Uma Construção Histórica para a Interpretação Constitucional
José Luiz Quadros de Magalhães*
O texto procura demonstrar como os processos históricos podem ser compreendidos como unidade dinâmica permanente. Não pode haver assim rupturas absolutas uma vez que toda construção política, teórica, toda invenção ou inovação cientifica parte de uma prática e uma teorização anterior. A superação de uma teoria ou uma prática política só é possível porque esta teoria e esta prática existiram. As construções teóricas no campo na hermenêutica constitucional podem ser percebidas nas práticas diárias que construíram este Direito. Assim o texto busca encontrá-las na histórica constitucional inglesa e norte-americana e na contribuição que esta história pode dar ao Direito na contemporaneidade.
Palavras chave: história, constituição e transformação social.
1- Introdução
Neste texto procuramos desenvolver algumas reflexões sobre a construção histórica do Direito e como as relações sociais produzem complexidades que são depois traduzidas e sistematizadas pelas Ciências sociais e se tornam teorias, ou em outras palavras, sistematizações simplificadoras de uma realidade complexa interpretada dentro de contextos que são dinâmicos, e, portanto, em permanente mutação.
As teorias enquanto simplificações coerentes sistematizadas do real observado, constroem códigos próprios, que passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta fundamental para a legitimação de poderes excludentes.
Simplificando e procurando simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico, organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos “senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.
Ou: muitas pessoas em muitos momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam inventando.
Um outro problema decorre destas reflexões e se refletem diretamente no Direito moderno: a crença no individuo como unidade desconectada do entorno, como uma pretensão de soberania de vontade que permanece no tempo e como uma pessoa que permanece essencialmente a mesma. Em outras palavras uma identidade individual permanente. Esta ficção liberal pretende atribuir aos indivíduos criações, construções, invenções, inovações que são construções permanentes. Assim, em algum momento, a partir de uma construção histórica coletiva, alguém chega a um resultado, uma nova teoria, uma descoberta científica, uma inovação tecnológica, uma obra artística, etc. A lógica individualista leva a que esta pessoa se aproprie de anos, décadas, séculos de construção. Assim aprendemos que fulano inventou isto, cicrano descobriu aquilo outro e assim por diante. Essa pretensão nos retira a nossa compreensão de pessoas singulares e coletivas que somos, sempre fruto da vivencia com os outros, assim como recorta processos criativos. Marx não produziu sua teoria do nada, assim como Santos Dumont não partiu do zero para a construção de seu 14 Bis, e assim por diante. Tudo é fruto de processos coletivos de construção permanente, inclusive nós mesmos. A genialidade de alguns de nós, humanos, nos faz visualizar uma espécie de pescador: alguém que sem esforço encontra melodias, pesca sinfonias, e como que uma antena aberta ao universo é capaz de visualizar obras magistrais. Outros de nós são sistematizadores, capazes de captar séculos de construção e sintetizá-los em uma criação útil. Mas o que é fundamental para compreensão do complexo processo de transformação por que passamos, é a percepção de uma dinâmica e complexa unidade de uma história que se constrói permanentemente.
2- O nascimento do constitucionalismo moderno.
O constitucionalismo moderno se afirmou com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; nos Estados Unidos, em 1776, e na França em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, mas nela já estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo como limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma referencia histórica para alguns pesquisadores.
Podemos dizer que, desde o inicio do processo de afirmação do constitucionalismo moderno no século XVIII até os dias de hoje, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu tipo, liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas estes dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas que declaram e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da pessoa humana. O que muda de Constituição para Constituição é a forma de tratamento constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de limitação ao poder do Estado, a forma como o poder do Estado está organizado e os meios existentes de participação popular e de respeito à liberdade de imprensa, de consciência e de expressão, o respeito às minorias e a diversidade cultural e étnica (regime e sistema político), a forma de distribuição de competência e de organização do território do Estado (forma de Estado), a relação entre os poderes do Estado (sistema de governo) e os direitos fundamentais declarados e garantidos pela Constituição (tipo de Estado).
Outro aspecto do constitucionalismo moderno diz respeito à sua essência. O nascimento desse constitucionalismo coincide com o nascimento do Estado liberal e a adoção do modelo econômico liberal. Portanto, a essência desse constitucionalismo está na construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada.
A idéia de liberdade no Estado liberal, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e ao afastamento do Estado do que se convencionou chamar de esfera privada protegendo-se as decisões individuais. Em outras palavras, há liberdade à medida que não há a intervenção do Estado na esfera privada e, em segundo lugar, podemos dizer, segundo o paradigma liberal, que os homens eram livres, pois eram proprietários (na primeira fase do liberalismo, as mulheres não tinham direitos e a democracia majoritária não existia). Esses dois aspectos são fundamentais para a compreensão do conceito de liberdade no paradigma liberal do século XVII e XVIII.
