O (Re) Situar do Direito: a Compreensão da Origem do Horizonte do Sujeito a Partir de uma Ordem Social (Auto) Determinada
Antonio Marcelo Pacheco*
Resumo
O artigo apresenta algumas condições do direito hoje, a partir de uma reflexão crítica, fixando como alternativas o direito como linguagem e representação social. Com o tema proposto se busca um olhar hermenêutico a uma questão complexa, o direito como governança e condutor de condutas dos sujeitos sociais, ou nesta impossibilidade outras formas de discurso que pretendem subsistir independente dos limites da lei. Este artigo é uma provocação ao momento de crise vivido pelo sistema jurídico nestes tempos de segunda modernidade, bem assim a própria crise da tradição que condicionou o pensamento jurídico como marco de uma racionalidade coisificada.
Palavras-Chaves: hermenêutica – linguagem –– reflexão crítica – pensamento jurídico – crise
Abstract
The article presents some conditions of the law today, since a critical reflection, fixing as alternatives the law as language and social representation. With the proposed theme it searches and hermeneutic seeing for a complex issue, the law as governance and conduct of social subjects conducts, or in such impossibility other forms of discourse that pretends to independently substitute the limits of the law. This article is a provocation to the moment of crises lived today by the juridical system in this times of the second modernity, as the own crises of tradition that conditioned the juridical thinking as a landmark of a restricted rationality.
Key-words: hermeneutics – critic reflection – language – juridical thinking – crises
Introdução
“Não sou eu que me recuso ao sistema, como pensava Kierkegaard, é o Outro”. (Emmanuel Lévinas 1961, p. 28)
Diz-nos Gabriel Garcia Marques, em sua Crônica de uma morte anunciada, que em um vilarejo pobre, na costa caribenha da Colômbia, após as festividades do casamento, ainda na própria noite de núpcias sucede uma desgraça aos noivos. A noiva que se casara na véspera, com todas as expectativas realizadas na cerimônia e mesmo após, acabara por ser devolvida à casa dos pais, já que o esposo descobrira que ela não era mais virgem.
Da indignação sucede o desejo de vingança, pois entre todos emerge a certeza de que o responsável, o “malfeitor” da desgraça deve morrer, para que o esposo e as famílias assim “lavassem sua honra com sangue”. O que impressiona na crônica é que todos no vilarejo não desconhecem o desejo de vingança, ao contrário, sabem que o crime é iminente, e mesmo que todos busquem evitá-lo, o desígnio do culpado já está determinado. Os fatos se desenvolvem e todos os personagens são conduzidos até o momento crucial em que a cena pré-determinada e antevista, na qual a vítima será “retalhada como um porco” acontece de fato.
O drama está colocado mesmo que todos os envolvidos ao longo da trama reconheçam que o ato pretendido, o homicídio é um delito incontroverso, claramente proibido pela ordem jurídica, bem assim por toda a moral no imaginário coletivo.
Nesse sentido, todos os indivíduos direta, ou indiretamente não podem negar qualquer (des)conhecimento da lei e do significado de transgredí-la, pois eles todos detinham consciência tanto da pena, quanto da conduta, e mesmo que nenhum deles tivessem deixado transparecer o desejo pela realização e consumação do crime, contudo, este vem a acontecer exatamente como previsto e anunciado ao longo da narrativa.
A ironia e uma certa dose de infortúnio inexorável por trás dos eventos está no fato de que todos aqueles que tentaram evitá-lo de alguma forma, ao final, igualmente contribuíram decisivamente para que o fato acontecesse. Em verdade há uma trama já traçada na qual os eventos dos personagens vão construindo o caminho para o homicídio, numa percepção crua do fato concreto em que comunidades variadas, ainda que ao discernir o “legal” do ilegal, não conseguem impedir a realização da ação, como se determinados por pulsões psicossociais que informam o acontecer nas sociedades. E para essas pré-determinações não há na Lei, nem mesmo no sistema jurídico força suficiente para impedir o fato ilícito, mesmo em todas as suas conseqüências.
