Popularidade e STF
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Evidentemente, nenhum Judiciário, de qualquer país, deve cortejar a popularidade. A vontade de “agradar”, a todo custo, é própria de alguns políticos de segunda categoria, que os há em todos os países. Dedo indicador em riste, boca entreaberta para ensalivá-lo — antenados à direção dos ventos —, praticam uma espécie de surf institucional permanente: “aproveitar a onda”. Seguir sempre a opinião pública, certa ou errada, justa ou injusta. “É maioria? Então estou de acordo! Sou democrata em estado puro!”. Interessa-lhes apenas se “a coisa” dá, ou não, votos. Não existe, para esse tipo de político, algo tão “vago” e abstrato como o interesse público. Há “coisas”, bem concretas: votos, cargos, contatos, poder, dinheiro e amizades vantajosas.
Há, também, em todos os países, aqueles políticos sem espinha que chegam a afrontar a opinião pública. Repelão de coragem? Não: medo! Isso ocorre quando um poder ou personalidade mais forte que a opinião pública controla a política. Em países sob ditadura há sempre uma fase em que a personalidade dominadora e vingativa do chefe de Estado parece tão incontrastável que é muito “melhor negócio” aderir sempre a tal personalidade do que seguir a opinião pública que lhe é contrária, por mais certa que seja.
Critica-se muito o povo alemão porque, quando Hitler estava no apogeu, ninguém denunciava ou fingia não ver o massacre de judeus. Os próprios judeus não se atreviam a verberar a “solução final” em praça pública. Quem a isso se atrevesse — judeu ou gentio —, enfrentaria a Gestapo, ou milícias que quebravam, impunemente, os ossos de qualquer opositor. O mesmo ocorria no tempo de Stalin: quem contrariasse sua política precisaria providenciar “agasalhos’: ou de lã, para o Gulag; ou de madeira, para o caixão.
Felizmente há também aqueles políticos que realmente pensam no bem comum. Em certas circunstâncias podem até deixar passar algo que consideram “meio errado”, mas que não representa um grande dano para a nação. Lutar acirradamente contra danos menores pode significar perda de futuros aliados, em futuras votações de assuntos maiores. Sacrifica-se o ótimo para realização do bom. São bem intencionados, mas realistas. Merecem aprovação, porque a política é a arte do possível, em um mundo com raríssimos anjos. Desconheço homem público que não tenha transigido um pouco nas suas funções, sem intuito de desonesto ou vontade de prejudicar. O emaranhado de regras, no Estado moderno, é tal que é difícil não tropeçar, vez por outra, em algum fio legal solto.
O que tem tudo isso a ver com o STF? Nada, foi só uma imperfeita associação de idéias relacionadas com o tema “impopularidade” decorrente de dois julgamentos recentes: a permissão para os advogados dos réus, em ações criminais, terem acesso aos autos do inquérito policial, mesmo quando a investigação é sigilosa. E também a decisão — por maioria de votos — de que o réu só pode ser preso quando transita em julgado sua condenação, pouco importando que tenha sido repetidamente condenado nas várias instâncias anteriores. Se — na opinião da maioria votante, depreende-se — ocorrer a prescrição, ou o réu fugir antes de ser preso — caso condenado na última instância — paciência. A lei — ao que se deduz de tal orientação —, não deve ser preocupar com “questões menores”, detalhes tais como fuga, morte natural, etc. O que vale é o princípio puro, constitucional, de que alguém só será considerado culpado quando contra sua condenação não cabe mais qualquer recurso. O que, no Brasil, é quase uma lenda, pois sempre existe um tipo de recurso, chamado de embargos de declaração que, mesmo no STF, permite ao réu exigir um “esclarecimento” que, não “esclarecido” — na opinião do réu — impede o trânsito em julgado da decisão.
Vejamos, sinteticamente, as críticas contra a decisão que permite ao advogado do acusado ler o que existe contra seu cliente quando apenas se investiga a existência, ou não, de um crime; quando não há, ainda, um “contraditório”, um “processo judicial em andamento” (explicação necessária para o leigo que nos lê).
Ao senso comum — acertado, embora popular — parece evidente que um marginal de alto gabarito, endinheirado, não deve ser informado sobre o que se descobriu sobre suas atividades ilícitas. Isso porque é natural que ele, o sabendo, tomará providências visando aliviar sua situação. Ou confundindo os fatos ou ameaçando pessoas que possam trazer alguma luz sobre suas atividades ilegais. Um chefão do tráfico de entorpecentes pode até chegar ao cúmulo de providenciar — mesmo de dentro de um presídio — a morte de uma pessoa cujo depoimento o incriminará. A futura testemunha morrerá antes de falar. “Afinal, existe muito assaltante louco por aí… Não mandei matar ninguém”. E se se tratar de crime na área financeira, em lugar do gatilho ou do punhal, a força do dinheiro turvará a investigação.
Não parece seguro argumentar que o acesso aos autos do inquérito não prejudicará a investigação porque o advogado do acusado, ou suspeito, só terá acesso aos documentos e depoimentos já colhidos, não às diligências futuras, do conhecimento apenas do delegado condutor do inquérito. É que, lendo um depoimento comprometedor, o defensor deduzirá que aquelas pessoas mencionadas pelo depoente provavelmente serão ouvidas, reforçando a acusação. Aí o acusado, por conta própria, tomará as “providências”, com ameaças ou dinheiro, para enfraquecer ou impedir futuros depoimentos, ou a busca de documentos ou objetos. Um contrabandista, v.g., mandará esvaziar um galpão antes da chegada da polícia.
