“Alguma coisa está errada neste contexto”, disse o Ministro sobre a delação premiada[1]
Durante o programa Espaço Público, da TV Brasil, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, questionou a postura do Juiz Federal Sérgio Moro na operação “lava jato”.
Disse o Ministro: “Não posso desconhecer que se logrou um número substancial de delações premiadas e se logrou pela inversão de valores, prendendo para, fragilizado o preso, alcançasse a delação. Isso não implica avanço, mas retrocesso cultural. Imagina-se que de início a delação premiada seja espontânea e surja no campo do direito como exceção e não regra. Alguma coisa está errada neste contexto.”[2]
Também acho Ministro! Aliás, “há algo de podre no Reino da Dinamarca”, como diria Hamlet. Na famosa peça, Shakespeare conta que Hamlet, após constatar as conspirações e traições que se praticavam no palácio em que vivia fez-se de louco para parecer não compreender o que estava acontecendo e tentar sobreviver. Então, um dos oficiais teria dito que ele não queria enxergar que “havia algo de podre no Reino da Dinamarca”.
Surgida no Brasil com a promulgação da Lei nº. 8.072/90, definitiva e desgraçadamente, banalizou-se a delação premiada, copiada dos Estados Unidos e da Itália. Como escreveram Paulo Sérgio Leite Fernandes e William Albuquerque de Sousa Faria, “delação premiada é assunto ríspido, não se podendo banalizá-lo.“[3] Surgiu “no espectro do recrudescimento da legislação processual penal, visto como um reflexo da expansão tresloucada da cultura da emergência.”[4]
A sua origem, porém, “remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal, constante do Livro V, vigorou de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830. O Título VI do “Código Filipino”, que definia o crime de “Lesa Magestade” (sic), tratava da “delação premiada” no item 12; o Título CXVI, por sua vez, cuidava especificamente do tema, sob a rubrica “Como se perdoará aos malfeitores que derem outros á prisão” e tinha abrangência, inclusive, para premiar, com o perdão, criminosos delatores de delitos alheios.”[5]
Aliás, já na Inquisição, “um filho delator não incorre nas penas fulminadas por direito contra os filhos dos hereges e este é o prêmio pela sua delação. In proemium delationis.”[6]
Afora questões de natureza prática como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador para a delação, aspectos outros, estes de natureza ético-moral informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagogo e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei.
Sem dúvidas, “o tema da delação premiada desafia diversos questionamentos: desde sua conveniência político-criminal, passando por sua apreciação sob o ponto de vista da quebra da ética ínsita ao proceder dentro de um Estado Democrático de Direito, ou pelas questões relativas ao seu valor probatório, até sua natureza jurídico-penal, sua função processual penal e as implicações daí decorrentes para o postulado do devido processo legal em nosso direito positivo.”[7]
Como diz Hassemer, “não é permitido ao Estado utilizar os meios empregados pelos criminosos, se não quer perder, por razões simbólicas e práticas, a sua superioridade moral.”[8]
Também a propósito, veja-se a opinião de João Baptista Herkenhoff: “A meu ver, a delação premiada associa criminosos e autoridades, num pacto macabro. De um lado, esse expediente pode revelar tessituras reais do mundo do crime. Numa outra vertente, a delação que emerge do mundo do crime, quando falsa, pode enredar, como vítimas, justamente aquelas pessoas que estejam incomodando ou combatendo o crime. Na maioria das situações, creio que o uso da delação premiada tem pequena eficácia, uma vez que a prova relevante, no Direito Penal moderno, é a prova pericial, técnica, científica, e não a prova testemunhal e muito menos o testemunho pouco confiável de pessoas condenadas pela Justiça. Ao premiar a delação, o Estado eleva ao grau de virtude a traição. Em pesquisa sócio-jurídica que realizamos, publicada em livro, constatei que, entre os presos, o companheirismo e a solidariedade granjeiam respeito, enquanto a delação é considerada uma conduta abjeta (Crime, Tratamento sem Prisão, Livraria do Advogado Editora, página 98). Então, é de se perguntar: Pode o Estado ter menos ética do que os cidadãos que o Estado encarcera? Pode o Estado barganhar vantagens para o preso em troca de atitudes que o degradam, que o violentam, e alcançam, de soslaio, a autoridade estatal?”[9]
Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos se, respectivamente, de segundo ou primeiro graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.
Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo poeta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale quando afirma que o “Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a.“[10]
Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca ou nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeitada e cumprida sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo?
Como afirma Paulo Cláudio Tovo, “a delação premiada de comparsa nos parece uma violação ética com perigosas consequências no mundo do crime (…). Este não é o verdadeiro caminho da Justiça, importa, isto sim, na confissão que o Estado não tem capacidade científica de chegar à verdade.”[11]
É certo que em outras legislações, inclusive em países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a americana), a figura da delatio já existe há algum tempo (diga-se de passagem, assegurando-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), entre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.
Muitíssimo interessante a observação de Geraldo Prado, chamando a atenção “para o que se passa em nível internacional. Enquanto são inúmeras as vozes a clamar pela difusão ainda maior deste método — de delação premiada — instrumento supostamente bem-sucedido em outros Estados, penso que estamos nos aproximando de perigosa senda, que atravessa o Estado de Direito e recupera para o Direito Penal e para o Processo Penal a racionalidade autoritária pré-moderna, que se pensava haver sido expurgada com a consagração do processo em contraditório, sob a direção de juiz imparcial.No plano internacional hoje são ouvidas com maior intensidade as críticas à política norte-americana de repressão aos atos de terrorismo. (…) O que pretende a delação premiada, senão substituir a investigação objetiva dos fatos pela ação direta sobre o suspeito, visando torná-lo colaborador e, pois, fonte de prova!Não há na delação premiada nada que possa, sequer timidamente, associá-la ao modelo acusatório de processo penal. Pelo contrário, os antecedentes menos remotos deste instituto podem ser pesquisados no Manual dos Inquisidores. Jogar o peso da pesquisa dos fatos nos ombros de suspeitos e cancelar, arbitrariamente, a condição que todas as pessoas têm, sem exceção, de serem titulares de direitos fundamentais, é trilhar o caminho de volta à Inquisição (em tempos de neofeudalismo isso não surpreende).Para o Processo Penal com o núcleo acusatório que em minha opinião foi consagrado pela Constituição da República de 1988, cabe ao titular da ação penal demonstrar em juízo a responsabilidade penal do acusado. Deverá fazer isso com provas que só alcançam essa “dignidade jurídica” porque se submetem ao contraditório. O produto da delação premiada não preenche este requisito. Sua sedução está alicerçada em um juízo de “verdade” que parece tranquilizar as mentes dos pro?ssionais do Direito. (…) A arquitetura da delação premiada, por sua vizinhança com a transação penal, guarda ainda outro elemento que em conexão com uma política criminal de penas cada vez maiores, tem potencial para prejudicar a apuração dos fatos, em processo público e em contraditório. O recrudescimento das penas, ditado pelo movimento de lei e ordem, facilita a “sedução” da delação, esgrimindo-se no campo do concreto com uma pena de efeito simbólico, que de fato nunca caberia ou seria aplicada, mas que, do ponto de vista da estratégia de convencimento, se converte em poderoso aliado.“[12]
Tão somente para se argumentar, pode-se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Niccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquiavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc…
O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada). Em um artigo intitulado “Prêmio para o ´dedo duro`, o advogado mineiro Tarcísio Delgado afirmou com muita propriedade:
