Direito Penal

Estado Delinqüente

 

 

Eles conseguiram o que mais queriam, se exibiram.

 

Refiro-me ao espetáculo de selvageria, aos requintes na demonstração do que poderia ser feito e do que são capazes, ilustrados pelas fotografias nos jornais, na oportunidade da última rebelião verificada na UNIS (Unidade de Integração Social), estabelecimento destinado à internação de adolescentes infratores. Ficou mais uma vez demonstrado com todas as letras, que a aplicação fra-ci-o-na-da do Estatuto da Criança e do Adolescente, não produz efeitos e distancia os resultados, enquanto em idêntica ou maior proporção, continuará sendo multiplicado o mal tantas vezes causado.

 

Lembro os verdadeiros dilemas vivenciados, quando atuava em Varas da Infância e da Juventude, ao dever fazer uma representação, peça dirigida ao Juiz, a qual descreve a conduta do adolescente, para ser instaurado o procedimento que mediante amplo contraditório, enseja aplicação – esta é a hora pior, – de uma das medidas sócio educativas preconizadas no art. 112 do Estatuto. Segue-se um rito preciso e perfeito, mas…

 

Não penso que a alguém falte a mais absoluta certeza de que nos estabelecimentos respectivos, na UNIS, por exemplo, falta pessoal técnico especializado em número suficiente, faltam recursos, material e ambientes, faltam principalmente políticas para efetiva aplicação do método a se desenvolver no curso do processo que tem que socializar e educar.

 

Ao contrário do que se pensa, há punição para o adolescente infrator. Consiste em aplicação de medidas sócio educativas que na falta dos meios antes citados, é em pena mesmo que se transformam, uma vez que causando apenas dor, segue-se que causam revolta, não socializam, nem educam.

 

A efetiva e absoluta aplicação da lei, em geral, só é reclamada quando a dor dói na própria pele. Caso contrário é comum dizer-se “mas o que eu posso fazer? não vou consertar o mundo mesmo”…

 

Está esculpido não numa lei comum, mas na Constituição Federal (art 227), todos devem fazer valer, o que também diz o Estatuto de forma um pouco ampliada: “é dever da família, (mas também) da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, (à criança) com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

 

Note-se bem, ao verbo assegurar é acrescentada a expressão com absoluta prioridade que compreende entre mais, “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”, é o estatuto que também diz.

 

Onde estão estas políticas cujos resultados jamais se vêem?

 

Seria muito interessante rastrear a vida de ao menos um daqueles adolescentes, a partir de como foi concebido, como se desenvolveu a gestação de sua mãe? como e onde nasceu? foi bem alimentado? teve família? em que condições se achava sua família? como era a “casa” em que morava? tinha casa? teve pré escola? e escola? a escola podia assim ser considerada? os professores eram trabalhadores incentivados, motivados e bem pagos? que medidas foram adotadas para impedi-lo de chegar à marginalidade? Começando por estas perguntas irão surgindo outras. Este é um jogo que só pode ser jogado com o Estado. Ele disse presente?

 

Há países onde não há delinqüência ou é mínima, então, não é utopia pensar que o nosso possa ser um deles. Logo, pode-se afirmar: não há delinqüência que não tenha sido precedida pela omissão de um estado delinqüente.

 

 

* Marlusse Pestana Daher, Promotora de Justiça, Ex-Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, em Direito Civil e Processual Civil, Mestra em Direitos e Garantias Fundamentais.

Como citar e referenciar este artigo:
DAHER, Marlusse Pestana. Estado Delinqüente. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/estado-delinqueente/ Acesso em: 26 jul. 2024