Economia

Medida Provisória n.º 478/2009 e as alterações nas regras de preços de transferência

 

 

 

O presente artigo busca analisar as alterações trazidas pela Medida Provisória n.º 478/2009 na legislação brasileira sobre preços de transferência, sob a ótica das orientações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.

Medida Provisória – Preços de transferência –  Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

This article analyzes the recent changes brought by the Provisional Measure # 478/2009 in the brazilian legislation on transfer pricing from the perspective of the OECD Transfer Pricing Guidelines.

Provisional Measure – Transfer Pricing – Organization for Economic Co-operation and Development.

 

Em 29 de dezembro de 2009, foi adotada a Medida Provisória n.º 478, que altera a legislação tributária referente às regras dos preços de transferência. O referido diploma legal trouxe alterações relevantes para algumas regras gerais e para um dos métodos utilizados na importação, uma vez que extinguiu o método do Preço de Revenda menos Lucro (PRL) e criou o método Preço de Venda menos Lucro (PVL).

 

O antigo método PRL determinava que o valor apurado seria definido como a média aritmética dos preços de revenda dos bens ou direitos diminuídos: (i) dos descontos incondicionais concedidos; (ii) dos impostos e contribuições incidentes sobre as vendas; (iii) das comissões e corretagem pagas; e (iv) da margem de lucro de: (a) 60% nas hipóteses em que haja agregação de valor aos bens, serviços ou direitos importados; e (b) 20% na hipótese de simples processo de revenda dos bens ou direitos importados, ou seja, em situações em que não haja agregação de valor.

 

Nos termos da antiga sistemática, o contribuinte podia, para fins de apuração do preço parâmetro, embasar seus cálculos em operações próprias efetuadas com pessoa não vinculada, ou seja, bastava o contribuinte apresentar uma nota fiscal de uma operação de qualquer valor efetuada com pessoa não vinculada, que já seria um meio de prova hábil a sustentar a utilização daquele preço.

 

Importante salientar que essa possibilidade também se aplicava ao fisco, que poderia impugnar o preço praticado pelo contribuinte através de uma única nota fiscal na qual constasse preço inferior ao apresentado, mesmo que a operação não fosse em condições similares de qualidade e origem do bem, direito ou serviço.

 

Por conseguinte, já aconteceu do Fisco impugnar o preço parâmetro apresentado pelo contribuinte utilizando-se de nota fiscal referente à transação praticada com a China com produto fruto de contrafação, enquanto a operação original era realizada com a Inglaterra com produto original.

De acordo com o novo método, o PVL, o valor é apurado da mesma forma, entretanto agora os serviços estão incluídos e a margem de lucro a ser aplicada é de 35% sobre a participação do bem, direito ou serviço importado no preço de venda do bem, direito ou serviço vendido[1]. Assim, a margem de lucro de um bem empregado na produção de outro de maior valor é a mesma do que a margem de lucro de um bem destinado diretamente à revenda.

 

No que diz respeito ao cálculo do preço parâmetro, eis outra inovação. Caso o contribuinte deseje utilizar dados que digam respeito às suas transações, as operações utilizadas deverão representar, ao menos, 10% do valor das operações de importação sujeitas ao controle de preços de transferência empreendidas pelo contribuinte no período de apuração[2]. Dessa maneira, o legislador buscou impedir o contribuinte de corroborar seus cálculos baseando-se somente em uma nota fiscal de baixo valor.

 

Entretanto, a limitação supracitada não se aplica ao Fisco[3], podendo, portanto, o Senhor Auditor Fiscal autuar o contribuinte com base em uma nota fiscal de qualquer valor, uma vez que a limitação vale somente para o contribuinte.

 

Outrossim, a autoridade fiscal poderá determinar o preço parâmetro, com base nos documentos que dispuser, e aplicar qualquer um dos métodos quando o contribuinte[4]: (i) não indicar antes do procedimento fiscal o procedimento escolhido; (ii) não apresentar os documentos que dêem suporte à determinação do preço praticado nem as respectivas memórias de cálculo para apuração do preço parâmetro, segundo o método escolhido; (iii) apresentar documentos imprestáveis ou insuficientes para demonstrar a correção do cálculo do preço parâmetro pelo método escolhido.

 

Feitas essas considerações acerca das inovações trazidas pela MP n.º 478/2009, analisar-se-á, a seguir, os padrões internacionais adotados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no que se refere à sistemática dos preços de transferência.