“Contam uma história muito conhecida, aconteceu há muitos e muitos anos e, de geração em geração, tão sagrada e consagrada, que estabeleceu o mais importante marco no caminho da humanidade. Trata-se da saga de um “Sujeito”, altamente perigoso, indisciplinado e subversivo, que andava atormentando e tirando o sono do Poder Soberano. O “Cara” não era mole, dizia defender os fracos e os oprimidos. Fazia até milagre. Formou uma “quadrilha” de seguidores fanáticos, e andava com seu “bando”, infernizando o Poder constituído. Não respeitava nem o Imperador. Era uma ameaça permanente às instituições. “Pior” que “Esse”, nunca se viu. Precisava pegá-lo, mas ele era “danado”, se misturava no meio do povo, e não tinha como prendê-lo. Preso, o castigo seria severo e inapelável. Eis que aparece a figura canhestra do delator, para “colaborar” com a polícia e com os detentores do Poder. Um dos seus vende-se por trinta dinheiros e articula a prisão do chefe: “O traidor tinha combinado com eles um sinal, dizendo: Jesus é aquele que eu beijar; prendam” (Mateus, 26, 48). Estava consumada a mais famosa e repugnante traição de todas as épocas. Judas se transformou em sinônimo de traidor. Podemos fixar aqui a origem da delação premiada, que se confunde com o nascimento de nossa Era. Este famigerado instituto tem vida recente em nosso Direito. (…) Como esta legislação contraria a natureza de nossos sentimentos, nossas tradições e a formação de nossa cultura, permaneceu durante esses anos como letra morta, sem qualquer aplicação noticiada. Só agora, recentemente, foi, imprópria e equivocadamente, cogitada. (…) Faz quase 60 anos, lembro-me muito bem, quando cursava o primeiro grau, certa feita nossa professora enérgica e diligente, magnífica mestra, que saudade!… surpreendeu um grupo de alunos com um caso grave de indisciplina que, embora praticada por um só, não havia como identificá-lo, sem que houvesse confissão. O indisciplinado calou-se. A professora ameaçava punir o grupo inteiro, se não aparecesse o responsável. Eis que surge o “dedo duro” e delata o colega, apontando aquele dedo de “bom moço” para o culpado. Aquela mestra exemplar passou-lhe uma descompostura. Disse que a indisciplina mais grave praticara o delator do seu colega. Aplicou-lhe a penalidade mais forte, e ensinou que nunca mais deveria dedurar quem quer que fosse. O resto daquela aula foi sobre o papel sujo e condenável de delatar. Esta foi uma lição que me marcou para sempre. (…) Por estas e por outras, tenho fundadas e irremovíveis restrições à chamada delação premiada. Repugna-me o acordo de autoridade instituída com bandidos. Parece-me mais um comodismo de quem tem o dever de investigar, uma redução de trabalho, um falso pragmatismo utilitarista, que encontra utilidade numa prática que corrompe e avilta. O argumento de que os criminosos modernos dispõem de técnicas e arranjos difíceis de serem apanhados, nada mais é do que a confissão de que o Estado está perdendo uma batalha que não pode perder, sob pena do desmantelamento total da organização social. Pegar um acusado, sem qualquer culpa formada, no início da apuração de possíveis atos criminosos, prendê-lo, algemá-lo e oferecer-lhe o benefício da “deduragem” é de arrepiar os cabelos. Os momentos em que prevaleceu o crédito à delação não enaltecem a história, pelo contrário, são períodos soturnos no caminho da humanidade. A história universal está repleta de exemplos tenebrosos de milhares de pessoas inocentes e anônimas que, por causa da delação, foram queimadas vivas nas fogueiras da inquisição; levadas à guilhotina para serem decapitadas depois da Tomada da Bastilha nos anos que se seguiram à Revolução Francesa. Além disso, na Rússia do comunismo Stalinista, por um canto, e no Nazismo Hitlerista, por outro, a delação desempenhou papel absolutamente fundamental. E não citamos, ainda, o caso clássico e típico de delação premiada, que marca a história pátria com sangue e vergonha, daquele que delatou o “bando perigosíssimo” comandado por aquele desvairado de amor à Pátria, Tiradentes, na Inconfidência Mineira – o fraco e pusilânime Joaquim Silvério dos Reis, em troca de vantagens pessoais. A história registra incontáveis casos de delação que, sem nenhuma exceção, marcam sempre os momentos mais obscuros e vergonhosos da humanidade. Só quem não quer ver, em virtude de uma formação utilitarista, não reconhece que a delação