Embora este paradigma tenha sido superado na história do século XX, acompanhado pelas teorias que surgem de novas práticas e sustentam novas compreensões, ele retorna como farsa, como mecanismo de encobrimento do real, no final do século XX.
Por este motivo é importante ressaltar a necessidade da inserção histórica desse pensamento para a sua adequada compreensão e do papel que este desempenha em cada momento histórico: revolução ou farsa. Em primeiro lugar, é importante lembrar contra qual Estado se insurgem os liberais. Não se pode dizer que os liberais revolucionários são contrários ao Estado social ou socialista ou qualquer outra formulação histórica posterior, justamente pelo fato de que o Estado que conheciam e contra o qual lutavam era o Estado absoluto. Portanto, a primeira constatação importante é de que os liberais se insurgem contra o Estado absoluto. Quando esses pensadores visualizam o Estado como o inimigo da liberdade, têm como referencia o Estado absoluto, que eliminou diversas liberdades para grande parte da população, e transformou os posteriormente chamados direitos individuais em direitos de poucos privilegiados. Essa compreensão histórica da teoria liberal nos ajuda a entender por que os liberais compreendem os direitos individuais como direitos negativos, construídos contra o Estado, conquistados em face do Estado.
A partir do constitucionalismo liberal, o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento, uma vez que o Estado não censura sua palavra; o cidadão é livre para se locomover, uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é livre, uma vez que o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma vez que o Estado não regula ou exerce atividade econômica. Lembramos que o Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto.
Um aspecto fundamental para a correta compreensão do constitucionalismo liberal e de qualquer idéia ou teoria é a necessidade de inserção desta no contexto histórico em que ela surge. O pesquisador, o leitor interessado em compreender o pensamento de determinado autor deve conhecer o autor, sua historia e para qual realidade esse autor escreveu ou escreve. Isso evitará muitos erros de compreensão comuns e recorrentes na análise e compreensão de textos históricos. Não se pode compreender o pensamento de Hobbes sem conhecer sua história e o momento histórico que inspirou seu pensamento. Isso vale para qualquer outro pensador, e as grandes incompreensões das teorias decorrem justamente da falta de conhecimento do contexto histórico no qual elas foram pensadas e construídas, e mais, por quem essas teorias foram pensadas. Não se pode, por exemplo, ler Nietsche (um dos pensadores mais incompreendidos) sem conhecer sua história; o risco que se corre é compreendê-lo pelo avesso ou, na verdade, não compreendê-lo. Portanto, para entender a defesa que os liberais fazem da propriedade privada, a confusão que fazem entre economia livre e omissão estatal, desregulamentação e propriedade privada dos meios de produção, é importante compreender o contexto histórico e a idéia de Estado que esses liberais tinham no momento da construção de suas teorias. Ao estudarmos a história da realidade econômica (e não do pensamento econômico) desde então, perceberemos, com clareza, que esses fatores só trouxeram opressão e exclusão, portanto, falta de liberdade para grande parte dos cidadãos.
Outro obstáculo que ocorre com freqüência são as traduções. Sejam as traduções publicadas, sejam as traduções ou leituras diretas feitas pelo pesquisador e estudioso leitor. Devemos lembrar que os idiomas são sistemas complexos que relacionam significados a significantes, assim como as, muitas vezes, estreitas regras linguísticas, condicionam compreensões, vinculam palavras, limitam o pensar. As palavras e seus significados são condicionados por contextos históricos os mais distintos, assim como a gramática. Não se lê uma obra complexa com o dicionário na mão. É necessário recorrer à discussão e a busca histórica do contexto em que a obra foi escrita, traduzida, e de que forma as palavras eram compreendidas e limitadas ou ampliadas nos seus significados no momento em que foi escrita. Trata-se de um trabalho de inserção cultural. Daí nos parecer muito estranho quando alguns autores que se dizem interpretes oficiais de determinados pensadores, se qualificarem como donos da verdade dos autores estudados. Por mais que se estude um determinado autor, o máximo que teremos é a nossa compreensão, construída coletivamente ou não, daquele autor. E isto se mostra com mais intensidade quanto maior a complexidade da obra, da idéia, da linguagem, da distancia no tempo, da distância cultural e das barreiras idiomáticas.