 

Inicialmente, faz-se mister ressaltar que as orientações da OCDE priorizam uma análise econômica das transações comerciais. Desse modo, para fins de utilização da metodologia de preços de transferência, é necessário realizar uma análise funcional das partes envolvidas na transação.

 

Essa análise consiste em verificar se nas transações entre pessoas vinculadas a compensação para cada parte reflete as funções por elas desenvolvidas, levando-se em conta os ativos utilizados e riscos assumidos. Nesse ponto específico, é necessário prestar atenção para estrutura da organização do grupo multinacional e como cada contribuinte realiza suas funções.[5]

 

As funções que o Fisco e o contribuinte devem identificar e comparar são, por exemplo: design; indústria; montagem; pesquisa e desenvolvimento; distribuição; marketing; publicidade; transporte; e administração. É crucial que as principais funções realizadas pelo contribuinte sejam identificadas, pois é a relevância econômica dessas funções, em termos da sua freqüência, natureza e valor para as partes envolvidas, que são relevantes.[6]

 

Também pode ser relevante e útil ao identificar e comparar as funções realizadas considerar os ativos que são ou serão empregados. Essa análise deve considerar o tipo de ativo utilizado, como, por exemplo, parque industrial e equipamentos, a utilização de propriedade intelectual valorizada e a natureza dos ativos empregados, como tempo de uso do equipamento, valor de mercado, localização, entre outros.[7]

 

Outrossim, os riscos assumidos pelas partes também são de grande relevância, pois em uma economia de mercado presume-se que quem assume maiores riscos terá, conseqüentemente, uma expectativa de aumento no retorno. Os riscos a serem considerados são, por exemplo: riscos de mercado; riscos de perda associados com investimentos; riscos de falhas em pesquisas e desenvolvimento; riscos financeiros (câmbio, variação de juros, etc.); riscos de crédito; entre outros.[8]

 

No que se refere ao método do preço de revenda, equivalente ao PVL, a OCDE orienta que o cálculo deverá ser feito levando em consideração o preço de venda para pessoa não vinculada. Esse preço deverá ser diminuído de uma margem bruta apropriada, que deve representar a quantia que o revendedor buscaria para cobrir os custos de venda e outros custos operacionais, e, ainda,  levando-se em consideração as funções desempenhadas e riscos assumidos, calcular a quantia que deve representar o lucro apropriado na transação.[9]

 

Em outras palavras, caso o bem, direito ou serviço seja empregado como insumo no desenvolvimento de um produto, a remuneração deverá ser maior do que no caso de um importador que age como um distribuidor, adquirindo um bem para vender diretamente a outra pessoa / empresa.

 

Ademais, a OCDE traz orientações acerca da documentação que deve embasar os preços utilizados tanto pelo contribuinte quanto pelo Fisco. Nas suas orientações, a OCDE informa que na maioria dos países a obrigação de provar a adequação dos preços recai sobre o Fisco. Assim, o contribuinte não precisa provar que os preços apresentados estão corretos, a não ser que o Fisco apresente documentos provando que os preços apresentados são inconsistentes com o princípio arm´s length. Já na hipótese do contribuinte não apresentar a documentação adequada, o ônus da prova pode ser transferido para o contribuinte, sendo que nesse caso haverá a presunção a favor do ajuste proposto pelo Fisco.

 

Contudo, os pontos mais relevantes referentes à documentação são: (i) ambas as partes (Fisco e contribuinte) devem se esforçar para agir de boa-fé, demonstrando que seus cálculos são consistentes com o princípio arm´s length, independente de quem seja o ônus da prova; e (ii) o ônus da prova nunca deve ser usado pelo Fisco ou pelo contribuinte como justificativa para apresentar documentação imprestável ou insuficiente.[10]

 

Tecidas essas considerações sobre as orientações da OCDE acerca da aplicação da sistemática dos preços de transferência e do método do preço de revenda, analisar-se-á, em seguida, a legislação brasileira à luz das orientações internacionais supracitadas.

 

Inicialmente, observa-se que o Brasil não efetua uma análise econômica para aplicação da metodologia dos preços de transferência. A margem de lucro fixa de 35% aplicada no método PVL claramente não leva em conta as funções desempenhadas e os riscos assumidos pelas partes envolvidas. Assim, uma indústria que utiliza ativos valiosos, propriedade intelectual valorizada e assume grandes riscos tem a mesma margem de lucro de um mero distribuidor que controla o seu negócio de seu escritório situado em sua residência sem utilizar ativos ou assumir riscos.

