Filosofia do Direito

Breve Introdução ao Estudo da Dogmática Jurídica

Gustavo Henrique Carvalho Schiefler[1]

 

RESUMO

 

Este artigo tem por objeto a análise do tema da dogmática jurídica. Primeiramente, expõem-se características do assunto: conceito, objeto de estudo e a sua correlação funcional com a zetética. Discutem-se, então, as críticas feitas ao modelo dogmático. A partir disso, argumenta-se sobre a ineficácia do Direito sem que haja um sistema dogmático como base da segurança jurídica concomitante com a presença do pensamento zetético para acompanhar as mudanças sociais, ou seja, a função social da dogmática jurídica.

 

Palavras-chave: Dogmática Jurídica. Filosofia do Direito. Zetética.

 

Introdução

 

Fundalmental para a formação intelectual do jurista é ter o conhecimento da dogmática jurídica e da sua correlação funcional com a zetética. Somente assim, terá condições para operar o Direito de forma a respeitar a função exercida por estas duas maneiras de observar os fenômenos jurídicos. Este é o assunto abordado pelo presente trabalho, no qual são tratados a importância, os conceitos, os sujeitos, os objetos e a função da ciência jurídica apoiada por estes métodos de análise do Direito.

 

1 Características da Dogmática Jurídica

 

A dogmática jurídica é o método de observar, analisar e atuar perante o Direito segundo orientações cujos pressupostos são provados de forma cognitiva ou são levantados por experiências reais geradas por casos concretos ocorridos anteriormente. Há, ainda, a possibilidade de a orientação ser fundamentada em valores e princípios gerais do Direito.

 

Preocupa-se, portanto, a dogmática, em orientar a ação e possibilitar uma decisão, sempre calcada em premissas estabelecidades, pressupostos válidos conforme a lógica, experiência concreta ou valores fundamentais do Direito. Estes pressupostos só serão modificados conforme o que está instituído nas normas constitucionais, ou mesmo, superiores à norma incidente, adotando a formalidade estabelecida para que este fenômeno ocorra. Com isso, a dogmática pretende instaurar uma sociedade juridicamente segura, retirando parte da área de decisão do operador do Direito, que deve agir de maneira a respeitar os limites do que foi imposto pela legislação. A interpretação do jurista, desta maneira, ocorre sobre e conforme a norma em vigor.

 

Nesta mesma linha de pensamento está o renomado jurista João Maurício Adeodato:

 

“A dogmática jurídica preocupa-se com possibilitar uma decisão e orientar a ação, estando ligada a conceitos fixados, ou seja, partindo de premissas estabelecidas. Essas premissas ou dogmas estabelecidos (emanados da autoridade competente) são, a priori, inquestionáveis. No entanto, conformadas as hipóteses e o rito estatuídos na norma constitucional ou legal incidente, podem ser modificados de tal forma a se ajustarem a uma nova realidade. A dogmática, assim, limita a ação do jurista condicionando sua operação aos preceitos legais estabelecidos na norma jurídica, direcionando a conduta humana a seguir o regulamento posto e por ele se limitar, desaconselhando, sob pena de sanção, o comportamento contra legem. Mas não se limita “a copiar e repetir a norma que lhe é imposta, apenas depende da existência prévia desta norma para interpretar sua própria vinculação”
(ADEODATO, 2002, p. 32)

 

Segundo o exímio autor Miguel Reale, a interpretação dogmática do jurista é o momento máximo de aplicação da Ciência do Direito, é “quando o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos de que se compõe.” (REALE, 2003, p.322)

 

A dogmática jurídica possui funções típicas da tecnologia, como ensina Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Suas premissas básicas devem ser tomadas de modo não-problemático, pois somente assim poderá criar as condições para a ação, ou seja, a decidibilidade de conflitos juridicamente definidos. (FERRAZ JÚNIOR, 1990) A aproximação frente à tecnologia encontra-se em dois motivos principais: a adoção de uma postura não-problemática em face a seus pressupostos e a adoção de uma função voltada para a decidibilidade dos casos concretos. Desta forma, o saber jurídico-dogmático pretende alcançar a estabilidade social, conferindo segurança jurídica, pois condiciona a solução dos conflitos de forma a causar a menor perturbação social possível.