Assim podemos pensar que a defesa do Estado forte defendido por Hobbes ocorre em uma realidade de caos decorrente da fragmentação de poder não coordenada, que trouxe constantes guerras e destruição. O Estado absoluto surge com a necessidade de se colocar ordem no caos, surge da necessidade de segurança, e daí decorre a construção de uma única vontade estatal encarnada no soberano e no conceito antigo de soberania una, indivisível, imprescritível e inalienável, já estudado no volume 2 do nosso Curso de Direito Constitucional. Do poder permanentemente negociado, da existência de diversos espaços quase soberanos, da negociação de fidelidade dos exércitos dos senhores feudais, característica final do feudalismo, surge o Estado absoluto, com um único foco de poder, uma única vontade soberana e um único exército. Isso é garantia de segurança. O Estado moderno, na sua versão absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante os impérios e a igreja (soberania externa) e perante os senhores feudais (nobres) que fragmentavam o poder do Estado, cada um possuindo seu próprio exército e poder quase soberano sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre os impérios e a Igreja, de um lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado, são a base para o surgimento do Estado moderno, que é um Estado territorial, nacional, centralizador de todos os poderes e soberano em duas dimensões, a externa e a interna.[1]
O Estado nacional é uma construção histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e desse único exército. A criação dos Estados nacionais, como Espanha e França, é um exercício de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma comum, uma religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse Estado que os faça sentirem-se parte da vontade nacional, parte do Estado nacional. O sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental para sua formação e permanência. Este é um passo fundamental para que o poder do Estado encarnado no Rei fosse reconhecido pelos súditos: criar valores e ressaltar aspectos comuns de identificação dos súditos entre si para que estes reconheçam o poder do soberano.
Entretanto esse Estado absoluto elimina cada vez mais a individualidade (o liberalismo não inventa o indivíduo, reinventa-o de uma maneira egoísta, monolítica e hoje, propositalmente descontextualizada), eliminando a vontade pessoal e o espaço de seu exercício. É nesse contexto que o pensamento liberal surge e as revoluções liberais ocorrem. Elas representam um resgate de uma liberdade perdida (ou de algo que certamente se perdeu mas não se sabe mais o que foi) há muito tempo, uma vez que a opressão do Estado absoluto tornou insuportável a vida pessoal. O Estado liberal não inventa o individuo, ele sistematiza e ideologiza o individualismo, mas, acima de tudo, o Estado liberal representa a vitória da burguesia, e logo a vitória dos interesses desta classe. Quanto ao povo, resta o discurso de liberdade, em que muitos ainda acreditam hoje. Resta a liberdade liberal do sonho da riqueza por meio do trabalho ou, melhor dizendo, da “livre iniciativa” e da “livre concorrência”.
Não nasce neste momento uma sociedade que corresponda ao discurso sempre interpretado. Não surge neste momento uma sociedade de homens livres e iguais. A liberdade e igualdade reinventadas permanecem para poucos e ainda hoje é assim na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem. Não só para poucos era a liberdade e igualdade mas para poucos também era a possibilidade de dizer o que era essa liberdade e igualdade e ainda hoje é assim na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem. Entretanto alguns contam uma outra história, encoberta, de um Estado liberal que não foi democrático, não foi livre e não foi igual.[2]
A essência do constitucionalismo liberal no seu momento inicial é a segurança nas relações jurídicas e a proteção do individuo (proprietário, homem e branco) contra o Estado. Não há uma conexão entre constitucionalismo e democracia. Se a democracia deve ser hoje elemento essencial para o constitucionalismo, no inicio do constitucionalismo liberal ela parecia incompatível com a essência deste. Como combinar a proteção da vontade de um com a democracia majoritária em que prevalece a vontade da maioria. A junção entre democracia e constitucionalismo liberal ocorre na segunda fase do Estado liberal, que estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo I[3]. A idéia de que a vontade da maioria não pode tudo e que um governante não pode alegar o apoio da maioria para fazer o que bem entender decorre dessa junção importante para a teoria constitucional. O absolutismo da maioria é tão perverso quanto o absolutismo de um grupo, e a confusão entre opinião pública e democracia é sempre muito perigosa. Logo, a democracia constitucional liberal, construída no século XIX, entende que a vontade da maioria não pode ignorar os direitos da minoria e os direitos de um só. Os limites à vontade da maioria são impostos pelo núcleo duro, intocável dos direitos fundamentais, protegidos pela Constituição, e que na época do liberalismo eram reduzidos apenas aos direitos individuais, efetivamente de poucos. Isto à época é bastante complicado pois a maioria pode desde que não afete os interesses e direitos históricos de um elite proprietária, o que tornava os limites para a democracia representativa liberal muito largos.