 

Curioso observar que no antigo método, o PRL, existiam duas margens de lucro, uma de 60% para bens, direitos ou serviços com agregação de valor e outra de 20% para bens, direitos ou serviços sem agregação de valor. Mesmo que essas margens não reflitam as funções desempenhadas nem os riscos assumidos, a antiga sistemática era menos injusta do ponto de vista econômico.

 

De qualquer maneira, a existência de margens fixas, que não levam em consideração as funções desempenhadas e os riscos assumidos, é uma clara violação aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária.

 

Conforme os ensinamentos de Gilberto de Ulhôa Canto[11], a observância do princípio da capacidade contributiva cabe ao legislador. Assim, ao criar a sistemática de preços de transferência, o legislador deveria ter levado em consideração o aspecto econômico das partes envolvidas nas transações para fixar as margens de lucro, uma vez que a sua inobservância é uma clara violação ao princípio supramencionado.

 

Além disso, o fato do legislador conferir tratamento idêntico a contribuintes que se encontram em situações distintas (contribuinte que agrega valor x contribuinte distribuidor) é uma clara violação ao princípio da isonomia tributária contemplado no artigo 150, II, da Constituição Federal.

 

Não bastasse essa evidente violação, caso o Ministro da Fazenda faça uso da prerrogativa prevista no artigo 19-A da Lei n.º 9.430/1996 e fixe margens de lucro diferentes por setor ou ramo de atividade econômica, estaremos diante de outra violação ao princípio da isonomia tributária, pois, caso seja fixada margem para algum ramo de atividade, os ramos que não tiveram margens fixadas estarão sendo tratados de forma desigual.

 

No que diz respeito à documentação necessária pra comprovação do preço parâmetro, a limitação para que o contribuinte somente possa utilizar dados que digam respeito às suas operações quando esses representem, ao menos, 10% do valor das operações de importação sujeitas ao controle de preços de transferência empreendidas por ele no período de apuração é totalmente absurda do ponto de vista da OCDE, uma vez que as orientações são que ambas as partes devem proceder com boa-fé na busca do preço adequado para a transação, bastando que a documentação seja consistente com o princípio arm´s length.

 

Outrossim, ao fato do Fisco poder utilizar “os documentos que dispuser” para calcular o preço parâmetro, uma vez ocorrida uma das três hipóteses do artigo 19-B, §1º, I ao III, da Lei 9.430/1996 é um absurdo, uma vez que permite ao Fisco calcular o preço parâmetro da forma que bem entender, utilizando-se, eventualmente, do ônus da prova como justificativa para apresentar documentação insuficiente ou imprestável.

 

Pelo exposto, verifica-se que a legislação brasileira não segue as orientações internacionais para aplicação da metodologia dos preços de transferência, uma vez que o legislador preferiu deixar de lado o aspecto econômico das operações transnacionais e abordar esse tema complexo de uma forma medíocre.

 

 

* Rubem Mauro Silva Rodrigues, Mestre em Direito Tributário Internacional e Europeu pela Maastricht University, Advogado no Koury Lopes Advogados – Setor Fiscal



[1] Novo artigo 18, III, “d”, da Lei n.º 9.430/1996.

[2] Novo artigo 18, §2º, II, da Lei n.º 9.430/1996.

[3] Novo artigo 18, §2º, da Lei n.º 9.430/1996.

[4] Novo artigo 19-B, §1º, I ao III, da Lei n.º 9.430/1996.

[5] Parágrafo 1.20 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[6] Parágrafo 1.21 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[7] Parágrafo 1.22 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[8] Parágrafo 1.23 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[9] Parágrafo 2.14 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[10] Parágrafo 5.2 OECD Transfer Pricing Guidelines.

[11] Na sua formulação atual, o princípio foi fixado, indubitavelmente, para ser seguido pelo legislador, ao qual incumbe instituir os impostos (…). Não é ao interprete nem ao julgador que incumbe sua observância, pois estes não criam tributos, portanto, não podem influir para que eles sejam de natureza pessoal e observantes da capacidade contributiva. In Caderno de Pesquisas Tributárias n.º 14, Coordenador Ives Gandra da Silva Martins, Editora Resenha Tributária, São Paulo, 1989, p. 7.

Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Rubem Mauro Silva. Medida Provisória n.º 478/2009 e as alterações nas regras de preços de transferência. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/economia/medida-provisoria-no-4782009-e-as-alteracoes-nas-regras-de-precos-de-transferencia/ Acesso em: 06 jul. 2025