A polêmica sobre o crime de desobediência, diante de recusa em obedecer ordem policial no trânsito
Por Joaquim Leitão Júnior[1]
Fato que sempre causa discussão diz respeito à polêmica sobre o crime de desobediência, diante de recusa em obedecer ordem policial no trânsito.
O Código Penal Brasileiro dispõe no artigo 330 o delito sob “nomem iuris” de desobediência, em que o mencionado delito visa punir aquele que desobedece a ordem legal de funcionário público. Lembremos que, o referido crime é considerado crime de menor potencial ofensivo, sendo de competência do Juizado Especial Criminal, nos moldes do artigo 61 da Lei 9.099/95, em que via de regra é apurado por meio do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO).
Pedimos vênia para trazer à redação do artigo 330 do Código Penal Brasileiro:
Desobediência
Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Apenas pela forma que o dispositivo do art. 330 do CPB se apresenta não se pode extrair mais detalhes do injusto penal em tela, devendo recorrer-se a doutrina pátria para melhor exegese. A doutrina pátria sustenta que para a configuração do tipo do art. 330 do CPB exige-se:
a) existência de uma ordem emitida por funcionário público;
b) individualização desta ordem a um destinatário certo;
c) obrigação do destinatário da ordem de atendê-la; e
d) ausência de sanção especial para o seu descumprimento
Postas estas premissas, é possível afirmar que comete crime de desobediência quem desrespeita ordem de parada emanada por agente de trânsito no exercício de atividades relacionadas ao trânsito ou correlatas?
A resposta é negativa, ou seja, a doutrina apregoa que a intervenção exigida do direito penal deve ser mínima, tendo em vista seu caráter rigoroso. Logo, os elementos coletados em cognição efêmera ainda que fartos não podem render à tipificação almejada, vez que a desobediência a ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime (ato infracional) de desobediência, porquanto há previsão apenas e tão somente de sanção administrativa específica no art. 195 do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de punição penal.
Notadamente, o comentado art. 195 do Código de Trânsito estabelece punição administrativa contra quem desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes. Cuida-se em verdade, de infração de natureza grave que acarreta a imposição de multa.
De outro lado, se a ordem emanada, no exercício de atividade ostensiva da Polícia Militar, por exemplo, destinada à prevenção e à repressão de crimes, tendo a abordagem do suspeito se dado em razão de suspeita de atividade ilícita, aí eventual recalcitrância configurará hipótese de incidência do delito de desobediência tipificado no art. 330, do CP.
Há quem sustente que, paralelamente à infração de trânsito, deve-se de qualquer modo punir o motorista rebelde pelo crime de desobediência, tendo em vista que a conduta se insere perfeitamente nas disposições do art. 330 do Código Penal. Todavia, não é a melhor posição a ser adotada.
O Superior Tribunal de Justiça pavimentou o entendimento de que, em regra, havendo punição administrativa sem referência à aplicação conjunta da lei penal, não há crime (ato infracional). Isso se denominada de aplicação do princípio da ultima ratio do Direito Penal, que deve se manter subsidiário para intervir apenas quando outras normas não forem capazes de lidar adequadamente com determinada situação.
Cumpre frisar que, no entanto, é preciso verificar o contexto da ordem de parada. Nesse passo, o Superior Tribunal de Justiça tem edificado o entendimento de que não constitui delito (ato infracional) de desobediência, a situação na qual policiais militares ou rodoviários (entre outras forças policiais) na atividade de trânsito ou correlata determinam a parada do veículo, mas não são atendidos pelos motoristas. Vejamos a ementa do entendimento abaixo:
“1. É cediço na jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça que a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais, no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195, do CTB, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal.
2. Na hipótese dos autos, contudo, a ordem de parada não foi dada por autoridade de trânsito, no controle cotidiano no tráfego local, mas emanada de policiais militares, no exercício de atividade ostensiva destinada à prevenção e à repressão de crimes, tendo a abordagem do recorrente se dado em razão de suspeita de atividade ilícita, o que configura hipótese de incidência do delito de desobediência tipificado no art. 330, do CP.” (STJ – AgRg no REsp 1.805.782/MS, j. 18/09/2019).
