Direito Penal

Criminologia Cultural: Uma análise da estética urbana, da moda e sobre a (des)criminalização do grafite

CRIMINOLOGIA CULTURAL: UMA ANÁLISE DA ESTÉTICA URBANA, DA MODA E SOBRE A (DES)CRIMINALIZAÇÃO DO GRAFITE[1]

Antônio Ramos Meireles²

Camila de Carvalho Brito²

Larissa Vidal Diniz de Almeida²

RESUMO

Usufruindo das ferramentas teóricas da criminologia cultural, a presente reflexão busca compreender algumas transformações ocorridas nas representações sociais e jurídicas a respeito do grafite (e do conteúdo jurídico a ele relacionado), da estética urbana e da moda. Trata-se, portanto, de um estudo em torno da postura criminalizadora, isto é, de uma postura de política criminal que criminaliza determinadas manifestações culturais periféricas, quando a real necessidade é incentivar e salvaguardar expressões culturais e artísticas.

Palavras-chave: Criminologia Cultural. Grafite. (Des)criminalização. Cultura. Arte. Moda.

INTRODUÇÃO

Adotando como referencial teórico os estudos da criminologia cultural, o presente trabalho busca analisar dentre outras manifestações, o grafite como arte popular outrora etiquetada equivocadamente pelas agências formais de controle social e pela sociedade convencional como manifestação “desviante” e, por vezes, expressão do fenômeno criminoso.

Nesse sentido, a finalidade precípua do presente artigo é é analisar a política criminal de cunho etiquetador que criminaliza determinadas manifestações culturais periféricas, quando, a necessidade principal é que o Estado esteja presente positivamente, incentivando e salvaguardando expressões culturais e artísticas.

Desta feita, o presente tema encontra amparo justificador na importância sempre cogente de se discutir osreveses teóricos, bem como pragmáticos, de maneira a evitar retrocessos sociais e majoração das desigualdades.

O trabalho foi sistematizado a partir de 4 tópicos centrais, quais sejam: primeiramente discute-se as principais noções sobre a vertente da criminologia cultural, que conforma o substrato analítico do presente trabalho. Posteriormente, é abordada a temática Estética Urbana juntamente com a moda, em seguinda retrata-se como as expressões culturais populares, no caso, o grafite, vêm sendo tratadas pelo Direito, especialmente pelo Direito Penal, especialmente sobre o processo de (des)criminalização. Promove-se, por fim, um debate constitucional sobre o “reconhecimento” jurídico do grafite, isto é, a sua concepção enquanto manifestação cultural legitima e as eventuais vicissitudes enfrentadas no bojo desse processo. 

Para elaboração deste artigo utilizou-se como método a análise bibliográfica.

1 BREVES NOTAS SOBRE A CRIMINOLOGIA CULTURAL

Inicialmente, cumpre tecer considerações, ainda que sucintas, no que concerne ao pensamento criminológico enquanto campo no qual duelam diversos tipos de discursos (des)legitimadores, especificamente, a respeito da Criminologia Cultural, isto é, das discussões sobre o fenômeno criminal a partir dos elementos culturais envoltos.

Grifa-se, nesse sentido, que a criminologia cultural revela-se essencialmente transdisciplinar, uma vez que utiliza inúmeras ferramentas não apenas da criminologia, sociologia e direito penal, mas também perspectivas e metodologias produzidas por estudos culturais, midiáticos, urbanos, filosóficos, geografia humana e cultural, antropologia, movimentos sociais e culturais além de uma infinidade de outros fatores, como sentimentos, que disputam diariamente o significado sobre a questão da criminalidade. (OXLEY ROCHA, 2012).

Nessa acepção a criminologia útil e critica deve ir além das estreitas noções de crime e justiça, incorporando demonstrações simbólicas e culturais, de maneira a permitir a uma sintonia com as situações sociais mais prevalecentes, capaz de contextualizar e confrontar a criminalidade contemporânea e seu controle. (FERRELL, 2012).

