O Brasil e a pena de morte
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Se há um tema mais do que simplesmente polêmico no Brasil, é a pena de morte.
Assuntos polêmicos, temos vários — livre direito ao aborto, experiências com células tronco embrionárias, proibição de progressão no cumprimento da pena nos crimes hediondos, quotas raciais nos vestibulares, reforma tributária, etc — mas nenhum tão carregado de emotividade. O aborto e o uso de células tronco são também especialmente polêmicos porque carregam a carga de emotividade relacionada com o chamado “direito à vida”. Nenhum, porém, desperta um tão súbito aumento da pressão arterial — bastando ouvir seu enunciado — quanto a simples expressão “Pena de Morte”.
Por que a pena capital adquiriu essa aura de “horror”, a ponto de a Organização das Nações Unidas tentar bani-la? A União Européia chegou ao extremo de condicionar o ingresso de novos países à abolição da pena máxima na legislação interna do candidato. Essa desaprovação internacional — pergunta-se — não seria prova suficiente de que esse tipo de punição tornou-se incompatível com a sensibilidade moderna?
Não penso assim, considerando as características particulares de alguns países europeus.
Minha particular explicação do repúdio — intensamente emocional — à pena de morte está no fato de que as cenas de execução — filmadas e transmitidas em cinemas e TVs —, não foram acompanhadas da exibição da filmagem “contrária” — mera representação, claro, com atores profissionais —, da cena da vítima sendo esfaqueada, sodomizada, espancada, baleada, estrangulada, estuprada, queimada ou enterrada viva, conforme o caso concreto. Se, pouco antes da cena “bárbara” da execução aparecesse na tela o sofrimento da vítima, ou vítimas — às vezes inúmeras —, a reação preponderante, emocional, do espectador seria muito diferente. Parece-me que a falta de um “contraditório visual” — variante do “contraditório penal” — teve uma grande influência no moldar a opinião pública. As imagens têm um poder de persuasão muito superior ao da palavra escrita. Daí a preponderância da opinião contrária à pena capital.
Essa reação estritamente emotiva da opinião pública é até elogiável. Prova de que a humanidade ainda possui sensibilidade ante o sofrimento alheio. De fato, comove, na tela, a visão do réu cabisbaixo, humilde, indefeso nas mãos dos carrascos, mesmo quando simples enfermeiros, aplicando injeção. Faz-nos esquecer o presumível pavor estampado no rosto da vítima atacada de forma perversa. Vítima quase sempre inocente, ao contrário do condenado, um culpado que teve sua conduta exaustivamente examinada em juízo e julgada criminosa. Note-se que a vítima, na maior parte das vezes, estava indefesa, pois situações equiparáveis ao duelo são raras. Por vezes a vítima é uma criança ou pessoa idosa que não teve ninguém, naquele momento, que a protegesse. Já o condenado por homicídio doloso — notadamente o friamente premeditado — teve toda a proteção possível, até mesmo estatal, no seu julgamento, porque ninguém pode ser processado sem um defensor, que faz o que for legalmente possível para evitar sua condenação, mesmo sabendo que é culpado.
A “propaganda” visual contra a pena de morte predispôs a humanidade contra a pena máxima.
Como explicar que a evoluída União Européia — berço da cultura mundial — tenha abolido a pena de morte, exigindo dos países que a adotam que mudem a legislação para poderem integrar a União Européia?
Minha convicção é que a UE faz essa exigência porque alguns países na região utilizavam a pena de morte também com finalidade política. Governos com tendências ditatoriais mantinham-se no poder usando esse grande instrumento de intimidação. Enforcavam ou fuzilavam opositores. Além do mais, na evoluída Europa de hoje, os criminosos condenados a longas penas cumprem-nas em silêncio. Não se atrevem a ameaçar as autoridades. Não mandam matar juízes nem policiais europeus. Até no caso da Máfia italiana isso parece estar suplantado. Não determinam, esses condenados perigosos, o fechamento do comércio, por tal ou qual razão, como ocorre no Brasil. Não exigem substituição de diretores de presídio que se mostrem especialmente severos, ou mesmo normalmente severos. Presumo que essa ausência de agressividade, extra muros, dos criminosos já encarcerados levou a comunidade européia a vetar a pena de morte, porque ali desnecessária. De fato, basta a prisão para contê-los.
Não é, porém, o que ocorre hoje no Brasil. Os chefes do crime organizado não se limitam a apenas tentar fugir — reação esperável em todo recluso, embora não seja um “direito”. Fosse apenas isso, não haveria porque se discutir — agora — a conveniência, ou não, da pena de morte. Bastaria construir cadeias especialmente reforçadas, de modo a impedir a escavação de túneis. O assunto “tenebroso” não mereceria sequer a honra de uma discussão.