sempre foi um instrumento do autoritarismo, da violência, da injustiça. Está na teoria que justifica os meios pelo fim e, ainda assim, no caso, impropriamente, porque, aqui, por meios corrompidos, quase sempre se chega a fim distorcido e injusto. Enganam-se os que buscam tirar proveito de quem só pensa em se aproveitar. A prova não pode fundar-se no testemunho daquele que antes fora pego como comparsa do crime. Sua palavra é suspeita e inconfiável. Todo delator, para amenizar sua situação no processo, joga a culpa no outro, seu comparsa ou não. Não é de se acolher, também, o argumento dos defensores da adoção deste instituto jurídico, de que hoje ele é aplicado com tais cautelas que impossibilitariam qualquer abuso contra inocentes. Claro que, em nossos dias, a delação não levaria ninguém à fogueira ou à guilhotina, mas pode criar constrangimentos e danos morais, ferir direitos inalienáveis, que precisam ser respeitados numa sociedade civilizada e livre, durante o processo investigatório, isto para admitir, o que não é nosso caso, alguma utilidade ou alguma força moral na aplicação dessa norma positiva. André Comte-Sponville, desculpando-se por citar poucos, trabalha com conceitos de Kant, Bérgson, Camus, Dostoievski, Jankélévitch para indagar e responder: “se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança, diz Dostoievski), teríamos de nos resignar e fazê -lo? Não, respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não seria uma cartada, mas uma ignomínia. Porque, se a justiça desaparece, é coisa sem valor o fato de os homens viverem na Terra. O utilitarismo chega aqui ao seu limite. Se a justiça fosse apenas um contrato de utilidade, apenas uma otimização do bem-estar coletivo, poderia ser justo, para a felicidade de quase todos, sacrificar alguns, sem seu acordo e ainda que fossem perfeitamente inocentes e indefesos”, e avança, utilizando-se ainda de Kant e Rawls: “a justiça é mais e melhor do que o bem estar e a eficácia, e não poderia ser sacrificada a eles, nem mesmo em nome da felicidade da maioria”. Estes conceitos, certamente, soam como devaneios aos “idiotas da objetividade”, de Nelson Rodrigues, mas, só assim, poderemos “criar uma sociedade de Homens, não de brutos”, como acentua Spinoza. Premiar o delator é premiar o crime.”[13]
Em crônica publicada no jornal O Globo, na edição do dia 17 de dezembro de 1995, João Ubaldo Ribeiro, após lembrar que as expressões “dedo-duro” e “dedurismo” surgiram ou generalizaram-se após o golpe militar de 1964, escreveu que “os próprios militares e policiais encarregados dos inquéritos tinham desprezo pelos dedos-duros – como, imagino, todo mundo tem, a não ser, possivelmente, eles mesmos. E, superado aquele clima terrível seria de se esperar que algo tão universalmente rejeitado, epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver. Mas não. O dedurismo permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade.” E, conclui: “Sei que as intenções dos autores da idéia são boas, mas sei também que vêm do desespero e da impotência e que terminam por ajudar a compor o quadro lamentável em que vivemos, pois o buraco é bem, mas bem mesmo, mais embaixo.”
Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitador da investigação policial e da efetividade da punição.
Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”, que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.
Além da atenuante referida há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede voluntariamente que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15 do Código Penal).
Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinquente, reduzindo-lhe a pena.
Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse “menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as consequências”, como já acentuou o mestre Aníbal Bruno.[14]
Não necessitava, portanto, o legislador, em lei extravagante, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena. Também por isso é inoportuno. A traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, como já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante sequestro).
Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do Poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever.
Para Hegel a ética é filosofia do direito, entre outras coisas porque o Estado é a expressão máxima de eticidade, ou seja, a substancialização da moralidade nas instituições históricas que a garantem.[15]
Segundo matéria produzida por João Ozorio de Melo, correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos, publicada com o título “Promotores garantem imunidade a assassino para delatar inocente“, acessada no dia 17 de fevereiro de 2015, às 11h55, em Nova York, “exames de DNA provaram a inocência de uma mulher, depois de ela passar 13 anos na prisão. E que o verdadeiro culpado era seu ex-namorado. No entanto, os promotores não puderam processá-lo, porque haviam garantido a ele imunidade, em troca de seu testemunho contra ela no julgamento.” A notícia informa que a “americana Lynn DeJac Peters fora acusada de estrangular a própria filha, Crystallynn Girard, de 13 anos, em sua casa em Buffalo, Nova York, no dia de São Valentim – o Dia dos Namorados – em 1993. Ela foi condenada em 1994 e inocentada em 2007, depois que exames de DNA revelaram que o assassino de sua filha era, na verdade, seu ex-namorado Dennis Donohue. Exames feitos por um perito forense de slides e registros da autópsia da menina mostraram que a menina, além de estrangulada, fora estuprada. Nesse ponto, os promotores desistiram de recorrer contra a liberação de Lynn Peters e tiveram de encarar o fato de que não poderiam processar Donohue, porque haviam lhe garantido imunidade. De qualquer forma, Donohue está na cadeia. Ele foi condenado, posteriormente, a 25 anos de prisão, por estuprar e estrangular outra mulher. Essa mulher foi a segunda vítima do acordo entre a Promotoria e o assassino. Lynn Peters, por sua vez, não teve direito a visitas de seus filhos gêmeos, que nasceram um pouco antes do julgamento, nem da família, porque ela não entrou em acordo com a Promotoria antes do julgamento, pelo qual poderia admitir sua culpa em troca de uma condenação menor e outros privilégios. Ao contrário, ela manteve, durante todo o tempo, que era inocente. Em 2009, o advogado de Lynn, Steven Cohen, entrou com uma ação indenizatória contra o Condado de Erie e a Cidade de Buffalo, alegando negligência nas investigações e no processo contra sua cliente, que resultaram em erro judicial. Em novembro de 2013, Lynn obteve na Justiça uma indenização de US$ 2,7 milhões, depois de fazer um acordo com a cidade de Buffalo e o estado de Nova York. Ela pedia mais de US$ 10 milhões, de acordo com o Huffington Post. Lynn DeJac Peters não teve 13 anos para desfrutar a compensação pelo tempo que passou na prisão. Em junho de 2014, cerca de sete meses depois de receber a indenização, ela morreu de câncer. De acordo com o The Buffalo News, seus filhos gêmeos garantiram que ela morreu em paz, porque, na opinião dela, a Justiça tardou mas não falhou, afinal de contas.“
“Ao apostar na delação premiada como principal elemento de instrução processual, o Ministério Público abre mão de seu papel constitucional de denunciar.” A avaliação é do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro aposentado Adilson Macabu, que atuou como convocado no Superior Tribunal de Justiça. Para ele, essa inversão de papéis “coloca em risco o regime democrático”. Na opinião de Adilson Macabu, ao optar pela delação, o Ministério Público delega para um dos investigados a função de entregar comparsas. O Ministério Público passa a ser mero espectador. “O ato de delegar ao réu a atribuição de acusar, escolhendo quem deve ser investigado, não poucas vezes, segundo critérios subjetivos e espúrios, deve ser repudiado.” Para Macabu, o Brasil está presenciando uma inversão da atividade processual que deveria ser exercida pelo Ministério Público, o que tem acarretado em prisões preventivas de citados em delações com o argumento de que é necessário garantir a ordem pública. Ele explica que indícios de prática de crimes podem servir para a abertura de um processo, mas não justificam a prisão antes do devido processo legal, “sob pena de se vulnerar o princípio da não culpabilidade, especialmente quando não estiverem configuradas as situações elencadas no artigo 312 do Código de Processo Penal”. Os acordos de delação são feitos entre investigado, investigadores e Ministério Público e devem sempre ser homologados pelo Judiciário. No caso da “Operação Lava Jato” (caso Petrobrás), há cláusulas que obrigam o investigado a abrir mão de recursos contra termos do acordo. Isso, segundo Macabu, “vulnera o sistema democrático, na medida em que nenhuma lei pode sobrepor-se às garantias fundamentais e aos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal”. Para ele, práticas desse tipo vulneram o preceito constitucional que assegura a igualdade de todos perante a lei e “constitui uma porta aberta para a prática de inúmeras ilegalidades, especialmente, porque, à luz do artigo 5º, LV, da Constituição Federal, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório, a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.[16]
Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis; que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda de Calabar.
