencido. Vemos agora no Brasil o exemplo de como essa linha
teórica desaguou na justificação da dissolução dos valores ocidentais,
fundamentando todas as mazelas que precederam a eclosão do totalitarismo. Como
herdeira dos valores iluministas e ateus, Arendt deixou-se cair na armadilha e
certamente ficaria espantada sobre o que se fala em seu nome para justificar as
novas gerações de “direitos”, que na prática levam ao oposto de uma sociedade
juridicamente organizada de forma sã, abrindo o flanco para que novos
totalitarismos emirjam.]

Definitivamente, o problema do Mal se
manifesta sobretudo na dimensão política, por causa da escala cataclísmica.
Ele, todavia, é também uma experiência pessoal e ouso meditar que a vida
humana, ao fim e ao cabo, é uma coleção de experimentos e confrontos com o Mal,
mesmo que a pessoa individualmente não tenha consciência do que se passa
consigo mesma. Os filósofos e cientistas políticos que viveram no pós-guerra
não esconderam seu pasmo e seu terror diante dos acontecimentos do
totalitarismo que se abateu sobre o mundo na primeira metade do século XX. O
Estado tornou-se o grande e mais poderoso instrumento pelo qual as
personalidades demoníacas puderam praticar as maldades no limite do paroxismo.
Creio ser impossível discutir seriamente filosofia política sem enfrentar a
questão teórica do Mal. Daí a atualidade perene da obra de Goethe, que colocou
o problema de forma integral no seu poema. O objeto deste comentário, todavia,
não é o FAUSTO, mas dois textos papais acerca do tema. Dois papas e duas visões
do Mal, que, sob uma ótica estrita, são visões opostas, mas que se completam em
algum grau.

O primeiro texto é de autoria de João Paulo II
(MEMÓRIA E IDENTIDADE, Editora Objetiva, 2005), sendo o que mais nos interessa
os seus dez primeiros capítulos. O essencial do livro está no relato da
experiência do papa na sua Polônia natal e o confronto que ele pessoalmente fez
com as duas formas de totalitarismo mais letais que a Europa viveu: o nazismo e
comunismo. João Paulo II adotou a linha de pensamento que, de certa forma, é a
oficial e preponderante na Igreja Católica, que vê o Mal como mera privação do
Bem, na linha inaugurada por Santo Agostinho. É uma abordagem intelectual do Mal e creio ser ela insuficiente e
inadequada para dar conta da sua realidade nefanda.

O segundo texto é um discurso do Papa Paulo VI
proferido em 1971 e que pode ser acessado na página do professor Felipe Aquino.
Nesse discurso famoso o Mal assume a forma personificada que está no poema de
Goethe, deixando de ser uma abstração filosófica para ser uma figura atuante.
Suas primeiras palavras foram cortantes: “Atualmente, quais são as maiores
necessidades da Igreja? Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou
até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele
mal, a que chamamos Demônio”. E, mais à frente: “O mal já não é apenas uma
deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e
perversor”. Creio ser esta a mesma percepção de Goethe e que se encontra
amplamente amparada nos textos bíblicos, desde o Gênesis até às Escrituras do
Novo Testamento. Basta notar que uma das qualidades de Jesus em suas ações era
o poder com que expulsava os demônios, tendo sido ele próprio tentado por Satã.

A visão intelectualista de Santo Agostinho e
de João Paulo II deixa escapar o fato essencial de que o Mal é um sujeito que
opera, tem vontade própria e capacidade de desencaminhar os homens
individualmente, mas ele tem sobretudo a capacidade de influir sobre os homens
de poder e de conhecimento. Ele sempre age por meio de homens e mulheres que se
dispõem a fazer o pacto mefistofélico, como bem descrito na obra de Goethe. O
enorme poder que os Estados atuais são detentores acaba por se tornar armas
mortíferas contra a humanidade. Nesse sentido, os perigos dos tempos de hoje
são maiores do que aqueles que antecederam as duas grandes guerras. Entender o
Mal passou a ser elemento essencial para compreender como o mundo hoje está se
movendo.

É no Livro de Jó que Goethe buscará inspiração
para seu poema. Jó é um personagem típico do Antigo Testamento, homem temente a
Deus e capaz de resistir de forma santificada às investidas do Demônio. Sua
vitória sobre o Mal é completa por força dessa santidade. Em Goethe, todavia,
vemos um tipo diferente de homem: o moderno intelectual que se cansou da
própria ciência e está mergulhado no tédio da razão. É a criatura que desdenha
do criador e que busca no trinômio sexo, poder e dinheiro os meios para escapar
de sua infelicidade de ser criado. Diferentemente de Jó, Fausto se entrega
voluntariamente ao Demônio, pratica toda sorte de maldades e morre para, ao
final, ser resgatado, ainda assim, do fogo dos infernos. Um final cristão.

Os preferidos de Deus no Antigo Testamente
eram grandes homens santos, capazes de resistir ao Mal, como Jó, José e Daniel.
Mas nem sempre. Devemos nos lembrar de Davi, aquele que praticou iniqüidades,
mas manteve-se como um preferido de Deus. O mesmo pode ser dito de seu filho
Salomão.

João Paulo II lembrou no seu magnífico texto
que o limite imposto ao Mal é a Redenção, exemplificada na própria encarnação
do Deus Vivo. Mas essa é uma conclusão ex post facto e está mais vinculada à
trajetória do indivíduo isolado. Sua finalidade é escatológica, não serve para
a ação prática cotidiana dos viventes. Outra questão é como o Estado se torna o
instrumento para se fazer no flagelo e no verdugo das massas, experiência não
conhecida antes do século XX. Voltamos então ao problema da política e do Estado
como interfaces e instrumentos da ação do Mal. Se os homens podem fazer alguma
coisa para deter da eficácia do Mal em larga escala é por meio da política,
agindo organizadamente sobre os centros de poder. Penso ser impossível
dissociar a discussão teológica da práxis em sociedade. Mas como discutir o
assunto quando ninguém nem mais acredita em Deus? Quem haverá de acreditar na
ação do Demônio? Essa será talvez a maior vitória do Negador e o desamparo
absoluto das gerações atuais diante do Nefando.

* José
Nivaldo Cordeiro, Executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo.
Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um
dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos
diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação
Nacional de Livrarias –
http://www.nivaldocordeiro.net

Como citar e referenciar este artigo:
CORDEIRO, José Nivaldo. A questão do mal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/a-questao-do-mal/ Acesso em: 29 jul. 2025