Entrevista concedida pelo Prof. Sebastian Scheerer
Paulo Queiroz*
ENTREVISTA concedida pelo PROF. SEBASTIAN SCHEERER, Diretor do Instituto de Criminologia da Universidade de Hamburgo, Alemanha, Professor do Departamento de Criminologia, a PAULO QUEIROZ.
P. Q: Prof. Scheerer, de que trata seu último texto “crítica da razão punitiva”?
S. Scheerer: Desde o início da própria existência do direito penal, os intelectuais se dedicaram à grande tarefa (bem remunerada) de explicar porque uma coisa negativa, como a pena, era justificada apesar do seu caráter violento. Quando chegou o iluminismo, dizendo que só pode ser justificado o que prova a sua necessidade social – Montesquieu e Beccaria estavam muito mais críticos do que a jurisprudência contemporânea – a maioria esmagadora dos intelectuais simplesmente corrompeu o potencial deste principio revolucionário e continuou explicando o “porquê” da necessidade do direito penal, em vez de perguntar “se” era realmente necessário. O meu texto tenta iniciar um debate aberto sobre a questão do “se”, em vez do “porquê”. A tese de partida: não tem necessidade alguma. É isto que está instigando um debate honesto nos meios dos intelectuais, não só da jurisprudência, que eu considero muito promissor.
PQ: Apesar de toda crítica que se faz, já há algum tempo, ao sistema penal, fato é que o sistema só tem se expandido sem qualquer limite ou critério.
S. Scheerer: Nunca pensei que poderia ser diferente. O discurso crítico ainda está extremamente pobre tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade. Mais de 99% dos escritos sobre a teoria da pena nem começam a atingir estas questões fundamentais com seriedade. Eles fazem parte do que Louk Hulsman (e outros) chamam de neo-escolasticismo. Eles usam conceitos das ciências sociais como formas de dizer, e não como instrumentos analíticos. O que mudou desde Santo Agostinho é a retórica, não o estilo de pensamento. Os verdadeiros críticos que realmente põem em questão – intelectualmente – a própria existência do sistema penal, são uns “gatos pingados”. Se Deus quiser, futuras gerações vão lembrar deles como a gente lembra, mais ou menos, dos abolicionistas que, como uns “gatos pingados”, também lutaram para o fim da escravidão. Infelizmente, aliás, este exemplo também ensina que existem instituições que permanecem muito tempo além da sua necessidade e mesmo da sua utilidade. Max Weber mostrou convincentemente que a perpetuação da instituição da escravidão na antiga Roma era a causa principal do colapso da economia Romana – e em seguida do império Romano in toto.
PQ: A que atribui o Senhor tal expansão do Sistema Penal?
S. Scheerer: O choque da última etapa da modernização do sistema econômico global cria oportunidades e frustrações diferentes e gera ondas de criminalidade do “colarinho branco”, tanto como ondas de criminalidade da classe média e dos verdadeiros excluídos. A atenção relativa que o sistema judiciário dá a cada tipo destes ilegalismos, como os chamava Michel Foucault (ou rule breaking behaviour, como dizia Howard S. Becker) reponde a muitas pressões – uma das quais é, com certeza, um tipo de medo de ser sujeito a um tipo de vingança dos excluídos … os que lucram da hausse das bolsas estão aumentando, ao mesmo tempo, a Angst de que as coisas possam mudar bruscamente. Para combater este medo meio indefinido, eles reinvindicam estratégias mais rígidas e punitivas para serem aplicadas aos outsiders. (Nem precisa falar do middle class squeeze, a situação precária da classe média que sempre recorre à repressão quando tem medo de cair de sua segurança relativa para o inferno do desemprego ou dos sem-teto …). Esperar ajuda através de um endurecimento da penalização é a “macumba” da classe média secularizada.
PQ: Há esperança?
S. Scheerer: Sempre. Quanto a mim, os escritos tanto de Clifford Shearing (Canadá) como de John Braithwaite (Austrália), relatando e avaliando as múltiplas experiências com uma solução de conflitos fora do paradigma do direito penal me enchem de otimismo. Realmente, o choque do sistema presente está obsoleto. Pode ser substituído hoje. O que falta é uma conscientização no meio da sociedade civil. Os cientistas não têm esta tarefa. Melhor que se limitem a avaliar tanto as soluções penais quanto as da chamada justica restaurativa (restorative justice).
PQ: Como é hoje tratada a questão das drogas ilícitas na Alemanha e Europa, em especial, Suíça e Holanda?