Julgados pela própria comunidade que ou nada fez, ou mesmo que contribuiu para a consumação do delito, todos os acusados, apesar da notoriedade dos fatos, razoáveis e verossímeis frente ao senso comum da comunidade em que eles se desenvolvem, são, ao fim, absolvidos pelo júri, numa clara e manifesta reificação da idéia do grupo sobre a vontade da lei.
É nesse universo em que a ficção e o ordenamento jurídico se encontram que, ao longo dessa aproximação se busca refletir sobre a efetividade da força da Lei, da ordem sobre o espaço de opções psicoemocionais em que os indivíduos estão fadados a se desenvolver, realizar e existir.
1.A (i)legitimidade da submissão: a crise jurídica enquanto fenômeno sociolingüístico em uma sociedade de complexidade.
“(…) a ordem jurídica é a mais excelente das tragédias” (Platão)
A ordem jurídica é uma complexidade[1]. É, então, uma condição de existência e de referência aos sujeitos. É condição de existência na medida em que a idéia de civilização não pode prescindir de certa capacidade de ordenamento de comandos que sobredeterminam condutas, sociais e individuais; e é uma condição de referência na medida em que sem o outro, o ser-em-si-mesmo fica em dificuldades. Não sabe mais, por assim dizer, a quem se voltar; e, igualmente, o estar-junto fica em perigo, pois só uma referência comum a um mesmo Outro consente aos diferentes indivíduos pertencimento a uma mesma comunidade. O Outro é a instância através da qual se torna possível uma ordem jurídica, política e temporal.[2]
Segundo Dufour, o “Outro”, que é o que estabelece para o sujeito uma anterioridade fundadora, quando não está posto deixa o indivíduo perdido, levando-o a substituir este por outros mecanismos que podem constituir falsos referenciais.[3]
O Outro, aqui, é o sistema jurídico. Ao longo dos últimos cinco séculos toda a idéia de modernidade[4], de uma forma ou outra esteve associada a esta capacidade de governança da lei em conseguir condicionar ou não a conduta, em maior ou menor grau, dos indivíduos, tanto no cenário de sua atuação pública, quanto na reificação da cena privada.
Na ficção, os sujeitos estão perdidos para si mesmos, na imposição de regras de comportamento que se constituem num conjunto de (re)apresentações dos valores do grupo, isto é, na Morus do coletivo. É a vingança, mesmo que esta venha a afrontar àquilo que já está posto na fala da lei, o comportamento que o imaginário[5] social julga ser o adequado, entrementes ilegal.
Esta discussão da maior ou menor efetividade do comportamento imposto, isto é, da conduta legal e adequada aos limites da lei pode ser compreendido como o conflito entre o momento da enunciação-governança e o momento da compreensão-submissão.
Tal discussão responde as condições às quais no imaginário social acontece uma sublevação quanto à força da lei, quanto a sua fragilização no que diz respeito à conduta. Ela se insere numa perspectiva da e na crítica da transmodernidade, na medida em que é mais um capítulo nessa fase de descolamento de significados aos quais fundamos nossa atual imagem mundana.
O problema em sua raiz social diz respeito ao ponto de ruptura em que a fala jurídica, enquanto enunciação-governança ainda detém o poder de impor o enunciado, isto é, ainda seduz o sujeito condicionando-o ao comportamento desejado, e se a compreensão daquela pode ainda levá-lo a uma condição de submissão, isto é, praticar a conduta legal.
Em se tratando do sistema jurídico, o conflito entre enunciação-governança e compreensão-submissão destaca a dificuldade que tal discurso jurídico tem em desenhar um espaço de mundividência, ou como quer Luhmann, um subsistema por um lado autopoiético, e por outro capaz de ao se comunicar com os sujeitos, ainda acontecer como fundamento de um agir constitutivo, quer dizer, como um meio para inserir o indivíduo em um determinado espaço[6].