Desde então, o constitucionalismo evoluiu, transformou-se, regrediu nos últimos tempos e hoje se encontra em grave crise, quando o discurso econômico, de forma ideológica e autoritária, submete o Direito a seus pseudo-imperativos matemáticos. Entretanto podemos dizer que em todas as constituições modernas (sejam liberais, sociais ou socialistas) vamos encontrar sempre os dois tipos de conteúdos comuns em suas normas: organização e funcionamento do Estado com a sua conseqüente limitação do poder e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A evolução do constitucionalismo moderno coincide com a evolução do Estado moderno, o que foi estudado no capítulo 1 e 2 do tomo I do livro Direito Constitucional e revisto com outro enfoque no capítulo 2 do tomo II. Portanto não cabe aqui retomarmos este tema e remetemos o leitor à leitura daqueles capítulos.
As constituições modernas que representam o início desse longo processo de construção do constitucionalismo são a da Inglaterra (a partir da Magna Carta de 1215 e em constante processo de construção até os dias de hoje), a Constituição norte-americana de 1787 e as constituições francesas do período revolucionário de 1791, 1793, 1795, 1799 e 1804. No Brasil, a nossa primeira Constituição de 1824 (no Império) e a de 1891 (primeira republicana) são liberais e representam a primeira e segunda fase do constitucionalismo. A fase de transição para o constitucionalismo liberal no Brasil ocorre na década de 1920 e a nossa primeira Constituição social é a de
A ditadura do empresariado e dos generais, apoiada pelos Estados Unidos, tentou se legitimar com as constituições autoritárias (e desrespeitadas pelo próprio governo ditatorial) de 1967 e 1969. Essas constituições têm caráter autoritário e permanecem até a Constituição de 1988, típica Constituição social que introduz, entretanto, o novo conceito de Estado Social e Democrático de Direito, interpretado de maneira diversa pelos autores contemporâneos.
Vamos analisar a formação das constituições inglesa e norte-americana e compreender a contribuição que elas trouxeram para o Direito brasileiro e para hermenêutica constitucional contemporânea.
3- Interpretação, história e teorização das práticas jurídicas.
O Direito Constitucional evolui com grande velocidade nesses anos de crise. Podemos dizer que nunca na história os dois grandes sistemas ocidentais de Direito vem se comunicando com tanta intensidade e trazendo contribuições importantes um para o outro como a partir do final do século XX.
A mudança da compreensão do significado do que é Constituição ocorre a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes dos avanços da tecnologia (biomédica, biotecnologia, tecnologia das comunicações, tecnologia da produção entre outras), na vida das pessoas. A vida se mostra muito mais complexa do que a ciência (simplificadora por exigência) e os seres humanos felizmente não se adaptam aos sistemas prontos. Assistimos desmoronar, diante de nossos olhos, os sistemas teóricos econômicos, sociais, políticos construídos durante os séculos XVIII e XIX e implementados nos séculos XIX e XX. Assim vimos morrer a promessa liberal, o socialismo real, nos conformamos ao adiamento do sonho comunista e anarquista, assim como presenciamos propostas que se diziam mais realistas e, portanto, mais tímidas, como a social democracia, o social cristianismo, entrar em crise radical. Assistimos, hoje, a patéticos economistas televisivos, arrogantes e presunçosos (sua única defesa), afirmarem que não há salvação fora de suas pobres teorias (daí o caos que vivemos) que mandam no mundo (teorias que transformaram os seres humanos em pouco mais que ratos que reagem a estímulos de consumo e poupança). A economia neoliberal (neoconservadora) se transformou em uma nova religião inquestionável.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso, uma nova consciência jurídica começa a se expandir. A superação de um legalismo pobre é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra uma vez que não há possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo e em rápida transformação. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática. Para compreendermos as origens históricas das reflexões contemporâneas do Direito Constitucional, e como, antes das teorizações, elas já eram realidades históricas, vamos começar a estudar essa questão pela compreensão da contribuição do Direito Constitucional inglês e norte-americano para o Direito contemporâneo, que é, nesse sentido, (enquanto método e processo), global ou universal.
3.1 – O CONSTITUCIONALISMO INGLÊS
A Constituição inglesa (ou o constitucionalismo inglês para alguns) começa a nascer simbolicamente com a Magna Carta de 1215. Três são as instituições protagonistas da histórica constitucional inglesa: o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. O predomínio de cada um desses protagonistas marca períodos da história política e constitucional do Reino. No período que vai de 1215 até o século XVII, predomina a autoridade do Rei, marcando um período monárquico. Entre o século XVII e meados do século XIX, prevalece a Câmara dos Lordes, marcando o período aristocrático, e desde o final do século XIX até os dias de hoje ocorre o predomínio da Câmara dos Comuns, que seria, então, o período democrático. Alguns autores vêem no século XVIII um período misto, no qual, então, ocorreria uma união ideal das três formas clássicas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia.