Aliás, como bem lembrado por Sérgio Rodas, uma Autos da Devassadelação premiada foi responsável pela morte de Tiradentes, há 223 anos: “Em tempos de operação “lava jato”, em que depoimentos feitos em delações premiadas estampam jornais diariamente, vale lembrar que Tiradentes foi possivelmente vítima da primeira “dedurada” legalmente recompensada na história do Brasil, feita pelo coronel Joaquim Silvério dos Reis. (…) Quando soube do movimento, Silvério dos Reis vislumbrou uma oportunidade de obter os benefícios do parágrafo 11 do Título VI das Ordenações Filipinas (lei vigente na metrópole e em todas as colônias na época) e se livrar das pesadas dívidas que possuía junto à Coroa Portuguesa. O dispositivo “previa não só o perdão, mas também favores do Reino para quem primeiro delatasse a existência de atos de crime de Lesa Majestade”. Este delito, tipificado no Título VI da mesma norma, era aplicado em caso de “traição cometida contra a pessoa do Rei, ou seu real Estado”.Visando à sua redenção, Silvério dos Reis resolveu abrir o bico – mas por livre e espontânea vontade, e não devido à coação de uma prisão preventiva. (…) Por ter denunciado os agitadores da Inconfidência Mineira, Silvério dos Reis recebeu, em Lisboa, o foro de fidalgo da Casa Real e o hábito da Ordem de Cristo. Além disso, suas dívidas com a Coroa Portuguesa teriam sido perdoadas, e ele teria recebido ouro, uma mansão e o cargo público de tesoureiro da bula de Minas Gerais, Goiás e Rio de Janeiro..Empolgado pelas recompensas que recebeu por denunciar os conjurados, mas querendo ganhar mais prêmios da metrópole, Silvério dos Reis planejou uma nova delação premiada, dessa vez contra o alferes Joaquim Vicente dos Reis, que combatia as arbitrariedades dele e de seu sogro na região. Como não havia crime a denunciar, o chantagista inventou uma denúncia e acusou o militar ter aberto duas cartas lacradas endereçadas ao vice-rei. Para corroborar sua tese, ele apresentou duas testemunhas, com quem havia previamente combinado o teor de seu depoimento.Porém, uma dela falou mais do que devia, gerando contradição com o depoimento de Silvério dos Reis. Por essa razão, a devassa foi arquivada, sepultando seu plano de obter mais recompensas.“[17]
Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se, que não estamos a fazer comparações, pois sequer são neste caso cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um seqüestrador, um latrocida ou um estuprador. Do jeito que as coisas estão indo, far-se-á como um professor pernambucano o fez, no “governo” do Marechal Humberto Castello Branco: instituiu uma agenda para delatores, “informando que aceitaria denúncias às segundas, quartas e sextas, das oito ao meio-dia.”[18]
Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida.