Portanto, não se trata de aceitar alguma submissão do poder judiciário a uma regra de linguagem, mas aceitar que o próprio sujeito somente alcança algum sentido na linguagem da lei, como em tantas outras linguagens signos[7] dessa modernidade havida pela ascensão dos modelos de mercado e capital.
O desafio que se coloca a essa pretensão de se realizar no sistema jurídico um (res) situar do sujeito está na necessidade presente de (re)conhecer que os discursos de justificação do direito não se confundem e não podem ser usurpados pelos discursos de aplicação; e na reificação dessa fronteira está o ponto de tensão e mutação de toda a atividade jurisdicional.
Ademais, essa tensão revela a condição do sujeito, em verdade, uma condição de assujeitamento, pois nesse momento de crise que o discurso jurídico experimenta é possível reconhecer que o ‘sujeito da/na lei’ é ao mesmo tempo autor, intérprete, narrador, personagem ou até mesmo uma imanência reificada da composição mítica da lei. O assujeitamento significa qualquer entidade-pessoa pressuposta no discurso jurídico, vez que todos mantêm com o texto jurídico alguma relação espaço-ideológico com e na lei.
A obra em questão, então, é apenas ficção? A literatura, vista do panorama da fabulação revela-se como um verdadeiro “sismógrafo” das revoluções/evoluções pelas quais têm passado o imaginário em diferentes tempos e, com isso, é um registro da presença do homem no mundo. A lei não é outra coisa que não uma fabulação. Nesse sentido, já em Gadamer[8] ela espelha de alguma maneira a tradição, quer dizer, uma historicidade-relato.
Incontestável é observar que os sujeitos têm quebrado as regras, confrontando os limites pretendidos pela lei e, dessa forma, subvertendo os limites significantes dos conceitos-tradição que a formam. A lei que se coloca diante do indivíduo está vazia, no sentido de que se espera que no próprio texto todas as ações estejam, desde sempre, (pré)vistas e (pré)atendidas. O sujeito não pode conhecer a completude do conteúdo simplesmente porque o tal completude não existe e o conteúdo é um processo.[9]
O significado deste conteúdo está à mercê do “soberano”, o que no espaço desta nossa condição de assujeitamento de fabulação, qualquer coisa pode acontecer ao cidadão que se põe (a)diante do conteúdo (pre)(a)tendido pela lei. Completa-se, assim, o cenário da imagem-representação, quer dizer, os sujeitos rejeitam o que propõe o discurso jurídico, na medida em que este não os identifica mais como antes se quis acreditar.
Na esteira de Bakhtin, a língua, em seu sentido de fala, penetra na vida através dos enunciados concretos que realiza, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na fala. Eis aí o desafio do discurso jurídico, vez que no campo do imaginário as condutas-comportamentos, não conseguem ser (re)apresentadas pelos limites significantes dos conteúdos da lei.
Ainda, o enunciado da lei – oral e escrito, primário e secundário, em qualquer esfera de comunicação – proposto pelo sistema jurídico é na sua própria proposição um bem simbólico coletivo, querendo com isso desconhecer que todo enunciado é sempre uma significação individual, e por isso mesmo incapaz de refletir a individualidade de quem fala, ou escreve, bem como não tem como impedir que a compreensão seja sempre resultante de uma pré-compreensão de quem ouve ou lê.
Portanto, o falante, seja o sistema jurídico, ou mesmo o indivíduo em condições de fala tem, desse modo, a possibilidade de se individualizar e também ao seu discurso não por meio de um egocêntrico sistema gramatical, ou da expressão de uma subjetividade pré-social, mas como interação viva de todas aquelas vozes sociais que o formam.