Impõe esclarecer, sem profundas digressões históricas, que a origem dessa vertente analítica, que apresenta dentre os seus principais expoentes os estudos de Ferrell e Sanders (1995); Ferrell (1999); Banks (2000); Presdee (2000); Hayward e Young (2004), remete ao movimento de reavaliação da criminologia crítica, vocacionada à tentativa de restabelecer a prática do estudo criminológico, de forma a observar as complexidades contemporâneas, isto é, o contexto das interações sociais baseadas na cultura e nos desafios de uma sociedade multicultural e, por vezes, conflitante. (FURQUIM, 2014).

A criminologia cultural emana ainda como sendo “uma necessidade face a uma modernidade tardia, na qual a desigualdade social se mantém crescente. (…) Somada a agravantes de problemas contemporâneos, tais quais, globalização, imigração, resistência, subversão e tédio, sobretudo, na imposição dos valores dominantes sob grupos minoritários, em detrimento a falta do reconhecimento do outro”. (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2012 apud FURQUIM, 2015, p. 102).

Furquim (2015, p.103) traduzindo os apontamentos de Keith Hayward (2011, p.2), indica uma conceituação da criminologia cultural, indicando tratar-se de:

[…] abordagem teórica, metodológica e intervencionista para o estudo do crime, que coloca a criminalidade e seu controle social no contexto da temática da cultura; ou seja, através dessa ótica, enxerga-se o crime e as agências e instituições de controle do crime como produtos culturais, tal como sendo, construções criativas. Derradeiramente, deve ser entendida nos termos dos significados que estas culturas marginalizadas, ou subcultura carregam. Entretanto, a criminologia cultural procura destacar a interação entre dois elementos-chave: a relação entre construções e desconstruções de determinados significados e valores inerentes a estes grupos de indivíduos. Seu foco é sempre sobre a geração contínua de significado em torno de interação; regras criadas, as regras quebradas, uma constante interação do empreendedorismo moral, inovação, política e transgressão.

Nestes termos, destaca-se como um dos pontos de suma relevância na perspectiva cultural a identificação de em que medida o comportamento considerado como desviante ou criminoso transgrede, resiste ou subverte aos valores, símbolos, significados e códigos morais da cultura dominante (ROCHA, 2012).

Dentre os substratos materiais que permitiram a construção teórica e o seu desenvolvimento metodológico, destacam-se: (a) a antropologia simbólica (Geertz); (b) a sociologia do desvio (Cohen, Becker, Kitsuse, Lemert e Matza); (c) a criminologia crítica, notadamente a perspectiva em torno da National Deviancy Conference (Cohen, Taylor, Pearson); e (d) os estudos culturais (cultural studies), sobretudo os desenvolvidos no Center for Contemporary Cultural Studies da Universidade de Birmingham (Hall, Clarke, Hedbidge, Jefferson e Willis). (CARVALHO, 2014).

Nestes termos, segundo aponta Ferrell (2012, p. 174), a criminologia cultural tem como objetivo:

[…] desenvolver uma análise cultural profunda tanto do controle legal, quanto dos indivíduos e grupos visados por ele, bem como conceituar crime em relação às muitas complexidades de desigualdade contemporânea e injustiça. Tanto na teorização e quanto na pesquisa de campo, criminologistas culturais tentaram ir além dos velhos dualismos que há muito tem assombrado a análise sociológica e criminológica: estrutura contra agência, forma versus conteúdo, o material versus o ideológico, social versus o cultural.

Colhe-se ainda dos estudos do mesmo autor (FERRELL, 2012) que, entre as muitas interseções entre crime e cultura, as principais referências da Criminologia Cultural, isto é, os “insights” mais significativos para a compreensão da complexa dinâmica, dentro da qual a prática criminosa e o controle da criminalidade tomam forma, são: 1) subcultura e estilo; 2) ação-limite, adrenalina e compreensão criminológica43; 3) cultura como crime; 4) crime, cultura e exibição pública; e finalmente, 5) mídia, crime e controle da criminalidade.