S. Scheerer: Na Alemanha, a política combate, em primeiro plano, o vício, e só em segundo plano as drogas. A gente está aprendendo que o perigo não reside nas substâncias, mas na fragilidade das pessoas que não conseguem desenvolver uma atitude madura frente às promessas e os perigos do uso. Uma pessoa forte pode usar qualquer tipo de droga sem correr grande risco de autodestruição. Uma pessoa fraca pode autodestruir-se até com uma droga soft como a maconha. Enquanto na Suíça, eles estão procurando o caminho deles, apesar de alguns fracassos, eles hoje em dia têm mais sucessos na prevenção, no acompanhamento e no tratamento do que os demais. Na Holanda, a classe média tem o melhor acesso às drogas e o menor risco, talvez, de criminalização. Parece que não cria problemas espetaculares. A vida continua. Normalmente: até melhor. É o país com o menor grau de hipocrisia. É também por isso que eu adoro o caminho holandês. É uma pena que o Conselho Internacional de Controle dos Narcóticos em Viena, divisão da ONU, dominada pelos Estados Unidos, continue fazendo pressão sobre a Holanda para retornar para a política homogenizada do resto do mundo …
PQ: O Senhor é a favor de uma política radical de descriminalização da produção, comércio e uso de tais substâncias?
S. Scheerer: Como os carros e o equipamento de escalagem, de esqui ou de mergulhar, as drogas têm um potencial terrivelmente ambivalente: podemos desfrutar muito deles, mas também podemos morrer ou até matar. Não existe dúvida sobre os riscos. Os lobbies que baseiam a sua política sobre uma hipotética ausência de risco em algumas ou todas as drogas – não sei se eles existem realmente ou se são fantasmas criados pelos adversários da descriminalização – estes lobbies não merecem o menor respeito. A questão não é do risco, mas da distribuição do risco. O produtor do carro carrega a responsabilidade de produzir um carro conforme aos padrões de segurança – o motorista carrega a responsabilidade de usar o carro não para matar mas para se locomover sem risco extraordinário para os demais cidadãos. O produtor da droga não deveria ser culpado do uso indevido das mesmas por parte dos consumidores destrutivos. A maioria dos consumidores de todos os tipos de drogas tem um comportamento sensato, que nem a grande maioria dos motoristas dos carros tem em relação a seus veículos. O problema é grave. Tanto na área automobilística quanto na área das drogas. Mas a solução dos problemas de transito não é a proibição geral dos carros. E a solução dos problemas do tráfego e consumo das drogas também não é. É a regulação, a educação, o controle – o direito penal, ao contrário, cria um mundo do crime que escapa a toda tentativa de educação e muito mais a toda tentativa de um controle administrativo, em termos da qualidade do produto, qualificação do comerciante, uso apropriado por parte do consumidor, atendimento ao consumidor preocupado ou enganado, etc.. A completa descriminalização não é nada revolucionária ou lunática, é uma coisa bem normal que está sendo proibida de acontecer…
P.Q: A seu ver, qual deve ser o papel do direito penal no Estado contemporâneo?
S. Scheerer: O direito penal deve ser uma coisa seríssima. Não pode ser um instrumento qualquer a serviço da política. Tem que ser uma coisa acima da política. Não deve mudar quando mudam os regimes políticos – da democracia para a ditadura e vice versa. Só deve visar comportamentos absolutamente inaceitáveis em qualquer tipo de sociedade. Assassinato. Estupro. Atos atrozes cometidos por uma pessoa contra outra. Ponto final. Não: ponto final, não. Esta tese do direito penal mínimo, defendida hoje por colegas excelentíssimos como Alessandro Baratta e Wolfgang Naucke, e, menos radicalmente, por parte de Winfried Hassemer e de Peter-Alexis Albrecht, implica a sub-tese da absoluta necessidade do direito penal nesta área limitada. Eu acho – junto com alguns dos chamados abolicionistas como Louk Hulsman, Nils Christie e outros – que o direito penal não tem a estrutura adequada para lidar com as complexidades deste tipo de comportamento grave em situações dificílimas. Não é muito sensato deixar a burocracia jurídica tentar tratar destas situações. Existem métodos não-estatais para dar mais satisfação às vítimas, atribuir culpa e responsabilidades com mais certezas, e para chegar a um resultado positivo para todos os indivíduos quanto para o público atingido e interessado.
P.Q: E que relação devem manter entre si Política Criminal, Direito Penal e Criminologia?
S. Scheerer: O grande filósofo e penalista alemão Gustav Radbruch advertiu seus contemporâneos no começo do século XX que a política criminal deveria ser, em primeiro plano e durante muito tempo, uma política negativa, quer dizer: uma política que vise reduzir o mal que o sistema penal está fazendo em vez de continuar inventando, cada vez melhores métodos, para serem adicionados ao sistema … diminuindo o número de cadeias e sobretudo o número de prisioneiros dentro de uma região, um país, uma cidade. Melhor reduzir que aumentar. Melhor substituir que reduzir.
P.Q: Como o Senhor se definiria (minimalista, abolicionista)?
S. Scheerer: Eu não gosto de me definir. Gosto de pensar. As coisas se excluem mutuamente, talvez. Quando encontro um argumento a favor da manutenção do direito penal eu sou minimalista até achar um argumento mais forte a favor da abolição. Não precisamos de seitas e ortodoxias. É preciso aprender a discutir com nenhum respeito às etiquetas, mas todo o respeito aos argumentos. Assim, a razão punitiva vai perder feio. Tomara que logo.
* Doutor em Direito (PUC/SP), é Professor Universitário (UniCeub), Procurador Regional da República em Brasília, e autor, entre outros, do livro Direito Penal, parte geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição
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