Autorar, nesse sentido transmoderno, é orientar-se na atmosfera heteroglótica[10]; é assumir uma posição estratégica no contexto da circulação das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da heteroglossia dialógica de toda a fala. A língua, enquanto significação da fala penetra nos enunciados, aqui enquanto condutas normativas, que igualmente pretendem penetrar na fala. É, portanto, uma condição de círculo lingüístico heteroglótico, no qual a fala é autoria do sujeito desde que acontecer no coletivo que o faz sujeito.
Nesta capacidade de autorar é que se percebe uma subversão da autoritariedade, vez que novos cenários, discursos e fabulações confrontam o campo tradicional da lei. Mais especificamente, o discurso jurídico tem como discurso objetivo uma fixação em refugiar-se numa impessoalidade justificante, revelando uma onipresença da instância de enunciação no texto jurídico. Todo o texto pressupõe, em última instância, um autor por mais indiferenciado que este seja. O texto jurídico, enquanto fabulação, não escapa também à inscrição de um determinado ponto de vista, ou seja, ao inevitável pressuposto de um sujeito na medida em que não existe um ponto de vista neutro e objetivo desencarnado, isto é, sem alguém.
A lei é apenas uma máscara que representa uma estratégia de dominação, criando e se refundando num movimento circular indivíduo-coletivo, com a vã (pré)tensão de excluir dos limites de sua fala a singularidade na medida em que (re)afirma o sujeito social, genérico e totalizante.
Mesmo neste círculo de perdição-(re)velação, os indivíduos têm escapado aos condicionamentos das condutas esperadas, reconhecendo, quando não em si mesmos, uma capacidade de realizar o ato jurisdicizante pelas próprias condições do grupo, independente da vontade da lei. Matar quem praticou um homicídio é um ato ilegal, mas é inevitável realizar a ação para que esta não naufrague na homeopatia do procedimento judicial. Por não realizar-se num sujeito, mas nos sujeitos, o sistema jurídico é obrigado a transgredir a transgressão, e assim os assassinos confessos, precisam da absolvição.
2. Da crônica de uma morte anunciada ao perdimento do Leviatã.
“… vivia em um Estado de Direito e reinava a paz em toda a parte, todas as leis estavam em vigor, quem ousava cair de assalto sobre ele em sua casa?”. (Kafka)
O conceito de sujeito tem sido central desde a emergência da modernidade histórica. A subjetividade é um dos princípios estruturadores do imaginário pós-renascimento. E a desintegração das concepções religiosas no mundo moderno deu origem ao império da racionalidade, largamente apoiada numa natureza de individualidade em que o mínimo-eu é soberano das condições expressas pelo mercado.
A fabulação do mercado e do capital justamente confirmam esse processo de vitória do sujeito mínimo-eu. A invenção cartesiana da subjetividade opõe o sujeito ao objeto, o individual ao geral, a conclusão singular ao resultado coletivo, de modo que o sujeito se torna a peça essencial da teoria do conhecimento.
Numa tentativa de refluxo a este subjetivismo exarcebado, o desenvolvimento das sociedades modernas busca expressão na formação de esferas de valores generalizantes tais como o Estado, a sociedade, a ciência, a moral, a arte, o direito, entendidas como encarnações do princípio de outra subjetividade, àquela (re)conhecida como sociedade.
O texto jurídico pressupõe, com efeito, o ato de conhecimento do sujeito com o mundo, numa clara intenção de despersonalizá-lo nesse espaço de mundividência. Verdadeiro paradoxo, este sujeito do conhecimento implica sempre um indivíduo, ou seja, uma pessoa, o que leva a um ponto de tensão-mutação entre o que pretende àquelas esferas generalizantes (fundamentalmente o Estado e o direito), e a capacidade estimulada pelo mercado e pelo capital do sujeito-individualidade.
A resposta de ambos, Estado e direito têm sido (re)forçar uma linguagem de justiça pública, em que o castigo disciplinar deve ser essencialmente corretivo, constituindo-se mais num exercício com vistas ao aperfeiçoamento do desempenho daqueles comportamentos coletivos e esperados do que necessariamente a defesa de um sujeito.