 

Conforme o mesmo autor, as funções essenciais do saber dogmático são as seguintes: função pedagógica, função de desencargo e função institucionalizante.

 

A função pedagógica consiste na modelagem da visão dos juristas no que diz respeito a determinados conflitos sociais. Desta forma, há certa padronização da resposta jurídica ao ocorrer determinado fato jurídico. O Estado – que detém o monopólio da coerção para resolução dos litígios – transmite confiança à sociedade de que existe resposta e de que maneira ela ocorre após determinado fato jurídico.

            A função de desencargo indica ao operador do Direito algumas soluções possíveis para determinado conflito, desta forma, orienta a ação dentro dos limites estabelecidos pela norma em vigor para a interpretação do operante.

 

A função institucionalizante diz respeito à concepção e sustentação de uma tradição jurídica comum e segura para quem lida com as leis. Trata-se da legitimação das decisões através da institucionalização dos poderes do Estado, que criam e aplicam a legislação, sem retirar a interpretação necessária para cada caso concreto, servindo como guia do jurista perante o litígio.

 

A teoria zetética do Direito, por sua vez, tem como fundamento o questionamento de pressupostos, a dúvida. A zetética busca o processo de fundamentação, justificação e questionamento, promovendo a quebra de dogmas. O zetético é a dissolução das opiniões, a especulação explícita e infinita. Preocupa-se com o questionamento dos significados, perquirindo o que é e não o que deve ser.

 

Assim, para facilitar o entendimento da correlação funcional entre a dogmática jurídica e a teoria zetética do Direito, é necessário que se explicite as diferenciações básicas.

 

A dogmática procura a ação, enquanto à zetética importa a especulação. A zetética não tem reserva em perquirir, sentir dúvida, já a dogmática almeja respostas. A zetética se faz de questionamentos infinitos, a dogmática tem finitude. A zetética é informativa; a dogmática, por sua vez, além de informativa, é diretiva.

 

2 Da Crítica feita à dogmática

 

Interessante fenômeno a ser observado é a tentativa de se desconstruir a função da dogmática jurídica através de críticas pouco fundamentadas  ou de argumentações incoerentes – falácias – dirigidas ao jurista que adota a crítica como ideologia, apenas.

 

O discurso corrente na academia de Direito é contra a dogmática. Esta seria a raiz maléfica da fraca qualidade do ensino jurídico superior no Brasil, pois tomaria o espaço das disciplinas reflexivas, tornando-as insuficientes para uma boa formação.

 

Além disso, o modo dogmático de ordenar as relações sociais através do respeito à legalidade traria como consequência a imposição de grupos sociais sobre outros, ou seja, o beneficiamento dos grupos opressores sobre os grupos oprimidos. Desta forma, tenta fundamentar a luta de classes marxista na doutrinação dogmática. Esquece-se que toda interpretação da realidade é feita por indivíduos, que são dotados de valores e experiências diferenciados. Portanto, para que haja segurança jurídica, deve haver limites estipulados para a interpretação e atuação do jurista, exatamente o que a dogmática jurídica promove. Não é função da dogmática jurídica inibir a interpretação do jurista, mas sim delinear os caminhos por onde a reflexão e decisão deverão ocorrer, conforme a legislação imposta.

 

“É que as leis devem, segundo a melhor técnica, ser redigidas em termos gerais, não só para abranger a totalidade das relações que nelas incidem, senão também, para poderem ser aplicadas, com flexibilidade correspondente, às mutações de fato das quais estas mesmas relações resultam.”(VELLOSO, 1994)

 

A dogmática jurídica é tratada como inimiga do Direito. Desde o ingresso na academia, o estudante é levado a crer que as mazelas do ensino são causadas pelo tratamento técnico do Direito. Esquece-se que, na verdade, possuem raízes na insuficiente formação e atualização pedagógica dos docentes, no precário incentivo à pesquisa científica e na escassa estruturação dos cursos no que concerne à qualidade de ambiente de ensino, de equipamentos e remuneração dos profissionais envolvidos.