Por esse ponto de vista, o uso da Criminologia Cultural aqui pretendido procura estabelecer em que medida o comportamento ora considerado desviante ou criminosos desafia, subverte ou resiste aos valores, símbolos e códigos de uma cultural dominante.

2 ESTÉTICA URBANA E A MODA RELACIONADAS A CRIMINOLOGIA CULTURAL

A contribuição dos estudos de estética urbana como instrumento de análise que toma a cidade como objeto histórico e cognitivo, como elemento portador de valores a serem identificados, indagados e interpretados, atribuindo valor histórico, estético e memorial aos conjuntos arquitetônicos e aos tecidos urbanos.

Diante das incisivas transformações em curso no contexto europeu – impulsionadas seja pela atividade industrial, seja pelas significativas alterações nas relações políticas, econômicas e sociais – , evidenciou-se a magnitude e rapidez com que os antigos cenários urbanos se dissolviam, abrindo caminho para a percepção do ambiente edificado como um artefato cultural. A transformação da cidade, no entanto, foi apenas uma dentre tantas mudanças que então se evidenciavam ao longo do século 19.

Tomando o tema da praça pública como ponto de partida, Sitte analisou a composição estética e as relações de escala entre os elementos que compõem o espaço urbano das cidades pré-industriais. Por meio do emprego de numerosos desenhos e exemplos práticos buscou evidenciar as qualidades projetuais desses conjuntos urbanos, as relações espaciais entre as praças e os edifícios públicos adjacentes, a escala do observador e os efeitos de perspectiva e percurso.

A sua busca pela compatibilidade entre a técnica e a estética urbana, portanto, repousaria na crença da solução integrada de todas as questões envolvidas. Apesar de considerar os aspectos artísticos a partir da influência sittiana, como o próprio autor declara, a aplicação de tais prerrogativas sobre a cidade antiga.

Nesse momento, no entanto, o contexto histórico e cultural brasileiro ainda não criara as condições de partida para a discussão sobre a interferência de reformas dessa envergadura do ponto de vista da conservação do patrimônio urbano existente.

No cerne da chamada estética urbana estão, pois, evidentes, as tensões de fim de século representadas pelo conflito entre o desejo de conservar a cidade antiga e a constatação de sua necessária transformação, ou seja, a manifestação no campo urbanístico das tensões em torno da modernidade (BIANCHETTI, 1999, p. 11).

No que tange a moda, o grafite sempre foi associado ao movimento hip hop, porém, no século 21, tornou-se uma das principais expressões de arte e segue influenciando o design, arquitetura e a moda. Não é raro encontrar editoriais de revistas como a Vogue, por exemplo, com modelos vestindo roupas ou usando acessórios que remetam a essa arte, ou até mesmo usando o grafite como pano de fundo (no caso de paredes e murais). Na moda, há produtos voltados ao público que consome e vive o grafite: camisetas, bermudas, calças, tênis, mochilas e acessórios que de alguma forma se aproximam da estética da periferia.

De tal modo, passa-se agora a análise da relação entre controle penal e arte de rua/cultura popular no sentido de capturar os sentidos e fluxos das campanhas de criminalização que incorporam as políticas reacionárias de controle penal, destinadas a promover eventuais agendas morais.

3 GRAFITE: O PRECONCEITO ELITISTA-INSTITUCIONAL E A QUESTÃO DA “CENSURA CRIMINALIZANTE” DE PRÁTICAS CULTURAIS PERIFÉRICAS

Historicamente, as culturas populares vêm sendo tratadas como um problema penal, inclusive sendo criminalizadas.

