Direito Eleitoral

Ficha-Limpa e a Garantia Constitucional da Irretroatividade da Lei Penal em Face dos Casos de Inelegibilidade Sanção.

 

            A Lei Complementar nº. 135/10, alterou a Lei das Inelegibilidades (LC 64/90) dispondo sobre a inelegibilidade de pessoas que tenham sido condenadas em processos judiciais, além de outras causas, tais como àqueles que tiveram suas atividades profissionais cassadas pelos respectivos conselhos (Cremepe, Crea, OAB, etc…), bem assim como dos que tiveram suas contas rejeitadas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas por irregularidade insanável após decisão irrecorrível do órgão competente.

 

            Nascida de um amplo e proveitoso movimento de combate à corrupção eleitoral, a LC 135/10, conhecida como Lei da Ficha Limpa conta com a simpatia do eleitor e foi abraçada pelos meios de comunicação, por se imaginá-la como uma medida preventiva contra a corrupção eleitoral.

 

            O TSE, respondendo a uma consulta e, de certa forma, procurando firmar uma posição jurisprudencial sobre o assunto, cuidou logo de garantir que a LC 135/10 seria aplicável às eleições deste ano. O Min. Arnaldo Versiani, respondeu que “a nova lei de inelegibilidade se aplica aos processos em tramitação ou mesmo já encerrados antes da sua entrada em vigor.” (Consulta nº 1147-9), ressaltando o entendimento de que inelegibilidade é uma categoria jurídica diferente de pena e, sendo assim, não pode ser regrada pelos princípios do Direito Penal e do Processo Penal. A inelegibilidade é um instituto de Direito Eleitoral e, em alguns casos, não tem a menor relação com matéria penal, tais como a idade mínima de trinta e cinco anos exigida para o exercício dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República. Inelegibilidade desta categoria, assim como filiação partidária, são consideradas pela doutrina como inatas, porque não tem como finalidade apenarem o candidato. Doutro lado, está, a inelegibilidade sanção, que penalizam o candidato em decorrência de um ilícito de natureza administrativa ou penal. No final do ano passado, o próprio TSE respondendo a outra consulta, firmou o entendimento em que distinguiu a chamada inelegibilidade sanção, dando-lhe indiscutível caráter penal, ocasião em que se tomou por base a Súmula 19 do TSE, no AgR-Respe nº 25.476/RN, cujo relator foi o recém-aposentado Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal Federal, que, quando deixou àquela Corte não teve o menor constrangimento em sair afirmando que a LC 135/10 não poderia ser aplicada nestas eleições. (Consulta nº. 1729. Rel. Min. Felix Fischer).

           

            Neste sentido é que o TER/MA decidiu pela inaplicabilidade da LC 135/10 para as eleições deste ano, com o Relator invocando vários precedentes do próprio TSE:

           

            “O uso da palavra “sanção” reforça a idéia de que aquela Corte Superior vinha entendendo que a inelegibilidade decorrente de ilícito eleitoral seria autêntica penalidade,  afinal, é absolutamente incompreensível equívocos terminológicos em decisão de grande relevância como é o caso das consultas.

            Vários outros julgados do TSE também se valiam do termo “sanção”. Nesse sentido:

             (…) A decretação de inelegibilidade constitui sanção prevista no art. 22, XIV, da LC nº 64/90, sendo perfeitamente cabível quando a causa de pedir reside na prática de abuso do  poder político, não ficando caracterizado, in casu, o julgamento extra petita.(…)(RECURSO ESPECIAL ELEITORAL N° 35.980 (43773-77.2009.6.00.0000) -CLASSE  32 – IPATINGA – MINAS GERAIS.Relator: Ministro Marcelo Ribeiro, DJU 22/03/2010)

            “(…) O art. 1°, I, c, da LC nº 64/90 prevê a inelegibilidade daqueles que perdem seus cargos eletivos “por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal e da Lei Orgânica dos Municípios”. Contudo, a pretensão de ver declarada tal inelegibilidade deve ser manejada por instrumento próprio. Tal sanção não  se inclui entre aquelas previstas para o recurso contra expedição de diploma”

            (EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA N° 698 – CLASSE 218 – PALMAS – TOCANTINS.) (DJU 05/10/2009)

            A própria LC nº. 135/2010, dando nova redação ao inciso XIV, art. 22 da LC nº. 64/90 mencionou o termo “sanção”, dizendo que julgada procedente a representação por desvio  ou abuso de poder ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, o julgador aplicará ao infrator “sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem  nos 08 anos subseqüentes à eleição que se verificou (…)”.