Castigar é exercitar sobre o sujeito a fabulação da ordem da lei, da conduta permitida, do comportamento possível. O sistema de micropenalidades que especifica punições em caso de desvios nos comportamentos (in)desejados, não poderia abdicar do fechamento específico em uma interioridade, ou seja, não poderia prescindir de um tipo de confinamento que assegure a organização e distribuição interna dos corpos a serem disciplinados. Além disso, o controle minucioso do tempo também obedece à lógica da disciplina, articulando a permanente recorrência do ciclo processual – o que pretensa e arrogantemente parece garantir uma defesa de direitos individuais.
É aqui que a relação Estado/sociedade/direito/indivíduo se coloca a mercê, como quer o positivismo, em todo e qualquer fato, a uma detenção da lei na vontade do Estado-juiz/pastor, que encarna aqui a figura do (ir)responsável pela (des)ordem social.
O Estado, como a mídia, busca acondicionar conceitos no imaginário, mas como o mercado simbólico não é uma racionalidade de mão única, inclusive no próprio espaço virtualizado, a resposta é a criação constante e inflacionária de leis, ao mesmo tempo em que se entrega ao Estado-juiz/pastor a condução de toda e qualquer (re)ação do sujeito, transformando-o numa condição de zelador de verdades (re)veladas e parciais, o que contrário senso, amplia o espaço de resistência e conflito.
Segundo Deleuze, tal “possibilidade” de penalização dos sujeitos “define-se, com efeito, pela oposição dos fluxos, a alternância dos pólos, a sucessão dos períodos: um contrafluxo de lei para um fluxo de desejo, um pólo de fuga para um pólo de repressão, um período de crise para um período de compromisso”[11]
Deste modo, a condição da lei em buscar o assujeitamento dos sujeitos é finita por seu caráter circular, operando por ciclos recorrentes, fato/lei/fato, numa (in)capacidade de perdição da própria condição do fato, uma vez que a fala jurídica é limitada e descontínua em função de seus movimentos de oscilação e generalização. A jurisdicialização se afasta e se aproxima, operando-se pela tensão dos fluxos opostos, fato e norma, direito e dever, permissividade-liberdade e confinamento-castigo. O que exsurge deste movimento circular é a fragmentação discursiva da sociedade, efeito da excessiva individualização do mercado, da globalização, ou do surgimento de movimentos sociais, que se refletem numa espécie de estilhaçamento jurídico interno[12].
Os indivíduos perderam o medo da lei, uma vez que a banalização individual lhes permitiu superar, agora sem um Prometeu libertador, àqueles campos de sujeição e controle apenas encontráveis nos limites do discurso jurídico.
Contemporaneamente, o maior desafio do direito é a perda desta unidade romântica e uma conseqüente desconstrução imposta por vários sistemas particulares de regulação que compõem a atual arena nacional e global. Outros tipos de regulação normativa social se constituem em direito sem ou para além do Estado e da própria ordem jurídica. São produtos de uma série de discursos altamente especializados, frutos do desenvolvimento de regimes privados de governança, e que conservam certa autonomia do direito nacional e do direito internacional público[13]. Tais fenômenos sociais têm o condão de exercer tarefas administrativas, regulativas e de solução de conflitos em novas áreas e sob novas formas, que tendem a escapar da estrutura e da ‘burrocracia’ estatal.
Esta competição produz um esmagamento daquela capacidade da norma jurídica, que responde com uma invasão da interioridade, com uma tentativa de sujeição de todos os espaços e que busca, desta maneira, pulverizar a unicidade do sujeito ou, então, através de um receituário de leis busca alcançarem o triunfo de uma exterioridade que faz do indivíduo um objeto, um esboço caricatural, um destroço à mercê da figuração normativa tradicional. Quer este procedimento regulativo estatal e excessivamente normativo, que o sujeito se torne um ausente de si devido às forças que pretendem submergi-lo na idéia de um acondicionamento normativo, isto é, reduzi-lo à condição de um vegetal jurídico.