A título de exemplo, no século XIX a capoeira e os batuques africanos eram considerados pelas autoridades com uma forma obscena de insurgência à ordem, um mau exemplo de incitação ao crime. Já no início do século XX, o samba sofreria perseguições similares às dos batuques anteriores (contudo, como não existia uma legislação específica, no caso dos sambistas era usada a tipificação de vadiagem). Posteriormente, nos anos 90 com o Hip Hop, que era constantemente recriminado por letras que referenciavam o crime e as drogas, ocorreu o episódio da prisão da banda brasileira chamada Planet Hemp, sob alegação que o refrão de determinada música fazia apologia e incitava o uso de drogas. Atualmente, o exemplo mais referenciado é o caso funk, por se tratar de uma cultura periférica, marginalizada. Assim, com a suposta finalidade de coibir a delinquência, passa-se a combater as práticas culturais do dito delinquente (repreensão cultural, seletividade cultural). (FURQUIM, 2014).

Nesse sentido, “as autoridades legais e morais operam dentro de uma “estética de poder” definindo o certo e o errado e a conveniência da arte pública – de estilo apropriado aos seus próprios olhos – condenando e criminalizando a arte (considerada) controversa”. (FURQUIM; LIMA; 2015).

A criminalização das culturas periféricas encontra respaldo no seio da sociedade atuária, onde se expande pelas políticas criminais que ainda tendem a interpretar manifestações periféricas como inapropriadas, entendendo tratar-se de uma semente para o crime, necessitando assim de criação de normas específicas para evitar essas condutas tidas como desviantes. (FURQUIM, 2014).

Supracitado autor (FURQUIM, 2014, p.100) tece importante reflexão sobre esse modelo de “política criminal”:

Essa política criminal de repressão cultural é a volta da retórica da “Lei e Ordem”, traduzida das diversas formas – apreensões sumárias, repreensão cultural, seletividade cultural – como um gesto soberano de império para reconfortar o público dominante (…) só mudamos a roupagem e o rótulo, em vez de punir o bêbado, o mendigo e a prostituta, repreende-se o funkeiro, o rapper, o grafiteiro, e por aí vai aumentando a lista, pois sempre que surgir uma manifestação dita como subcultural, que não seja aprovada pelos valores dominantes, deve ser repreendida sob a falácia da garantia da segurança pública.

A finalidade desses modelos crimogênicos construídos sobre arte e música como núcleo de um pânico moral é desviar a atenção da discussão dos grandes e complexos problemas políticos, como a desigualdade econômica e étnica e da alienação da população jovem e trabalhadores criativos de instituições de confinamento. Associar a arte e a música popular ao crime dá uma falsa e demagógica esperança ao público em geral que eventual insubordinação pode ser banida sem precisar de reformulação das estruturas, quando pelo contrário dá origem a ambos (por um lado, à insubordinação e, por outro, aos empresários moralistas que desejam suprimir a insubordinação). (CUCO; MARTINS, 2015).

De tal maneira, nota-se um comportamento Direito Penal enquanto monopólio das classes e da cultura dominante, que por meio da coação, pretende penalizar grupos que diferem dos valores que aqueles julgam fundamentais.

Isso esclarecido, resta agora retratar a casuística do grafite, notadamente sobre seu contorno artístico e a problematização devido à histórica marginalização da prática, que o envolve de preconceito e desvalorização.

O grafite imprime uma forma de expressão gráfica do hip-hop que tive origem nas comunidades negras de Nova York, onde começaram a ser expostas uma grande quantidade de rabiscos identificando caligrafias de indivíduos e gangues. Aos poucos, os rabiscos foram evoluindo; os contornos ficaram mais largos e ganharam cores na tentativa de diferenciação e exclusividade. Com o passar do tempo, essa cultura de rua construiu um proveitoso diálogo com as artes gráficas. No Brasil, sua origem, está atrelada a manifestações contra o perfil ditatória até então vigente. (BORELLI; OLIVEIRA, 2008).