 

Veja, por exemplo, o que se encontra em artigos científicos escritos por acadêmicos de Direito:

 

“Se os alunos de Direito pudessem apenas aprender as leis e aplicá-las, ou seja, serem meros repetidores e operadores mecânicos das normas jurídicas sem precisarem aprender sobre as características da sociedade, na qual indivíduos estarão em conflitos e estes alunos resolverão, para eles seria ótimo. Mas isso seria como se estes alunos estivessem presos aos grilhões dos pés ao pescoço e dentro da caverna de Platão, vendo apenas as sombras; eles não querem discutir o direito de outra forma, ou seja, de forma reflexiva, que gere dúvidas e discussões, não querem enxergar a luz, a realidade e sim os objetos refletidos em sombras.” (DUARTE, 2004) 

 

Atribuem ao ensino dogmático, e não às reais causas da baixa qualidade de ensino jurídico superior, o pequeno índice de aprovação para o ingresso na Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.

 

Esse baixíssimo índice de aprovação nesses exames se dá, em grande parte, à dificuldade que os alunos têm de interpretar e responder às questões. Dificuldade essa, que vai ser a mesma para interpretar as normas e aplicá-las ao caso concreto. Tudo isso retoma a discussão sobre a forma pragmática com a qual os alunos aprendem durante o período acadêmico. E é aí, novamente, que se volta a perceber o quanto é importante uma nova forma de aprender o direito, que é se utilizando do enfoque zetético da hermenêutica jurídica para uma melhor formação dos alunos e que no futuro não volte a ter resultados tão vergonhosos nesses concursos. Portanto, que se esteja em convivência com a realidade social. (DUARTE, 2004)

 

Esta linha de raciocínio é típica do discurso corrente que se tenta impregnar na academia, uma valorização da zetética e da desconstrução de dogmas fundamentais para a decidibilidade dos casos concretos na prática jurídica em detrimento da necessária técnica jurídica, guia e limitadora da interpretação do operador do Direito, garantidora da segurança jurídica necessária a um sistema judicial eficaz.

 3 A função social da Dogmática Jurídica

       A própria teoria dogmática percebe que deve haver uma constante reformulação de seus conceitos, pois seu estudo vincula a oposição entre norma e realidade. O processo normativo, portanto, evita que a imposição legalista estatal se torne obsoleta. Tércio Sampaio Ferraz Júnior entende a positivação do Direito como característica fundamental da dogmática e responsável pela mutabilidade que a ciência jurídica possui, conforme os procedimentos formais adequados.

“Para entendermos a Dogmática Jurídica comtemporânea, é necessário reconhecer que ela nasce pelo fenômeno da positivação. Este, como já vimos, é caracterizado pela libertação que sofre o Direito de parâmetros imutáveis e duradouros, de premissas materialmente invariáveis, apresentando uma tendência a um certo formalismo e institucionalização da mudança e da adaptação através de procedimentos cambiáveis, conforme as diferentes situaçãoes.” (FERRAZ JR., 1998, p. 84-85)

 

A lei positivada é a problemática da dogmática, de forma a delinear o problema central dela. Seja qual for o objeto observado, sempre envolverá uma questão de decidibilidade sobre a legalidade posta. A função da dogmática consiste em prever conseqüências pragmáticas para todos os casos concretos, de maneira a solucionar uma problemática com a menor perturbação possível.

 

Quando um jurista se depara com um caso concreto litigioso, inicia-se uma investigação jurídica. Para este processo, então, que há dois métodos de investigação: questionamentos e respostas. Se os questionamentos são mais enfatizados em relação às respostas, adquire-se uma postura crítica, hipotética, problemática. Ao contrário, se as respostas são enfatizadas, são exauridas as dúvidas, predominando a decidibilidade, a ação, afetando materialmente o próprio caso concreto. No primeiro caso, temos a zetética, no outro, a dogmática. Enquanto a função da dogmática é ressalvar as opiniões e o próprio ato de opinar, a da zetética é transformar o conceito em dúvida.