Muitos equívocos foram cometidos a respeito da Constituição inglesa. Dizia-se que a Inglaterra3 (leia-se Reino Unido) não tinha Constituição ou, então, que não tinha Constituição escrita, duas incorreções. Alguns começaram a separar o inseparável, a constituição moderna de constitucionalismo, afirmando que na Inglaterra e Israel, dentre outros países, havia constitucionalismo sem Constituição. O equivoco estava em reduzir a Constituição à sua forma, não compreendendo que Constituição pode até ser forma e pode até ser matéria específica, historicamente localizada, mas sua condição necessária é a sua hermenêutica, a Constituição sempre será interpretação, compreensão, leitura histórica, portanto temporal e geograficamente localizadas. Aliás constituição é vida e vida é interpretação. Tudo é interpretação, e a interpretação é história, cultura, vida, e portanto complexidade.
Para fins de referencial histórico, a maior parte dos autores menciona a Magna Carta de 1215 como o marco inicial de formação da Constituição inglesa. A Magna Carta não é a primeira Constituição, mas nela podemos encontrar os elementos essenciais do constitucionalismo moderno: limitação do poder do Estado e declaração de direitos da pessoa.
A Constituição inglesa, a partir de então, começa a se construir sobre um tripé cuja Magna Carta constitui apenas o início. Por Constituição na Inglaterra compreende-se três bases:
• As leis escritas produzidas pelo parlamento que podemos chamar de Statute Law. As leis constitucionais produzidas pelo parlamento são Constituição não porque são elaboradas por um poder constituinte originário ou derivado, ou por observarem procedimentos legislativos especiais, mas são Constituição, porque tratam de matéria constitucional, ou seja, limitação do poder do Estado com distribuição de competência e organização da sua estrutura e território e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa;
• As decisões judiciais de dois tipos: o Common Law e os Cases Law. Por Common Law compreendemos as decisões judiciais (escritas) que incorporam costumes vigentes à época. Por Cases Law temos as decisões judiciais que se traduzem por interpretações e reinterpretações, leituras e releituras das normas produzidas pelo parlamento;
• As Convenções constitucionais, que são acordos políticos efetuados no parlamento, não escritos, de conteúdo constitucional (entenda-se por conteúdo constitucional aqui as normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competência e limitação do poder do Estado e as declarações e posteriormente garantias de direitos fundamentais).
Como se vê, a Constituição inglesa existe e é essencialmente escrita, pois dois dos três pilares de sua estrutura são escritos. Importante ainda ressaltar que as convenções constitucionais não escritas são obrigatórias e, por força da tradição, são de difícil alteração. Uma Convenção constitucional pode se transformar em lei do Parlamento, e nesse caso o seu cumprimento ou não pode ser objeto de decisão judicial. Entretanto, enquanto Convenção constitucional, esta é de competência do parlamento, e o fato de uma ruptura com uma Convenção não autoriza o Judiciário a decidir sobre o fato.
Em outras palavras, uma Convenção constitucional é um acordo parlamentar não escrito, alguns durando séculos, que tem enorme força, sendo de difícil alteração. Entretanto, para romper com uma Convenção, basta não mais aplicá-la. Esse fato para nossa cultura pode parecer fácil, mas, na cultura inglesa, extremamente tradicional, é difícil acontecer. Ocorrendo rompimento deste acordo, este fato não pode ser objeto de análise do Judiciário.
O que nos interessa no constitucionalismo inglês é a sua contribuição para o constitucionalismo norte-americano, que por essa via chegou até nós. A sua contribuição principal nesse caso não está na força do parlamento, mas na força do juiz. O Judiciário constrói a norma justa aplicável ao caso concreto, e se essa norma construída pelo Judiciário cuida de matéria constitucional ela é Constituição. O que acabamos de dizer será teorizado com maior consistência no século XX, entretanto é praticado à séculos.
Essa construção e reconstrução da compreensão da Constituição inserida na realidade econômica, social, cultural e política é fato histórico que será sistematizado em uma teoria na segunda metade do século XX. A Constituição inglesa é de extrema complexidade, pois não foi construída sobre uma única base, um texto constitucional produto de um poder constituinte originário, sistematizado, codificado, dividido em títulos, capítulos, seções, artigos, incisos e alíneas, mas é formado por diversas leis que são interpretadas, reinterpretadas e formalmente modificadas, isso tudo somado a Convenções não escritas acordadas no parlamento.
