Judiciário

A feminização da magistratura

A feminização da magistratura

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Ainda não chegamos aos Tribunais Superiores, ocupando apenas 22 cadeiras dos Tribunais de Justiça estaduais[1], todas magistradas de carreira e nenhuma advinda do quinto constitucional. Por isso, não se pode endossar a assertiva do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Sepúlveda Pertence, de que está superado definitivamente o preconceito dos tribunais contra a mulher juíza.[2]

 

Apesar de esses dados revelarem a existência de forte discriminação contra a mulher na órbita do Judiciário, é crescente sua participação não só na magistratura, mas nas mais diversas carreiras jurídicas, podendo-se afirmar que está ocorrendo a feminização não só da magistratura, mas da própria Justiça.

 

Esse fenômeno merece ser visualizado sob mais de um ângulo. Além de analisar como a mulher é vista no âmbito profissional, há que se atentar na sua atuação no contexto jurisdicional, bem como questionar se exerce o papel de agente modificadora dos padrões machistas vigentes.

 

De primeiro, cabe destacar que toda novidade desperta atenção, acabando por ser analisada por estereótipos. Principalmente com relação às magistradas, por menos numerosas, são vistas como totens e rotuladas como ou mais severas ou mais condescendentes que seus pares, ou ainda mais ou menos adequadas para jurisdicionar determinadas varas. Essa estratificação dicotômica, estereotipada pela identificação do gênero, decorre de percepções freqüentemente inconscientes que registram um conteúdo discriminatório, pois atitudes por vezes não relevantes que refogem à média ficam mais visíveis e são potencializadas de forma generalizante.

 

Indispensável igualmente investigar se a presença maciça das mulheres na magistratura afeta o contexto das decisões judiciais. Ressalta Silvia Pimental e duas outras pesquisadoras, na obra que visualiza o Direito sob a ótica das relações de gênero, que a mulher é julgada tomando por parâmetro o comportamento padrão. Na argumentação judicial, é geralmente definida mediante adjetivos como: inocência da mulher, honestidade, conduta desregrada, vida dissoluta, expressões todas elas ligadas exclusivamente ao seu comportamento sexual. Essa adjetivação, no entanto, não é usada como referencial na análise do comportamento masculino.[3]

 

A necessidade de discutir essas questões impõe que se realizem eventos marcados por uma discriminação positiva, como o Encontro Internacional sobre a Mulher na Magistratura, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1996, e o I Encontro de Magistradas do Paraná, que ocorreu em Foz do Iguaçu em novembro de 1996. Neste evento, Denise Bruno, ao discorrer sobre Mulheres e Direito, concluiu: por se sentirem incapazes de confrontar o padrão patriarcal, por não terem consciência do mesmo, ou por não estarem dispostas a arcarem com as conseqüências de romper com as expectativas patriarcais sobre as mulheres, as juízas, apesar de terem consciência da necessidade de mudanças, não rompem com os códigos e padrões legais vigentes.

 

É necessário olhar a mulher em relação ao Direito a partir do conceito de gênero, não como sexo biológico, mas como as diferenças biológicas se expressam em determinadas relações sociais.

 

Sob essa ótica é que se precisa analisar se a inserção feminina na magistratura altera a ideologia dominante, ou seja, se há interferência da condição de gênero do magistrado para a implementação dos direitos de igualdade já conquistados pelos movimentos feministas.

 

Não basta o aumento do número de magistradas a fim de que determinados padrões de comportamento sejam alterados, com o estabelecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da violência contra a mulher.

 

No entanto, não mais se pode dizer que Judiciário é um substantivo masculino, devendo-se ter sempre presente que Themis, a Deusa da Justiça, é uma mulher.

 

 

 

 

 

[1] Dados correspondentes ao ano de 1997.

 

[2] Entrevista publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 16/11/96, Cotidiano, p. 3.

 

[3] Pimentel, Silvia, et al, Di Giorgi e Piovesan, A Figura/Personagem Mulher em Processos de Família. Porto Alegre: Fabris, 1993. p. 141.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. A feminização da magistratura. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2005. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/judiciario/a-feminizacao-da-magistratura/ Acesso em: 30 dez. 2024