 

            Até o presente momento, entretanto, a maioria dos tribunais eleitorais vem desconsiderando a natureza penal da chamada inelegibilidade sanção, contrariando a construção doutrinária e jurisprudencial e, principalmente os princípios constitucionais da irretroatividade da lei penal. O TRE/RO, por exemplo, indeferiu o registro de candidatura, com base na LC 135/10, em acórdão que diz não haver ofensa aos princípios constitucionais da irretroatividade da lei penal, da anualidade da lei eleitoral, da segurança jurídica, do respeito ao direito adquirido, da observância da coisa julgada e do duplo grau de jurisdição, non bis in idem e princípio republicano, que foram levantados em favor do impugnado. No caso, se valorizou o fato da LC 135/10 ter sido fruto de iniciativa popular e, assim, deveria ser aplicada de acordo com seu espírito, que foi justamente prevenir a eleição de pessoas inidôneas para os cargos eletivos da administração pública, ressaltando que, a despeito das teses de ofensas à Constituição, sua aplicação prestigia os princípios da moralidade e da probidade administrativas que, no âmbito eleitoral, seriam mais relevantes. (Acórdão nº 341/2010. Rel. Juiz Francisco F. Joça. Publ. 05/8/10).

 

     Em agosto de 2008, quando o STF julgou a ADPF proposta pela AMB com vistas a impedir o registro de candidatos que tinham vida pregressa inidônea, que foi rejeitada pela corte suprema, o Min. Celso de Mello disse que o princípio da presunção da inocência (cláusula pétrea do art. 5., da CF) “projeta-se além de uma dimensão estritamente penal, alcançando quaisquer medidas restritivas de direitos, inclusive no campo do direito eleitoral”.

            

            Destarte, existem fundamentos para decisões conflitantes, e nenhum deles podem ser considerados como desarrazoados sob o ponto de vista jurídico. O jurista Celso Ribeiro Bastos afirma que “Salvo a Constituição de 1937, todas as demais Constituições mantiveram-se fiéis à sacrossanta irretroatividade, respeitada, sempre, a formulação técnica consistente no resguardo da já clássica trilogia (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada), isto ao discorrer sobre o princípio geral da irretroatividade das leis, como forma de segurança jurídica.”

 

    

      Dificilmente a LC 135/10 passará incolume perante a mais alta Corte judiciária do país, seja em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal, seja, também, pelo reconhecimento da regra da anualidade da lei eleitoral. No mais, a LC 135/10 está de pleno acordo com os propósitos contidos no §9º, do art. 14, da Constituição Federal, de proteção à probidade e a moralidade administrativa, declarando a inelegibilidade de candidatos cuja vida pregressa tenha antecedentes de natureza criminal ou de malversação de dinheiro público, entre outros.

 

     O problema para os candidatos, nos vários Estados, que estão às voltas com as impugnaçãoes baseadas na Lei da Ficha Limpa é conseguirem uma posição do STF sobre seus processos, antes das eleições, o que vai desestimular as candidaturas sub judice. Outro problema é que, mantido o indeferimento, acaso o candidato receba votos, estes não serão computados nem mesmo para seu partido, o que poderá resultar em prejuízo para os demais membros de sua agremiação partidária, porque poderá influir negativamente no cálculo do coeficiente eleitoral.

 

 

* Augusto Sampaio Angelim, O autor é Juiz Eleitoral há muitos anos e tem vários artigos publicados em sítios da internet sobre a matéria, além de ter seu nome referido em artigos, livros, revistas e petições no âmbito do Direito Eleitoral.

 

 

Como citar e referenciar este artigo:
ANGELIM, Augusto Sampaio. Ficha-Limpa e a Garantia Constitucional da Irretroatividade da Lei Penal em Face dos Casos de Inelegibilidade Sanção.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/eleitoral/ficha-limpa-e-a-garantia-constitucional-da-irretroatividade-da-lei-penal-em-face-dos-casos-de-inelegibilidade-sancao/ Acesso em: 20 nov. 2025