O sujeito, inscrito neste contexto do texto de lei é marcado por certa negatividade, por certo teor impessoal que alguns chamam de sujeito social e legal. Ele (re)surge, assim, como repetitivo, saturado de aspectos socializados, que o atravessam, retirando-lhe aquela unidade existencial. A reflexão de que a resistência é uma prática comum o desperta a atravessar a crise e a se dirigir para uma forma de dissolução, e nos hiatos desta patologia estatal-legal, os sujeitos se libertam numa perdição a outras fontes de discursos justicializantes.
3. O último ato: a crônica de uma morte anunciada é ilícita?
“A literatura inclui o invisível da sociologia, o indivíduo humano com sua complexidade, e a imprevisibilidade de alguns atos humanos”. (Adorno)
Na obra em questão, a linguagem empregada aponta alegoricamente para o fato de que a dominação da ordem legal somente pode ser percebida devido a todas àquelas concessões que o dominado, isto é, os sujeitos fazem a ela.
A concessão gera a possibilidade da validade e da própria eficácia da lei. Na submissão, uma das formas mais essenciais para a concessão é que se reconhece as entidades normativas e todas as justificativas que sustentam discursivamente a vinculação, ora por medo de seu poder, ora por conformismo ao que já está posto.
Adorno e Horkheimer já afirmavam que “o sentimento de horror materializado numa imagem sólida torna-se o sinal da dominação”. A lei é um horror, pois por baixo de toda a imagem de controle da (des)ordem está a ossificação da estrutura social. Esse horror é necessário de ser (re)afirmado constantemente, num exercício que, numa sociedade multimídia como a atual foi, de certa forma, bastante facilitado, mas ao mesmo tempo, presente em uma excessiva exposição igualmente sofreu um desgaste que conduz a um ponto de tensão entre obedecer e contrariar/ enfrentar/desobedecer. Esse ponto de tensão é o nó górdio da atual crise do sistema jurídico, conforme se percebe na efetiva banalização da violência social.
Este caráter psicossocial das formas do pensamento e da reengenharia do social através da comunicação da lei pode ser visto como uma expressão tanto de busca pela solidariedade perdida (ainda que sempre idealizada pela filosofia clássica e pela atual ‘onda’ dos direitos humanos), quanto pelo conformismo de uma fragmentação da idéia de homem. A resistência é um testemunho de que a unidade impenetrável da sociedade e da dominação se estilhaçou frente à força dos fatos, frente à complexidade de uma sociedade de fortes e (in)definidas significações. Enquanto cidadãos, todos os moradores descritos por Gabriel Garcia Márquez são meros objetos em poder das instituições, assim como se pode observar na própria realidade social, hoje, não apenas exemplificados por sujeitos de países de terceiro mundo, mas por todos os indivíduos ao longo da globalização. São os seres humanos e as próprias instituições criadas que alimentam a força da (in)justiça ao fazer as concessões que a lei e aquelas instituições exigem deles.
Os instrumentos da dominação destinados a alcançar o grupo – a linguagem, as leis, as políticas públicas, por fim os aparelhos ideológicos do Estado – devem-se deixar alcançar em todos, caso contrário estarão perdidos para cada um dos indivíduos da sociedade e de suas realizações jurídico-ideológicas.
É assim que o aspecto da racionalidade da lei se impõe na dominação como um aspecto que é também distinto dela. A objetividade do meio, da norma, da imperiosa regra de conduta, que as torna universalmente disponíveis, essa ‘objetividade’ para todos já implica numa crítica da dominação da qual a resistência surgiu como uma de suas alternativas. E tal surgimento, inevitável, submete o normativismo jurídico a um ponto de tensão que leva ao reconhecimento de uma condição de crise sem possibilidade de solução.
