Judiciário

Sistema Judiciário é Danoso e Perverso

Segundo a Folha de São Paulo, em 8/6/2011, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Cezar Peluso, classificou nesta terça-feira o atual
sistema judiciário brasileiro de “danoso e perverso”. Já que é ele quem diz isso, sinto-me inteiramente à vontade para dizer que há muito tempo já
cheguei a esta conclusão.

Ao participar de audiência no Senado para defender a PEC (proposta de emenda constitucional) que reduz o número de instâncias para apresentação de
recursos no Judiciário, Peluso defendeu as mudanças como forma de agilizar as decisões da Justiça.

“O sistema não é apenas custoso e ineficiente, ele é danoso e perverso. O sistema atual concorre para proliferação das prisões preventivas ilegais, em
dano da liberdade do cidadão”, afirmou. [vide o caso recente da Operação Satyagraha da Polícia Federal].

Peluso disse que a PEC, se aprovada pelo Congresso, vai representar uma “revolução” para o povo brasileiro. “Ela vai à raiz do problema. O cerne está
em antecipar o marco do trânsito em julgado das decisões, sem abolir os recursos e, portanto, permitir, quando seja o caso, execuções definitivas.”

O ministro respondeu bem todas as críticas à PEC, às quais chamou de “mitos”, entre elas a que reduz os direitos e garantias individuais e ofende a
chamada presunção da inocência.

[Observamos nós: Este o caso da proposta de “ficha limpa” tão desejada por muitos, apesar de constituir uma clara ofensa à supramencionada presunção de inocência. E eis o caso de um indesejável conflito entre a necessidade de lisura e probidade dos políticos e um princípio
constitucional cuja violação teria as mais drásticas consequências].

Peluso disse que o texto ainda mantém as mesmas funções dos tribunais superiores, sem acabar com a uniformização da interpretação das leis. Também
afirmou que, ao contrário da percepção comum, os juízes de primeira e segunda instâncias tomam decisões corretas em sua maioria.

“Há subsistência na maioria das decisões. Noventa e seis por cento das decisões são mantidas. Como dizer que os tribunais locais e regionais não
decidem bem?”, questionou. [Isto não passa de um non sequitur! – dizemos nós. Esses 96% de confirmações das sentenças podem não ser uma prova de
que os referidos tribunais decidam bem, mas sim de que o STJ e STF decidem mal. Estamos, na realidade, diante de uma disjunção exclusiva e exaustiva.
Na linguagem da lógica: pwq (p ou q, uma ou outra, mas não ambas)].

Favorável à aprovação da PEC, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), disse que as mudanças permitem que os processos judiciais tenham mais
agilidade. “Julgamentos em duas instâncias evidentemente que já são conclusivos”, disse.

O peemedebista admitiu, porém, que há resistências à aprovação da proposta especialmente por parte de advogados. “A convicção deles [advogados] é de
que a defesa tem que ir até o fim e esgotar todos os prazos.” [e numa dessas raríssimas ocasiões a razão nos compele a ter que concordar com o imortal
da ABL e decano dos políticos brasileiros, na ativa desde as priscas eras de JK!].

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) questiona a PEC, ao argumentar que ainda falta credibilidade à Justiça de segunda instância para ter a palavra
final sobre as decisões judiciais.

[Ou será que falta credibilidade a quem argumenta em causa própria defendendo interesses paroquiais conflitantes com os interesses maiores da Nação,
observamos nós].

De autoria do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), a PEC propõe a execução das decisões judiciais logo após o pronunciamento dos tribunais de segunda
instância (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais). O texto permite que se recorra ao STF e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), mas
tais recursos não impediriam a aplicação das decisões. Para entrar em vigor, a proposta tem que ser aprovada no Senado e na Câmara.

Pensamos ser oportuno republicar aqui nosso artigo publicado há alguns anos: “A verdadeira causa da impunidade no Brasil”.

Os marxistas dirão que a verdadeira causa da criminalidade é a luta de classes, os freudianos dirão que é a repressão da libido, os
nietzschianos dirão que é a vontade de potência (der Wille zur Macht), mas o ex-prefeito de Nova Iorque, Rudolf Giuliani, mostrou que é a
impunidade.

Seu bem sucedido programa de combate ao crime, denominado Broken windows (janelas quebradas), foi uma eloqüente prova disso. No que consistia
este mesmo? No princípio de que nenhuma violação da lei, por menor que seja – um marginal quebrar o vidro de uma janela, por exemplo – deve ficar
impune. Não só pelo caráter punitivo da pena, mas principalmente por seu caráter exemplificativo e pedagógico, capaz de inibir outras possíveis e
talvez piores transgressões da lei.