Mutatis mutandis, podemos seguir este raciocínio de Juarez Cirino dos Santos, quando trata da possibilidade da interceptação telefônica:
“Se um procedimento clandestino de investigação criminal, autorizado por exceção à regra da inviolabilidade das comunicações, lesiona os princípios constitucionais superiores (a) do devido processo legal, mediante radical negação da igualdade de armas entre acusação e defesa, (b) do contraditório, que define o espaço exclusivo de produção da prova válida no processo penal, indispensável para avaliação crítica da legalidade da prova pela acusação e defesa, (c) da ampla defesa, excluída da produção de prova criminal clandestina, da qual não pode participar, (d) da proteção contra autoincriminação, mediante invasão enganosa ou ardilosa das esferas garantidas da privacidade e da intimidade do cidadão, (e) da presunção de inocência, substituída por odiosa presunção de culpa contra o cidadão, então o procedimento da interceptação de comunicações telefônicas, instituído em direta oposição a garantias constitucionais superiores do cidadão no processo penal, é inconstitucional.”[19]
Esta nossa posição, sem sombra de dúvidas, sofre forte contestação; de toda maneira, valhemo-nos da lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, segundo a qual “autores sofrem o peso da falta de respeito pela diferença (o novo é a maior ameaça às verdades consolidadas e produz resistência, não raro invencível), mas têm o direito de produzir um Direito Processual Penal rompendo com o saber tradicional, em muitos setores vesgo e defasado (…).”[20]
Como diria Graciliano Ramos, já nos anos 30, estamos agora cheios de “energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações.”[21] Em nosso caso, seriam “energúmenos microcéfalos“ engravatados ou embecados!
[1] Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pelaUniversidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). EspecialistaemProcessopelaUniversidade Salvador – UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da AssociaçãoBrasileira de Professores de CiênciasPenais, do InstitutoBrasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao InstitutoBrasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concursopúblicoparaingresso na carreira do MinistérioPúblico do Estado da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), “Uma Crítica à Teoria Geral do Processo” e “A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), “O Procedimento Comum: Ordinário, Sumário e Sumaríssimo”, Florianópolis, Editora Empório do Direito”, 2015, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.
[2]Com informações da Agência Brasil – http://www.conjur.com.br/2015-jun-03/financiamento-privado-custara-caro-sociedade-marco-aurelio.
[4] Natália Oliveira de Carvalho, A Delação Premiada no Brasil, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 78.
[5]Damásio de Jesus, https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=16323&Id_Cliente=10487
[6] Manual da Inquisição, por Nicolau Eymereco, Curitiba: Juruá, 2001, (tradução de A. C. Godoy).
[7] Heloísa Estelita, “A delação premiada para a identificação dos demais coautores ou partícipes: algumas reflexões à luz do devido processo legal”, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim: São Paulo, ano 17, n. 202, p. 2-4, set. 2009.
[8] ApudPaulo Rangel, in Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 7ª. ed., 2003, p. 605.
[9]https://secure.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhedoutrina&ID=14287&Id_Cliente=10487
[10] Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19a. ed. 1991, p. 60.
[11] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ano 13, nº. 154, setembro/2005, p. 9.
[12] http://emporiododireito.com.br/da-delacao-premiada-aspectos-de-direito-processual-por-geraldo-prado/
[14] Direito Penal, 4a. ed. Tomo. III, p. 140, 1984.
[15] Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípios da filosofia do direito (tradução de Orlando Vitorino), 2ª. edição, Lisboa: Martins Fontes, 1976, § 258, p. 216.
[16] http://www.conjur.com.br/2015-mai-02/apostar-delacao-mp-abre-mao-papel-critica-macabu, acessado no dia 04 de maio de 2015
[18] Revista Civilização Brasileira nº. 1, março de 1965, p. 243 (apud Elio Gaspari, in “A Ditadura Envergonhada”, São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002, p. 221 (1ª. reimpressão).
[20] O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11.
[21] Memórias do Cárcere, Vol. 1, p. 51.