Não há na história constitucional inglesa um poder constituinte originário, eleito para elaborar a Constituição e que se dissolve depois dessa tarefa, deixando um poder constituinte derivado de reforma apto a atuar em qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais. Podemos dizer que não há na Inglaterra um poder constituinte originário nem derivado, mas um poder constituinte permanente que atua no Legislativo, no Judiciário e na cultura política. A idéia britânica da soberania do parlamento reside na afirmação antiga de que o parlamento (as câmaras e o rei) pode adotar qualquer lei. Assim, não há norma superior à lei, e logo uma lei de conteúdo constitucional pode a qualquer momento ser modificada por uma lei ordinária. A lei constitucional não o é por ter procedimento legislativo diferente, mas somente pelo seu conteúdo. Alguns ainda defendem a idéia de que aquilo que o rei ou rainha fazem em seu parlamento é direito e não há limites ao que pode fazer o parlamento (ao menos limites jurídicos por ser obvio a existência de limites históricos, fáticos). Assim os tribunais não podem recusar a aplicação de uma lei sob o fundamento de invalidade ou inconstitucionalidade, recusando-se, portanto, um mecanismo judicial de controle de constitucionalidade das leis produzidas pelo parlamento.[4]
Entretanto, recentemente, há um forte movimento em defesa da adoção de uma declaração de direitos, de uma codificação dos direitos e liberdades com um valor supralegislativo e logo suscetível de um controle de constitucionalidade. Essa tese ainda é minoritária. Entretanto, mudanças importantes vêm ocorrendo a partir da condição do Reino Unido de Estado-Membro da União Européia. O Ato dos Direitos Humanos adotado em 1998 tornou a Convenção Européia de Direitos Humanos diretamente aplicável. Embora a Convenção não tenha superioridade em relação às leis ordinárias do parlamento, um deputado que proponha uma lei deve fazer uma declaração sobre a compatibilidade desta com a Convenção. Os tribunais continuam não podendo anular uma lei do parlamento, mas devem, no caso de conflito entre uma lei do parlamento e a convenção promoverem uma interpretação que as tornem compatíveis. Sendo impossível a compatibilização, esta deve ser declarada pelo tribunal. O juiz não pode afastar a aplicação da lei parlamentar, mas, para pôr fim ao conflito, o Primeiro-Ministro pode emendar a lei sem voltar ao caso concreto que gerou o conflito.[5]
Outro aspecto importante da tradição jurídica inglesa, que decorre de maneira lógica de tudo o que foi dito, é o recurso ao precedente, como fonte do direito constitucional. Os precedentes judiciais são Constituição, na forma de decisões que incorporam tradições e costumes, e nas interpretações e reinterpretações da lei produzida pelo parlamento. Importante lembrar que a jurisdição suprema do Reino Unido é exercida pela Câmara dos Lordes, que é também integrante do Legislativo. A Câmara dos Lordes era composta, em 1999, de 758 pares hereditários e 542 pares vitalícios, indicados pela Rainha, e recentemente, indiretamente pelo Primeiro-Ministro, e 25 pares espirituais, bispos da Igreja Anglicana. Com as reformas do governo Trabalhista de Tony Blair, os lordes hereditários deixam de existir e se inicia um processo de democratização da Câmara dos Lordes com a eleição de pares ao lado dos pares vitalícios nomeados pelo Primeiro-Ministro por intermédio da Rainha. A reforma no sistema de designação dos lordes vitalícios ainda não foi implementada até Julho de 2007. Assim, os lordes hereditários perderam suas cadeiras com a exceção de 92, que permaneceram por serem selecionados por eleição. Finalmente, acrescente-se que, com as sucessivas restrições históricas ao poder da Câmara dos Lordes, a participação desta no processo legislativo se resume na possibilidade de vetos suspensivos que prorrogam a entrada em vigor de uma lei por no máximo um ano.
O precedente não equivale ao que chamamos entre nós de súmula. A súmula é uma redução absurda do caso, em que uma ementa resume toda a sua complexidade. O pior é determinar que essa súmula dos Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal deve vincular as decisões de todos os órgãos do Poder Judiciário. Para entendermos a absurda simplificação de uma súmula e a desumanização do processo no Judiciário quando impomos sua vinculação, devemos compreender o significado de um precedente. A riqueza do precedente e a sua contribuição para as compreensões da hermenêutica constitucional contemporânea estão no fato de que o precedente não se resume a uma sumula (uma ementa), mas leva em consideração toda a lógica argumentativa desenvolvida pelas partes no decorrer do processo assim como o fundamento das decisões, incluindo os argumentos de votos vencidos. Nesse sistema de precedentes, as partes devem demonstrar que, levando em consideração a situação histórica do caso em julgamento, com todo o seu pano de fundo social, cultural, econômico, pessoal, dentre outros aspectos, a discussão que envolve um precedente é se este se aplica ou não, qual precedente se aplica ou, ainda, se é necessário criar um novo precedente. Nesse sentido, é que podemos dizer que um precedente não se revoga, mas é superado pela história, cultura e valores vigentes nas sociedades, sempre em transformação.