Creio que a maioria das pessoas sensatas há de concordar que, se a impunidade não é a única, é ao menos uma das mais importantes causas da
criminalidade. No caso do Brasil, no entanto, em que as infrações da lei mais leves – como pequenos furtos, por exemplo – costumam ser punidas, porém
as mais graves costumam ficar impunes, as coisas não são bem assim…

Os criminalistas brasileiros costumam dizer que só vão em cana os PPP (Pobres, Pretos e Pedintes). O pressuposto é que ricos, brancos e poderosos
beneficiam-se de generalizada impunidade.  Embora não concordemos com esse maniqueísmo social e racial, principalmente num país em que predomina a
mestiçagem, reconhecemos que há aí um fumus de verdade…

Não só os crimes de colarinho branco – praticados por políticos, altos funcionários públicos, grandes empresários, etc. – como também os praticados por
quem quer que tenha suficientes recursos financeiros para contratar um bom advogado – dificilmente serão punidos. Mas a pergunta que deve ser feita
agora é: Qual a causa dessa odiosa impunidade?

Resposta sucinta: um poderosíssimo lobby atuante 24h no Congresso Nacional. De que grupo? Ora, de um grupo muito interessado em manter um
determinado estado de coisas… Que estado  de coisas?

O da enorme quantidade de recursos legais, a saber:(1) agravo de instrumento, (2) agravo retido, (3) apelação, (4) embargo infringente,  (5) agravo
interno, (6) recurso especial,  (7) recurso extraordinário, (8) embargo de  divergência,  (9) ação rescisória, et caetera, usw.

Dada essa variadíssima fauna de recursos, um bom advogado chegado à chicana pode empurrar o caso de seu cliente com a barriga por longérrimo e
indefinido tempo. Aí então, finalmente, após longos e escaldantes verões, quando todos os recursos já tiverem sido esgotados e o réu estiver para ser
condenado….tan, tan-tan-tan!…, ele é salvo pelo gongo! Ou seja: o crime prescreveu!

Prescrição…Esta é outra coisinha incompreensível: por que raios, no Brasil, o tempo anula o crime? Crime cometido é crime cometido, não importando
por quem, onde, quando e há quanto tempo. Nem mesmo meio século devia ter esse poder de anulação. O arrependimento realmente sincero, vindo do mais
fundo d’alma, tem o poder de perdoar o mais grave de todos os pecados, mas o mero passar do tempo não. E se o passar do tempo não tem o poder de
perdoar um pecado, por que o teria de passar a esponja num crime cometido?

Boa questão, mas esta não é minha indagação crucial. Ei-la: A que grupo da sociedade pode interessar essa profusão de recursos, a tal ponto de ele
formar um poderoso lobby no Congresso, para evitar qualquer reforma capaz de simplificar ritos processuais e diminuir a quantidade de recursos?

À sociedade? É evidente que não, uma vez que isto produz a impunidade e esta não interessa aos homens de bem. À agilidade da Justiça? É evidente que
não, pois isto só faz aumentar o trabalho dos magistrados e emperrar o andamento dos processos. Aos promotores? É evidente que não, por motivos
semelhantes aos dos magistrados. Aos defensores públicos? É evidente que não, pois isto só os assoberba de trabalho e não gera nenhum proveito. Afinal,
a quem pode interessar essa absurda quantidade de recursos?

Aos réus? É óbvio! Mas eles não constituem uma associação e/ou grupo, e carecem, portanto, de condições de financiar um lobby poderoso… Se é
assim, reformulemos a questão: A quem mais pode interessar, e seja um grupo e/ou associação tendo condições de financiar tal lobby?

Responderei mediante singela analogia: nada mais interessante do que a psicanálise [para os psicanalistas, é claro]. Isto porque eles têm sempre a
possibilidade de adquirir clientes cativos para o resto da  vida. E quem não os quer? [Imperdível leitura: O Livro Negro da Psicanálise de
Catherine Meyer (organiz.). Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2011.].

Os psicanalistas têm de fato o poder de fazer reservas de mercado, mas não de fazer um lobby no Congresso: não por carência de recursos, mas
porque a classe é muito desunida. Mas será que eles são os únicos profissionais liberais a quem poderia interessar reter um cliente cativo por
indefinido tempo e ter o poder de financiar um poderosíssimo grupo de pressão?

Tan, tan-tan-tan! O maestro ataca a Quinta de Beethoven, mas não para roubar galinhas…

* Mário Guerreiro, doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC
[Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de
Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética
Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999).
Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou
Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade
(Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro,
1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em
encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br,
www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário. Sistema Judiciário é Danoso e Perverso. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/sistema-judiciario-e-danoso-e-perverso/ Acesso em: 16 abr. 2025