O STF, A Liberdade Provisória e o Tráfico De Drogas – Uma Luz ao Final do Túnel
Rômulo de Andrade Moreira*
O Supremo Tribunal Federal vem entendendo reiteradamente não ser cabível a liberdade provisória para o delito de tráfico de drogas, nada obstante a modificação introduzida na Lei dos Crimes Hediondos. Neste sentido, podemos citar o Habeas Corpus nº. 93.000-MG, tendo como relator o Ministro Ricardo Lewandowski, in verbis: “A vedação da liberdade provisória a que se refere o art. 44, da Lei 11.343/2006, por ser norma de caráter especial, não foi revogada por diploma legal de caráter geral, qual seja, a Lei 11.464/07.” Também no Habeas Corpus nº. 93.229-SP, tendo como relatora a Ministra Cármen Lúcia afirmou-se que “a Lei nº. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial, aplicável ao caso vertente. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados: Precedentes. Licitude da decisão proferida com fundamento no art. 5º, inc. XLIII, da Constituição da República, e no art. 44 da Lei n. 11.343/06, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal considera suficiente para impedir a concessão de liberdade provisória. Ordem denegada.” Em outra oportunidade, a Ministra Ellen Gracie indeferiu o pedido liminar em Habeas Corpus nº. 97579, pois “nos termos dos artigos 5º, XLIII, da Constituição Federal, e 44, caput, da Lei 11.343/06, o crime de tráfico ilícito de drogas não admite a concessão de liberdade provisória”. Fonte: STF.
No entanto, na sessão do último dia 13 de março, o Ministro Celso de Mello ordenou, em caráter liminar, a soltura de uma mulher acusada de tráfico ilícito de drogas. A decisão foi dada no Habeas Corpus nº. 97976. O fundamento da prisão de M.C.P.R., ordenada pelo juiz da Segunda Vara Criminal da comarca, havia sido exatamente o art. 44 da Lei nº. 11.343/06. Segundo o Ministro, ao obrigar a prisão do traficante, a Lei nº. 11.343/06 ofende a razoabilidade, que seria uma condição necessária no momento da elaboração das leis. “Como se sabe, a exigência da razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo”, comentou. “O poder público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade”, frisou o Ministro na decisão. Por fim, salientou que “o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal”, o que, em outras palavras, significa dizer que compete ao Judiciário verificar as circunstâncias peculiares de cada caso e decidir pela prisão preventiva ou não do acusado. Fonte: STF.
Entendemos absolutamente acertada esta última decisão monocrática e esperamos que, no mérito, seja mantida e passe a ser um importante precedente na própria Suprema Corte.
Como se sabe, segundo o art. 44, caput “os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e
Atente-se, porém, que o art. 2º. da Lei dos Crimes Hediondos foi alterado pela Lei nº. 11.464/07. Pela nova redação, não mais se proíbe a liberdade provisória nos crimes hediondos e assemelhados (incluindo o tráfico de drogas), pois o inciso II do art. 2º. refere-se apenas à inafiançabilidade. É óbvio que tal modificação atingiu, não somente os crimes hediondos, mas os assemelhados, inclusive o tráfico ilícito de drogas[1]; a alteração legislativa, portanto, revogou o disposto no art. 44, caput da Lei nº. 11.343/06.
Neste sentido, a lição de Renato Flávio Marcão:
“É indiscutível o cabimento, em tese, de liberdade provisória, sem fiança, em se tratando de crime de tráfico de drogas e delitos equiparados, previstos na Nova Lei de Tóxicos. A opção legislativa neste sentido restou clara.”[2]
Aliás, e a propósito, idêntica conclusão chega-se em relação ao art. 3º. da
Segundo a lição de Jayme Walmer de Freitas, “na medida em que se passa a permitir a liberdade provisória nos crimes que mais ofendem os bens jurídicos tutelados, certamente restaram revogadas tacitamente todas as disposições em contrário. Não mais se cogita de vedação à liberdade provisória no direito processual penal brasileiro.”[3]
Resta-nos enfrentar a questão da aplicação dos novos dispositivos à luz dos princípios que regem a aplicação da lei no tempo. De logo ressalvamos que a norma alterada, apesar de processual, tem um nítido e indissociável caráter penal, razão pela qual é uma norma processual penal material (mista ou híbrida). Trata de matéria processual (liberdade provisória), mas também diz respeito a direito fundamental do acusado, previsto constitucionalmente.
Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, mostra-se, a nosso ver, de fácil compreensão.
Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[4]
Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, elas são-no também plenamente materiais ou substantivas.”[5]
Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[6]
Por lei penal mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni. (grifo nosso)[7].
Ainda a propósito, veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. (…) “O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[8]
Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci:
“Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.[9]
Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.”[10]
Conclui-se, destarte, que a possibilidade da liberdade provisória atinge os crimes praticados antes da vigência dos novos dispositivos (dia 29 de março de 2007). Trata-se de lei mais benéfica e que deve retroagir, em conformidade com o preceito constitucional contido no art. 5º., XL e art. 2º., parágrafo único do Código Penal.
* Procurador de Justiça na Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm, do Curso IELF, da Universidade Jorge Amado e da Fundação Escola Superior do Ministério Público. Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
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[1] Para João José Leal e Rodrigo José Leal, “apenas os tipos penais definidos no art. 33, caput, e suas modalidades típicas previstas no § 1º., I a III (tipos penais equiparados ao tráfico), além dos crimes previstos nos arts. 34 (petrechos) e 36 (financiamento) da Lei nº. 11.343/2006, é que podem ser enquadrados na denominação jurídico-penal ´tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins`” (Crime Hediondo e Progressão de Regime Prisional: A Nova Lei nº. 11.464/2007 à Luz da Política Criminal, Repertório de Jurisprudência IOB – Agosto/2007, nº. 16/2007, Vol. III, p. 492).
[2] www.ultimainstancia.com.br. Neste mesmo trabalho, o autor também confirma a revogação do art. 21 do Estatuto do Desarmamento.
[3] FREITAS, Jayme Walmer de. Crimes hediondos: uma visão global e atual a partir da Lei 11.464/07. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 06.09.2007.
[4]
[5] Ob, cit., p. 220.
[6]
[7]
[8]
[9]
[10] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.