Partindo dessa experiência, podemos resistir às simplificações impostas, utilizando a mesma lógica para rechaçar a aplicação de uma súmula. Para evitar a desumanização do processo, é necessário demonstrá-la, ou seja, é necessário demonstrar em cada caso a sua natureza única, a sua especificidade e a razão por que a súmula não se aplica.
Isso posto, passamos à análise do constitucionalismo norte-americano, modelo que contribuiu diretamente para nossa história constitucional. O constitucionalismo norte-americano se aproxima do nosso, uma vez que, a partir da experiência inglesa e da teoria francesa, os norte-americanos elaboraram um texto, produto de um poder constituinte originário, rígido, sintético e essencialmente principiológico, o que permite a força do Judiciário na construção e reconstrução de sua interpretação.
Embora não tenhamos uma Constituição com um texto sintético e principiológico, como a Constituição norte-americana, a influência do constitucionalismo norte-americano, a partir da nossa Constituição de 1891, ocorreu principalmente com a criação do controle difuso de constitucionalidade. A introdução dessa forma de controle no Brasil permite que recebamos importante contribuição teórica e prática, que ocorre com a introdução da idéia de construção de um sentido mais amplo e democrático do conceito de jurisdição constitucional. Essa contribuição é, hoje, importante para o direito constitucional em todo o mundo.
3.2-O CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO
De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu, em 1787, um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente principiológico e inicialmente, exclusivamente político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.
O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de constitucionalidade, mecanismos sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do sistema de controle entre os poderes divididos.
Sobre a Constituição norte-americana muito tem se falado, por isso muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus intérpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos Estados Unidos da América ao menos três Constituições, outros falam
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido toda leitura de um texto significa atribuição de sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, que mudam quando mudam os valores sociais. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
O processo evolutivo da Constituição dos Estados Unidos da América ocorre, principalmente, por meio das suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.
Jorge Miranda[6] afirma que a Constituição norte-americana é, simultaneamente, rígida e elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para alterar o texto ou promover emendas aditivas ou supressivas, é necessária a participação dos Estados-Membros da federação em um processo lento e complexo. Isso explica, em parte, o número reduzido de emendas. Entretanto, o principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, por meio de emendas é o fato de que esse texto sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter de mudar o texto.
Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que contenha mais princípios do que regras permite maiores mudanças interpretativas do que um texto analítico, com excesso de regras que travem mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos pode construir modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto, podemos dizer que mesmo um texto detalhado, minucioso, também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir nesse aspecto, que, ao contrário do que se diz, a Constituição dos Estados Unidos da América não é pequena, pois o seu texto sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos Estados Unidos da América, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre neste caso irá ocorre sempre, em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe, ele só passa a existir quando alguém o lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem o lê e lhe atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar, a partir daí, que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao jurista buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo, é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Esse assunto será enfrentado mais adiante e nos valemos das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo, não adotando sua teoria mas pensando a partir dela.
Voltemos, pois, a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo o mundo.
Vamos tomar uma frase (em português) que contém a idéia da igualdade perante a lei já presente na declaração de independência dos Estados Unidos:
TODOS OS HOMENS NASCEM
LIVRES E IGUAIS EM DIREITOS
Como o leitor compreende essas palavras hoje, no século XXI? Provavelmente da maneira como a grande maioria das pessoas: todas as pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religioso, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional, nascem livres e iguais em Direito.
Como vemos, a frase “todos os homens nascem livres e iguais em Direito” conquistou hoje o senso comum de milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional relativamente democrático. Foi um significado que se universalizou. Entretanto, para lermos e compreendermos essa frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A atribuição desse sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades, representa uma busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral desse princípio é hoje bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, em um universo cultural diversificado, plural e democrático.
Se buscarmos, no entanto, a compreensão dessa frase no século XVIII, pouco depois da independência dos Estados Unidos da América, perceberemos que as palavras ganham outro sentido, e logo as normas decorrentes desse princípio serão outras. O olhar de um juiz norte-americano sobre essas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia dessa frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais
A situação de exclusão e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul escravocrata e conservador geraram conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmos significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem, que é reconstruída pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Essas mudanças ocorrem na cabeça das pessoas. Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam essas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem esses valores. No final do século XIX, as mesmas palavras que traduzem o princípio da igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.
A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ter novo sentido, podendo ser traduzida da seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos só para brancos e só para negros, assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros.[7] Está criada a doutrina fundada sobre a idéia de separados mas iguais. Esse processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar como paradigma de compreensão durante algum tempo.
A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o movimento pelos direitos civis na década de 1950 e 1960, com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux Klan, empurram a sociedade norte-americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente, a doutrina do separados mais iguais cede espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica. A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ser compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independentemente de cor, etnia ou qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação de qualquer espécie.