Em nosso cadinho de realidade, ao longo dos dias, novos campos surgem, numa afronta direta e mais e mais aberta às formas legais da lei. Mas, em uma outra crônica já se anuncia a morte de uma idéia de sociedade, de uma legalidade e de uma jurisdicização aos quais os tribunais ainda teimam em nos (re)apresentar, mesmo que ao custo de se tornarem mais e mais distantes dessa mesma representação.
Referências Bibliográficas:
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*Mestre em Direito Público pela UNISINOS, especialista em Ciência Política pela UFRGS, graduado em História, Filosofia, Sociologia pela UFRGS e Direito pela PUCRS, professor da graduação e do pós da UNIFRA/SM, ESADE, Verbo Jurídico, IDC e CETRA. Advogado
[1] É significativo compreender a complexidade a partir da sua condição fenomenológica, quer dizer, nesta perspectiva o que se quer é outra forma de se perceber o sujeito no mundo, num procedimento que busca atribuir um conjunto de sentidos aos seres e as coisas, na mesma medida em que alcança significado por eles, isto é, o pensamento complexo é uma condição de reinventar tanto um lugar para o sujeito, quanto uma significação, compreendendo-o não mais como um mero ser-jogado-no-mundo, um algo externo e imposto, mas como um sujeito-ator mundano, numa práxis e numa presentidade como ser e não como simples objeto.
[2] Já os filósofos gregos chamavam a atenção para a importância do Outro, naquele conceito chave desenvolvido desde os pré-socráticos conhecido como alteridade. A condição para a existência do direito é a sua condição de relação. O sistema jurídico necessita da sua capacidade relacional para justificar-se enquanto signo no imaginário social.
[3] DUFOUR, Dany-Robert. Les désarrois de l’individu-sujet, 2001. A expressão de falsos referenciais, aqui postos significam, para este autor, todos àqueles outros espaços de determinação de conduta e de relação que não apenas os reconhecidamente oficiais. Entretanto, numa condição de desterritorialização dos conceitos fundamentais do espaço social estes acabam por assumir o hiato de significados que por uma ou outra razão, não contemplam mais a expectativa significante dos sujeitos sociais.
[4] A modernidade não é entendida aqui como aquele corte meramente didático do discurso histórico que a transformou em uma fase da evolução humana. Ela é uma forma de representação da realidade, estabelecida sob certas estratégias discursivas que em muito ainda não foram superadas. Estas estratégias discursivas manifestadas a partir de conceitos no imaginário ainda se reproduzem na atualidade, criando um paradoxo no espaço da ciência, pois por um lado, com a entrada do novo século se admite a entrada também de uma era pós-moderna, mas por outro lado, observando-se mais de perto os sujeitos sociais, muitos grupos ainda nem mesmo superaram a falta de condições de higiene, moradia, habitação e saúdes básicas, encontrando-se, assim, numa existência que em tudo não conseguiu superar a modernidade. Neste sentido, Marshall Berman afirma que “A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades… O pensamento moderno, desde Marx e Nietzsche, cresceu e se desenvolveu de vários modos; não obstante, nosso pensamento acerca da modernidade parece ter estagnado e regredido”, In: Berman, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.23.
[5] O imaginário não é entendido aqui como a criação de alguma representação ontológica. O imaginário se constitui enquanto representação de si mesmo. Não se pode entendê-lo como junção de sujeitos que reconhecem alguma unidade conceitual, pois se assim fosse, todo o seu sentido estaria dado por quem tem condições de fundá-lo e justificá-lo. Estão no imaginário as condições para a sua auto-reprodução, pois que ele detém em si mesmo as condições para a sua evolução. Neste sentido, mantém com o tempo uma relação independente daquela que este mantém com os sujeitos, Ainda que como o tempo ele somente aconteça na reflexão destes. “O imaginário não é a partir da imagem no espelho ou no olhar do outro. O próprio ‘espelho’, e sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário que é criação ex nihilo. Aqueles que falam de ‘imaginário’ compreendendo por isso o ‘especular’, o reflexo ou o ‘fictício’, apenas repetem, e muito freqüentemente sem o saberem, a afirmação que os prendeu para sempre a um subsolo qualquer da famosa caverna: é necessário que (este mundo) seja a imagem de alguma coisa. O imaginário de que falo não é imagem de criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos”. In: Castoriadis, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. São Paulo: Paz e Terra. 1986, p.13.