Em geral, o grafite se predispõe a questionar a falta de sérias lideranças éticas no país e no mundo, os problemas enfrentados pela sociedade como um todo e, especialmente, por grupos excluídos da sociedade, a opressão causada pela diferença de classes, a violência, a ironia de acontecimentos políticos e suas consequências. (GITAHY, 1999).

Importa registrar que paralelamente ao surgimento do grafite, na década de 60, surgem também as pichações – que vão desde a manifestação política, passando pela competição entre aqueles que conseguem atingir os locais de acesso mais difícil (como o alto de edifícios) – até o simples ato de vandalismo em prédios públicos e monumentos. (LAZZARIN, 2007).

Nesse sentido, por muito tempo o grafite e a pichação foram vistos como elementos e práticas conexas, traduzidos numa forma de vandalismo e rebeldia contra a moral e a lei ora posta. Assim, ao falar em grafite costuma-se evocar a lembrança da pichação a partir de um impulso higienista e legalista está sempre nos inclinando a trata-los como vandalismo. (SILVA, 2004).

Nessa quadra, o Direito Penal assume um papel peculiar, no sentido de que coexistem duas políticas criminais aparentemente distintas, quais sejam, uma orientada para a preservação correcional do “bom” delinquente (aquele cuja capacidade econômica de consumir deve ser preservada) e outra voltada para o controle e segregação integrais do criminoso perigoso, o qual está à margem da sociedade de consumo e, por esta razão, representa um risco aos demais. Tais perspectivas, no entanto, provém de uma mesma orientação, fundada na mudan- ça de finalidades da pena de prisão, eis que esta, atualmente, longe de voltar-se para as ideologias “re” é, antes, uma alternativa de confinamento para neutralizar aqueles que não são necessários à economia (para os quais não há atividade laboral para desempenhar) (BATISTA, 1998). Esse movimento penalizador é, sem dúvidas, seletiva e atinge sobremaneira os pobres, criminalizando suas práticas sociais, incluindo aí formas de sociabilidade.

Atualmente esta visão tem mudado, contudo subsistem contornos preconceituosos, notadamente pelo fato do grafite expressar a voz de um povo e uma cultura marginalizada e, por vezes, silenciada por meio do aparato repressivo do estado.

3 O “RECONHECIMENTO” JURÍDICO DO GRAFITE E A “PROTEÇÃO” DA ARTE DE RUA: debate constitucional.

A relação do grafite com o fenômeno jurídico – debates sobre o direito à cidade, à cultura e de liberdade de expressão, direitos autorais, por exemplo – tem se desenvolvido ao longo do tempo por um caminho que aponta avanços e retrocessos, especialmente observados na confusão prática e conceitual que permeia a tênue linha da concepção de manifestação cultural legítima e seu etiquetamento penal.

Para o debate sobre o reconhecimento jurídico do grafite enquanto manifestação artística faz-se cogente colacionar especialmente o art. 65 da Lei n. 9.605/98 – Lei de Crimes Ambientais em sua redação original, bem como na sua alteração pela Lei n. 12.408/11[2].

Consigna-se, contudo, que antes da Lei de Crimes ambientais, a prática do grafite era tratada sob o bojo do art. 163 do Código Penal, isto é, era considerada crime de dano. A partir de 1998, com a edição da Lei n. 9.605/98, denominada Lei dos Crimes Ambientais, inseriu-se no rol dos crimes contra o ordenamento Urbano e o patrimônio Cultural a prática do grafite, à revelia de sua importância (já tratada) enquanto manifestação cultural periférica. O texto legal assim tratava:

Art. 65. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa.

Infere-se, pois, que o Legislador, não conseguiu operar de forma coesa à realidade sociocultural que envolve as práticas do grafite, de maneira, a propósito, referida expressão artística é utilizada por vezes como ferramenta de inclusão social e denúncia contra mazelas vivenciadas, além de ser o sustento/trabalho dos praticantes.