A igualdade de direitos entre homens e mulheres, entretanto, ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos Estados Unidos da América, foi proposta a 27ª emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição, reconheceu-se que, caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da emenda. Ela não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto, a Suprema Corte passou a compreender a igualdade perante a lei de nova forma. Podemos dizer que a frase “todos os homens nascem livres e iguais em direitos” passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens, leia-se, todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.
A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de 1988, no seu artigo 5º inciso, I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem-estar social democráticos, os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível federal a partir de 1972.[8]
Como vimos, o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Esse foi o percurso de um princípio. A mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É como se fosse adotada uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disso tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito à admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt nas décadas de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista.
A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.
4 UM PRESSUPOSTO: A AUTOPOIÉSIS É UMA CONDIÇÃO HUMANA
Um pressuposto fático e não apenas teórico de tudo que foi comentado até agora, é a condição de que, enquanto vivos, estamos condenados a uma condição autopoiética. Somos necessariamente, como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela[9] biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.[10]
Estudando a aparelho ótico de seres vivos,[11] os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, também ia para a direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode parecer óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que, entre nós e o mundo, existe, sempre, nós mesmos. Entre nós, e o que está fora de nós, existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras coisas e cores, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química. Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim, podemos dizer que outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.
Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso, geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o texto vamos atribuir sentidos a essas palavras, sentido este construído a partir dos referenciais de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo. Entretanto essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.
5- Conclusão
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do que é observado.[12] Daí existirão tantas verdades quantos observadores existirem. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
A dinamicidade e historicidade da Constituição foi prática antes da teoria, processo que se repete nas outras construções teóricas e cientificas. Não há uma construção teórica absolutamente original uma vez que percebemos a unidade lógica dos processos históricos. As importantes construções teóricas que hoje se apresentam para os pensadores do Direito e especialmente da Constituição, devem ser compreendidas como fruto de uma prática histórica antiga que se reconstrói permanentemente, refletindo esta prática nas construções teóricas posteriores.
Esta percepção de unidade histórica, de inexistência de rupturas absolutas mas de transformação permanente e coletiva, nos permite compreender os processos na sua dinamicidade abandonando qualquer perspectiva conservadora.
* Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da UNIPAC; PUC-Minas e da UFMG. Diretor Geral do CEEDE-MG
[1] Sobre o Estado dois excelentes livros: CUEVA, Mario de la. La idea de Estado, Fondo de Cultura Econômica – Universidad Nacional Autônoma de México, México, D.F. CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.
[2] ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[3] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional, Tomo I, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2ª edição, 2004.
[4] HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito constitucional, São Paulo, 2003, p.197.
[5] HAMON, Francis; TROPER, Michel; BURDEAU, Georges. Direito constitucional, ob.cit. p. 197.
[6] MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição, Editora Saraiva, São Paulo, 2001, p. 84.
[7] A pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora Carla Dumont Olliveira, observa em sua pesquisa sobre a reforma da Constituição dos Estados Unidos que no caso Plessy v. Fergunson, foi questionada uma lei de Louisiana de 1890 que exigia acomodações iguais para brancos e negros, porém em partes separadas de um mesmo trem. A Suprema Corte entendeu que tal exigência era razoável e não feria a décima quarta emenda, pois ao que visava a referida lei era promover o interesse público, a paz pública e a boa ordem, e não oprimir uma classe específica. Consta, ainda, da decisão, cujo relator foi o Juiz Brown, que se as duas raças buscam igualdade social, isso precisa ser o resultado do consentimento voluntário dos indivíduos, sendo que a legislação é impotente para erradicar instintos raciais. (Grifos nossos.) Plessy v. Fergunson iniciou a denominada doutrina dos “separados, mas iguais”. Os precedentes Plessy v. Fergunson e Brown v. Board of Education foram retirados do livro The American Constitution: cases, comments, questions, p. 939-941.
[8] Segundo Geoff Eley, até
[9] MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento. Undécima edición, Santiago do Chile: Editorial Universitária, 1994.
[10] No livro mencionado, os pesquisadores chilenos escrevem: Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percepetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener otra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos. Prosseguindo, os autores afirmam que escreveram o livro justamente como um convite para afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer en la tentación de la certitumbre. (MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento, p. 5.)
[11] Os autores propõem aos leitores experiências visuais que nos demonstram facilmente como nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores, nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Os dois círculos cinza impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente, mostram como o círculo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final os autores fazem uma afirmativa contundente, mas importante para tudo que dizemos aqui: El color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo. (MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. El arbol del conocimiento, p. 8.)
[12] Cf., ainda: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.