 

A função da dogmática não é de aprisionar o arbítrio do juiz ao dogma, mas de legitimar a flexibilidade na decisão, de interpretar o que foi estabelecido. A dogmática não consiste na inegabilidade dos seus pressupostos fundamentais, mas depende deles para movimentar o sistema. Trazidas a um grau de menor pertubação social, as incertezas geradas pela complexidade das relações pessoais são controladas pela dogmática, relacionando o que é ou não juridicamente possível, tendo na decidibilidade o ápice da liberdade do jurista. Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “a Dogmática se estabelece como um instrumento mediador entre a generalidade das normas e a singularidade dos casos concretos.”. (FERRAZ JR., 1998, p. 98)

 

4 Conclusão

 

Por fim, o jurista completo é aquele atento tanto às questões dogmáticas, quanto às zetéticas. Os dogmas são concretos até que sejam submetidos a questionamentos que busquem justificações e fundamentações, no intento de, então, se adequar a mudanças e orientar a ação dos fatos sociais ao longo do tempo de forma adequada.

 

O interminável questionamento, progressivo e contínuo atrapalha a decisão e a ação, a especulação excessiva impossibilita a justiça, causa incerteza. O questionamento ininterrupto dos pressupostos imobiliza o sistema, por isso é necessário o respeito à dogmática. É através dela que o jurista pode cumprir a vontade do legislador, viabilizando a separação dos poderes.

 

A partir do momento em que o questionamento dissolve o que é tido como certo, tem-se uma modificação do que é o Estado considera um dever-ser, que cumpre uma função social. Por isto, as transformações dos dogmas devem ocorrer sob a ótica da formalidade, através do poder competente para tanto, de forma a respeitar o princípio republicano da divisão dos poderes. Pregar a crítica e o não seguimento da lei pelo operador jurídico é atentar contra a estabilidade dos poderes e a legitimidade estatal para impor coerção, pois a legalidade supõe a padronização das reações, a certeza do que é permitido ou proibido, a segurança jurídica.

 

 

 

 

REFERÊNCIA

Referência Bibliográfica

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002, p. 32.

 

DIAS, Gustavo Holanda. Considerações Introdutórias Acerca da Dogmática JurídicaBoletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 116. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=533> Acesso em: 26  nov. 2008.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Ciência dogmática do direito e seu estatuto teórico. In: _________. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1990. Cap. 3, p. 85-93.

 

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo, 1994, Editora Atlas, p 39-51.

 

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. 205p

 

DUARTE, Ícaro de Souza. Mais zetética, menos dogmática. A Hermenêutica como pressuposto para uma melhor formação dos alunos. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 434, 14 set. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5691>. Acesso em: 26 nov. 2008.

 

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003, p. 322.

 

VELLOSO, Carlos Mário da silva. Temas de direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p.421.

 

WILHER, Vítor. O mito da conscientização social. Portal Jurídico Investidura. 26 mai. 2008. Disponível em: http://www.investidura.com.br/index.php?option=com_content&view=article&catid=81:sociedade&id=65:mito-conscientizacao-social&Itemid=864 Acesso em: 26 nov. 2008.

 

 



[1] Gustavo Henrique Carvalho Schiefler (schiefler@investidura.com.br) é graduando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, administrador do sítio virtual “Portal Jurídico Investidura” (www.investidura.com.br), atualmente exerce a função de monitor da disciplina de Informática Jurídica da UFSC, sob a orientação do Prof. Dr. Aires Rover. Faz parte do grupo de pesquisa sobre “Governo Eletrônico” do Laboratório de Informática Jurídica da UFSC – LINJUR/UFSC.

Como citar e referenciar este artigo:
SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Breve Introdução ao Estudo da Dogmática Jurídica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/breve-introducao-ao-estudo-da-dogmatica-juridica/ Acesso em: 20 nov. 2024