É da tradição, talvez mundial, que o inquérito policial não é local de “contraditório”. Contraditório existe apenas em juízo, com acusação e defesa. Investigação é só busca de fatos e provas, mas não convém que o investigado conheça o andamento dela, pelos motivos acima alegados. Não acredito que no FBI e nas polícias dos países do Primeiro Mundo o investigado acompanhe minuciosamente o que vai sendo apurado contra ele. Só fica sabendo depois, em juízo, podendo se defender amplamente.
Assim como a polícia não tem o direito de invadir nem grampear escritórios de advogados, em busca de provas contra seus clientes, não tem também, o suspeito, direito de “invadir” a sala do escrivão ou o “escritório” do delegado de polícia, em busca de informações. Os direitos ao sigilo devem ser iguais.
Argumentar, também, que em uma democracia não deve haver “investigação sigilosa” é assumir posição favorável à desmoralização pública de uma pessoa que pode, afinal, ser inocentada pela própria investigação. Não tendo havido alarde, nem publicidade, o investigado se beneficia com o segredo. Sendo pública a investigação, sempre resta uma mancha na sua reputação, mesmo que nada tenha sido apurado contra ele. “Esse cidadão esteve envolvido em um escândalo qualquer… Li no jornal”. Melhor, portanto, o sigilo, que o alarde, em termos de proteção do bom nome.
O máximo, talvez, que se possa fazer, em matéria de quebra do sigilo das investigações, está em permitir o acesso do advogado aos autos do inquérito quando o cliente foi preso em razão do que nele consta. A prisão pode, em tese, ser totalmente ilegal, o que o réu mostraria em um pedido de “habeas corpus”. Mas, ao que parece, a súmula do STF não exige que o indiciado esteja preso para permitir seu acesso ao inquérito. Por isso, é considerada liberal demais.
Quanto à súmula que condiciona a prisão ao trânsito em julgado da condenação — geralmente no STF, quando o réu conseguiu chegar até lá — vasta maioria da população, letrada e iletrada, não a aceita por considerá-la uma forma de impunidade. Uma coisa é ser tecnicamente “culpado”. Outra, é saber que ninguém, podendo fugir, vá se deixar prender.
É claro que enquanto houver recurso previsto em lei sempre existe a possibilidade teórica de que os juízos condenatórios anteriores estejam errados. É acaciana a disposição constitucional de que o réu só será considerado “culpado” quando não houver mais possibilidade de recurso. Nossa Constituição nem precisaria deixar isso expresso. Ocorre que todas as pessoas adultas sabem perfeitamente que o instinto de liberdade está presente em todo cidadão, seja ele culpado ou inocente. E esse instinto levará o réu a aguardar, em lugar seguro, desconhecido da autoridade pública, o pronunciamento final da justiça. Se mantida a condenação, com prisão algo longa em regime fechado, ele desaparecerá antes de ser preso. Não vai querer viver alguns anos nas geralmente horríveis prisões brasileiras. Isso explica a raridade raríssima de pessoas abonadas, mesmo condenadas em todas as instâncias, serem vistas em atrás das grades. Quando há prisão, é por poucos dias.
O critério de se manter preso quem foi condenado em primeira e segunda instâncias, aceito pela jurisprudência anterior, é sábio, na opinião dos cidadãos mais sensatos, sejam ou não conhecedores do Direito. Mentes mais severas até acham que para manter o réu preso, enquanto aguarda novo julgamento, bastaria a primeira condenação. Para recorrer em liberdade só com pagamento de fiança pesada, ao estilo americano. E com a prisão, decorrente da confirmação da sentença condenatória, o processo corre mais depressa, com preferência de julgamento. A pressa — que pode ser ainda mais aumentada — no julgamento dos recursos no STJ e no STF, diminuiria sensivelmente o prejuízo do réu. Este, já condenado duas vezes, não terá fundamentos morais para reclamar contra sua retenção provisória antes do encerramento de todos os recursos. A “presunção” de inocência, no seu caso, já está muito trincada.
Tem razão o Min. Joaquim Barbosa ao achar mais prudente não editar Súmula a respeito do tema, porque existe uma infinita variação de hipóteses cercando o procedimento humano. Realmente, podem surgir casos, em situações especiais, em que seria tolerável permitir ao réu, mesmo condenado na primeira e segunda instância, recorrer
Voltando ao tópico inicial, de levar em conta, pelo menos um pouco, a opinião pública, penso que os tribunais do país não devem ficar totalmente indiferentes ao sentimento popular, quando coerente com a realidade. E, nos julgamentos em exame, há sensatez nas críticas, porque cada vez mais nosso país vai se notabilizando, entre as nações, como um excelente refúgio para quem quer fugir da justiça de outras nações.
Roteiristas de filmes sobre ladrões, quando querem dar um final feliz ao belo casalzinho que conseguiu escapar com a mala cheia de dinheiro, pensam logo, rotineiramente, em embarcá-los em avião com destino ao “Riiio de Janero”, ou “Brazil”.
A comunidade brasileira, não obstante respeite os eruditos votos vencedores — que deram ao termo “culpado” um sentido talvez excessivo —, certamente aplaude de pé os votos dos Ministros Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Carmen Antunes Rocha e Carlos Alberto Direito que, sem visar a popularidade, se mostraram mais afinados com a visão realista de um problema que incomoda os mais atentos à nossa reputação internacional.
(10-02-09)
* Escritor – Desembargador aposentado
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