[6] Só há sentido em se falar de sistema jurídico na medida em que se possa aceitar que este não está determinado por nenhuma gênese ontológica, pois este não pode ser reduzido a uma criação exclusiva de um agente qualquer. Há em relação ao subsistema jurídico uma necessidade de se reconhecer a sua capacidade autopoiética, quer dizer, uma condição de reprodução que se dá a partir da diferenciação, e do reconhecimento de uma condição dialética aberto/fechado, sem que a essa dialética se necessite uma síntese essencial e absoluta, na medida em que o direito mantém uma constante comunicação com o entorno, nem sempre clara e lúcida. LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociais. Lineamentos para una teoria general. Madri: Anthropos, 1998, p.172.
[7] O conceito signo não é de fácil significação, até por que esta fica a mercê da corrente ideológica ao qual se satisfaz o seu observador, mas, se pode dar uma definição mínima, do gênero, isto é, “’um signo é alguma coisa colocada no lugar de outra coisa e que vale por esta coisa’, já que o próprio de um signo é possuir uma significação”. in: AUROUX, Sylvain. A Filosofia da linguagem. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998, p.97.
[8] A percepção é uma construção de sentido, exclusivamente inédita na fala de um determinado produtor de sentido que emite uma estratégia discursiva através do uso da linguagem, mas que, inequivocadamente traz uma tradição, conforme já percebera Gadamer, que determina o próprio discurso elaborado. Goldsmith, neste sentido, declara que “em qualquer momento nós detectamos apenas uma pequena porcentagem dos dados que estamos geneticamente capacitados a detectar – aqueles que a nossa formação e cultura nos ensinaram a ver como relevantes para o nosso comportamento. A percepção só pode ocorrer baseada em um modelo mental prévio, cujos aspectos gerais refletem a experiência da espécie e cujas características particulares são em grande parte aquelas do indivíduo no interior do seu grupo cultural.
[9] “(…) problema de la eficácia de uma norma es el problema de si la norma es o no cumplida por las personas quienes se dirige (los llamados destinatários de la norma jurídica) y, en el caso de ser violada, que se la haga valer com médios coercitivos por la autoridad que la há impuesto”. in:BOBBIO, Norberto. Teoria General del Derecho. Madri, Debate, 1996.
[10] Este conceito não é recente, pois já está cunhado desde a década de 30, principalmente por Bakhtin e Tzvetan Todorov, para encenar uma condição da linguagem num contexto de sociedade, quer dizer, a compreensão da linguagem enquanto meio de comunicação entre sujeitos situados num determinado espaço de sociedade, de imaginário. Diferentemente destes teóricos, a condição heteroglótica é compreendida como uma fala individual com efeitos sociais, pois toda a enunciação, mesmo que partindo de um algo comum geral é uma construção do indivíduo, das suas estratégias semânticas, de seu capital simbólico e do próprio campo social aonde enuncia. O efeito será, impreterivelmente, social, uma vez que o individual está obrigado à condição de coletivização.
[11] DELEUZE, G. & Guattari, F. (1995) Mil Platôs.v.2. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1989, p.77.
[12] Nesse sentido, abordando a tendência de fragmentação dos conceitos, o estilhaçamento dos conceitos jurídicos ou do direito – zersplieterung – , ver a contribuição de Erik Jayme. JAYME, Erik. “Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado”. Revista dos Tribunais. São Paulo, n.º 759, 1999, p. 36.
[13] TEUBNER, Gunther. “Reencontro com ‘il buon governo’”. In: TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade, p. 276.