Compreende-se, portanto, que a União Européia insista na uniforme abolição da pena capital. Se bem que na Rússia a audácia do crime organizado ainda exija uma reprimenda toda especial. Poucos anos atrás, logo após a queda da União Soviética, a audácia dos criminosos era inconcebível. A imprensa revelou que, certo dia, um banqueiro russo recebeu a visita de um homem bem vestido, portando uma pasta “
No Brasil, condenados a longas penas de reclusão — algumas chegando a mais de cem anos —, sabendo que não têm nada a perder — não esperam mesmo viver duzentos anos —, decidiram partir para o ataque. Um deles, em posição de chefia criminosa, chegou a dizer, em entrevista largamente difundida, que podia matar, sim, policiais e outras autoridades, enquanto que os policiais não poderiam revidar da mesma forma porque a lei os proibia.
O máximo que se pode fazer contra tais condenados ameaçadores, segundo a legislação em vigor — e há quem discuta aspectos técnico-legais dessas restrições — é colocá-los no RDD (Regime Disciplinar Diferenciado).
O que significa, no Estado de São Paulo, esse RDD? O condenado tem os seguintes direitos: cela individual (um benefício, tendo em vista a superlotação dos presídios); uma visita semanal de duas horas — ao que parece podendo ser íntima — com limitação de dois visitantes adultos e menores de idade sem número máximo; banho diário de sol de no mínimo uma hora, podendo ser duas. O preso também não está impedido de ler livros e outras publicações que não representem um explícito incentivo ao crime. Enfim, condições que não parecem tão tenebrosas e até favorecem uma erudição capaz de forjar uma justificação sociológica para o crime. Quem lê está, de certa forma, em contato com o mundo exterior. Um contato bem mais enriquecedor que a conversa usual de cadeia.
A finalidade do isolamento teria por objetivo punir o preso que cria problemas disciplinares e impedi-lo de comandar sua atividade criminosa, posta em ação por seus subordinados fora da prisão. No entanto, essa atividade pode no máximo ser dificultada, mas não impedida. Seus visitantes podem repassar as ordens criminosas, inclusive de eliminação física de autoridades. E os celulares , ainda que poucos, podem chegar às mãos do líderes das organizações criminosas por variados meios. Inclusive dentro dos sacos de alimentos, que diariamente e às toneladas, chegam aos presídios. É extremamente problemático examinar cada decímetro cúbico de alimentos que ingressa no presídio. E submeter toda essa carga alimentar ao raio-x seria perigoso, pois a radiação acumulada causa câncer.
Quanto ao bloqueio de celulares será difícil um bloqueio perfeito, por vinte e quatro horas, porque o funcionário que controla tais bloqueios pode ser localizado pelos bandidos. Ele tem família, receios, carências financeiras, e nada pode fazer caso um poderoso chefe do crime resolva mesmo cumprir certas ameaças, exigindo que os bloqueadores sejam desligados por, digamos, quinze minutos, durante a madrugada. Além do mais, há um tipo de celular — bem mais caro que os comuns — que se comunica diretamente via satélite, dispensando as torres de transmissão. Bloqueios de tais celulares especiais são, ao que sei, especialmente difíceis.
É de se presumir que se, na Europa, os “chefões” dessem as ordens, mandando eliminar praticamente quem bem entendessem, a União Européia não encararia a pena de morte com a mesma aversão. O “direito à vida” teria um sentido mais amplo.
Inimigos da pena de morte costumam fundamentar sua posição no “direito à vida”, valor preservado na própria Constituição Federal. Ocorre que aqueles favoráveis à pena máxima também invocam esse mesmo direito, só que pensando mais nas vítimas. Argumentam que no Brasil — e este artigo enfoca especialmente a situação brasileira — o homicídio de tal forma se banalizou que é preciso — pelo menos na situação atual —, um aumento do temor da lei, com conseqüente diminuição da impunidade. Não pretendem que com a pena de morte nunca mais ocorram homicídios no Brasil. E não confiam nas manipuláveis estatísticas, garantindo que pena de morte não intimida. Se não intimidasse, presos no corredor da morte não lutariam tanto para adiar a execução.
Adeptos da pena de morte confiam mais no senso comum do que nas estatística. Sabem que os números, quando devidamente torturados, “confessam” qualquer coisa, e que ”estatístico é o cidadão que morre afogado em um rio que tem, em média, um metro de profundidade”, conforme citação de um humorista. O senso comum diz que as pessoas, mesmo presas, temem a morte.