Noutro exemplo hipotético, podemos admitir a ocasião em que por suspeita de conduta ilícita, se emite a ordem emanada, no exercício de atividade ostensiva da Polícia Militar, destinada à prevenção e à repressão de crimes, tendo a abordagem do suspeito se dado em razão de suspeita de atividade ilícita, mas os policiais da guarnição não são atendidos pelos motoristas. Nesta situação entendemos que haveria o crime de desobediência. Nota-se que a Polícia Militar não estava no exercício da atividade de trânsito ou correlata quando deu a ordem de parada. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça alinha a este entendimento também, senão vejamos:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. DESOBEDIÊNCIA. ART. 330 DO CÓDIGO PENAL. ORDEM DE PARADA EMANADA DE POLICIAIS MILITARES NO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE OSTENSIVA. ORDEM NÃO DIRIGIDA POR AUTORIDADE DE TRÂNSITO E NEM DE SEUS AGENTES. INOCORRÊNCIA DA INFRAÇÃO DE TRÂNSITO PREVISTA NO ART. 195 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. TIPICIDADE DA CONDUTA. DESOBEDIÊNCIA E FUGA. SUPOSTO EXERCÍCIO DO DIREITO DE AUTODEFESA E DE NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. DIREITOS NÃO ABSOLUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO PARA A PRÁTICA DE DELITOS. AUSÊNCIA DE DOLO. REEXAME DA MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. COMPENSAÇÃO DA REINCIDÊNCIA COM ATENUANTE DA CONFISSÃO NO CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. I – A Terceira Seção desta Corte, seguindo entendimento firmado pela Primeira Turma do col. Pretório Excelso, firmou orientação no sentido de não admitir a impetração de habeas corpus em substituição ao recurso adequado, situação que implica o não conhecimento da impetração, ressalvados casos excepcionais em que, configurada flagrante ilegalidade apta a gerar constrangimento ilegal, seja possível a concessão da ordem de ofício. II – Segundo jurisprudência deste Tribunal Superior, a desobediência de ordem de parada dada pela autoridade de trânsito ou por seus agentes, ou mesmo por policiais ou outros agentes públicos no exercício de atividades relacionadas ao trânsito, não constitui crime de desobediência, pois há previsão de sanção administrativa específica no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual não estabelece a possibilidade de cumulação de sanção penal. Assim, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, inviável a responsabilização da conduta na esfera criminal. III – No presente caso, contudo, a ordem de parada não foi dada pela autoridade de trânsito e nem por seus agentes, mas por policiais militares no exercício de atividade ostensiva, destinada à prevenção e à repressão de crimes, que foram acionados para fazer a abordagem do paciente, em razão de atividade suspeita por ela apresentada, conforme restou expressamente consignado no v. acórdão impugnado. Desta forma, não restou configurada a hipótese de incidência da regra contida no art. 195 do Código de Trânsito Brasileiro e, por conseguinte, do entendimento segundo o qual não seria possível a responsabilização criminal do paciente pelo delito de desobediência tipificado no art. 330 do Código Penal. IV – Os direitos ao silêncio e de não produzir prova contra si mesmo não são absolutos, razão pela qual não podem ser invocados para a prática de outros delitos. Embora por fatos diversos, aplica-se ao presente caso a mesma solução jurídica decidida pela Terceira Seção desta Corte Superior quando do julgamento do REsp n. 1.362.524/MG, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, no qual foi fixada a tese de que “típica é a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa”. V – Inviável o reconhecimento da atipicidade da conduta por ausência de dolo uma vez que restou expressamente consignado no v. acórdão combatido que o paciente, de forma consciente e deliberada, desobedeceu a ordem de parada dada pelos policiais militares. Rever o entendimento do eg. Tribunal de origem para afastar o dolo do paciente demandaria, necessariamente, amplo reexame da matéria fático-probatória, procedimento que, a toda evidência, é incompatível com a estreita via do mandamus. VI – O pedido de compensação integral entre a agravante da reincidência com a atenuante da confissão não foi apreciado pelo eg. Tribunal de origem, ficando impedida esta Corte de proceder a análise da matéria, sob pena de indevida supressão de instância. Habeas corpus não conhecido. (HC 369.082/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017)
Na mesma esteira de entendimento ainda se tem os precedentes abaixo:
- HC 385345/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 28/03/2017, DJe 05/04/2017;
- HC 186718/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 06/09/2013 Decisões Monocráticas;
- REsp 1741575/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 08/08/2018, publicado em 20/08/2018;
- REsp 1735968/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 18/06/2018, publicado em 21/06/2018;
- REsp 1718329/RS, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 23/03/2018, publicado em 03/04/2018.
A luz de tudo que foi exposto, será sempre importante o “distinguishing” dos precedentes acima com o caso concreto, para avaliar se as forças policiais estavam no controle de tráfego e trânsito ou se era atividade diversa para fins de configuração ou não do crime de desobediência no trânsito.
– Das considerações finais
Por essas razões, dentro da independência e autonomia funcional o Delegado de Polícia deverá fazer o “distinguishing” dos precedentes acima com o caso concreto, para avaliar se as forças policiais estavam no controle de tráfego ou no controle de trânsito ou se era atividade diversa. Somente assim, se terá elementos no campo da tipificação para visualizar à configuração ou não do crime de desobediência no trânsito.
[1] E-mail: juniorleitaoadv@hotmail.com. Delegado de Polícia em Mato Grosso desde 2012, atualmente na função de Diretor Adjunto da Academia da Polícia Civil de Mato Grosso. Colunista do site Justiça e Polícia, coautor de obras jurídicas, autor de artigos jurídicos, integrante da KDJ Mentoria, palestrante e professor de cursos preparatórios para concursos públicos.