Se nos Estados Unidos da América do Norte a pena de morte não impediu um alto grau de violência, isso ocorre, em parte, em razão da espaçada efetividade na relação de causa e efeito. O condenado chega a ficar mais de dez anos no “corredor da morte”, fazendo uma petição após outra. E, com alguma freqüência, consegue a comutação da pena de morte para a de prisão perpétua que, no geral, só o é no nome. Comporta-se bem na prisão, escreve livros e mostram seu “lado bom”, enquanto a vítima permanece, vítima do “lado mau”, muda e enterrada. Outras vezes, um exame do DNA do esperma do réu, colhido nas vestes da vítima, em casos de estupro, acaba inocentando-o. Mas é preciso levar em conta a obsessão sexual americana, distorcendo julgamentos, o que não ocorre no Brasil.
Se a finalidade principal da pena é intimidar — pois o mal feito não pode ser desfeito; mortos não retornam à vida após a condenação do assassino —, a China, com mais de um bilhão e trezentos milhões de habitantes teria que ser particularmente rígida no mostrar ao povo a efetividade da punição. Daí a execução ao vivo, em estádios, inclusive dos ladrões de dinheiro público.
A finalidade básica da pena não é “recuperar”. Se assim fosse, um professor de Ética que, num impulso de ciúme, matasse a namorada e logo se arrependesse — até mesmo tentando se matar —, deveria ser liberado de imediato. Afinal, estaria “recuperado”, isto é arrependido. Se uma junta de psicólogos dissesse, em laudo, que o apaixonado professor estava arrependido, para quê mantê-lo na prisão? Mas essa benignidade legal não estimularia outros a fazer o mesmo? Se o medo da lei é inútil e mesquinho, por que não se abolem as multas no trânsito, nos pagamentos atrasados de condomínio, nos contratos e em tudo o mais?
Voltando à comparação entre EUA e China, convém lembrar que há, no momento, mais de dois milhões de pessoas presas nos EUA, provisória ou definitivamente. Um número impressionante. E, segundo notícias esparsas, a atividade privada de construção e manutenção de cadeias está em terceiro lugar, em termos de lucratividade empresarial. Essa indústria não tem nenhum interesse em que as sentenças de morte sejam cumpridas com brevidade porque o custo de manutenção de um preso no “corredor da morte” é várias vezes superior ao custo de um preso normal. É vantajoso, pois, que as execuções se delonguem. A China não pode se dar esse luxo de infindáveis esperas.
A Associação Médica Americana e a entidade que reúne os auxiliares dos médicos proibiram seus afiliados de participar da cerimônia de execução por injeção, porque isso contraria o juramento de Hipócrates. Todo médico jurou, na formatura, tudo fazer para prolongar a vida do ser humano. Isso, no entanto, é um exagero, porque ele, médico, estaria ali apenas para supervisionar os aspectos técnicos. Até mesmo para evitar sofrimentos desnecessários ao executado.
Há vários tipos de adeptos da pena de morte. Há os simplesmente enraivecidos, sedentos de vingança. E há também aqueles que visam justamente preservar a vida, encarada esta num sentido mais amplo. Presumem — a meu ver com razão — que conforme o Estado, no caso o Brasil, o medo da lei praticamente desapareceu da mente dos criminosos violentos ou poderosos. E como não se pode esperar que nesses criminosos exista uma consciência moral especialmente delicada, somente o medo é que poderia inibi-los. Se já estão presos, condenados a longas penas, não há mais como intimidá-los, a não ser com a ameaça da perda da vida, caso persistam em homicídios futuros.
Alguns criminalistas, embora respeitáveis, entendem que a pena de morte significa barbárie. Mas também entendem que a pena de prisão está falida, desmoralizada. Não recupera, só degrada o preso. Assim, restariam as penas alternativas, inclusive a multa. Mas, se a multa não for paga, qual a conseqüência? Prender o réu? Isso não, porque a prisão avilta. Cobrar a multa na justiça? Inútil, porque o réu não tem bens penhoráveis.
Haverá um tempo, com o avanço da neurociência, em que as más-tendências — de ricos e pobres — poderão ser tratadas com manipulações genéticas e outras intervenções químicas nos neurônios. Certas partes do cérebro parecem ser responsáveis pelo senso moral. Poderia citar aqui um caso especial, mas o espaço é curto.
Chegará o dia em que o “primitivismo” atual do Direito Penal — pena de morte e de prisão — não mais prevaleça. Mesmo uma prisão por dez anos é um desperdício de vida de qualquer ser humano. Ocorre que a população ordeira não pode ficar esperando esse dia. Tem o direito de viver sem medo de assaltos, seqüestros e até mesmo do simples toque do celular, com um bandido do outro lado da linha dizendo que seqüestrou seu filho e exige tanto para não matá-lo. Infelizmente, temos que utilizar o material legal de que hoje dispomos: a prisão, com o devido isolamento, que inexiste.
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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