Pode-se dizer inclusive que tal normativa imprime uma herança histórica e cultural elitista de políticas penais anteriores à redemocratização, qual seja, a de desprestigiar, inclusive, criminalizando as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes de processo civilizatório nacional.

Percebendo, em parte, tal esquizofrenia, a Lei 12.408, de 25 de maio de 2011, decorrente do Projeto de Lei 706/07, do Deputado Geraldo Magela, veio diferenciar o grafite da pichação e o “descriminalizar”, nos seguintes termos:

Art. 65.  Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)

§ 1o  Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.408, de 2011)

§ 2o  Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.  (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011)

Em que pese a evolução na legislação ao reconhecer a possibilidade artística do grafite, prevalece, porém, a distância da Lei relativamente às práticas culturais, o que não condiz com um Estado Democrático de Direito. Isso pode ser verificado especificamente no fato de que a descriminalização deu-se apenas em relação ao grafite feito com autorização e, no núcleo do tipo, destacou-se que, para ele deixar ser crime, é necessário, também, tratar-se de manifestação artística realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou particular, abrindo ao Poder Constituídos, especialmente ao Judiciário, de decidir sobre o caráter artístico ou não de um grafite. (GONTIJO, 2012).

Na análise de Luiza Weber, Márcia Kessler e Salo de Carvalho (2015, p.58) a descriminalização da prática de grafite passa a ser:

(…) condicionada (a) ao objetivo comercial de valorização do patrimônio; (b) ao consentimento ou à autorização do proprietário, locatário, arrendatário ou órgão competente; e (c) à obediência às posturas municipais e a normas de preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (…) a questão é reduzida, quase exclusivamente, ao valor que o grafismo (des)agrega ao bem, motivo pelo qual é falaciosa a pretensa tutela ambiental: a finalidade última da incriminação é a tutela estatal do patrimônio.

De tal modo, apesar dos avanços, deve-se ressaltar que o mundo artístico, especialmente as culturas periféricas, ainda encontram dificuldades para garantir sua devida proteção, especialmente em razão do desprestígio de natureza preconceituosa. Nesse sentido, ainda que seja possível inferir em uma interpretação extensiva o agasalho constitucional as ditas manifestações pelo artigo 265 da CRFB/88, a proteção jurídica conferida, in casu ao grafite, ainda é deveras incipiente. Nessa quadra, o próprio incentivo por meio de políticas públicas a esta arte padece de dificuldades[3].

Consigna-se, sobre a interpretação constitucional, que o grafite, deve ser compreendido como arte urbana expressiva de uma realidade social peculiar, isto é, dotado de uma identidade sociocultural. De tal forma, caracteriza-se, indubitavelmente, como bem cultural que merece ser preservado e especialmente fomentado, de alguma forma, pelo Poderes Públicos (artigo 215, caput). Ademais, cabe ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, apoiando e incentivando a valorização e difusão das manifestações culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o instrumental analítico disponibilizado pelo paradigma da criminologia cultural, no sentido de apontar para novos aportes para as políticas criminais, há que se destacar a necessidade de evitar construção, pela via normativa, de estereótipos penais por meio de uma sobreposição cultural dominante que (re)produz a o processo de criminalização de manifestações culturais e das populações periféricas.

Importa grifar que a criminalização de determinadas práticas culturais dos setores populares resulta de um processo histórico (e aparentemente em continuidade) que, aliado a supostos discursos moralistas de uma classe dominante, esquadrinhava a contenção e controle de manifestações diferenciadas. Esses discursos criminalizantes imprimem, de certa forma, a continuidade do preconceito institucional.

Nesta esteira, o processo de incriminação de manifestações culturais demonstra, indubitavelmente, a seletividade do Direito Penal, reforçando o processo de estigmatização contra uma população, em regra, socialmente vulnerável. Tal atitude, portanto, atenta claramente contra os princípios de um Estado Constitucional Democrático de Direito.

Assim, verifica-se a necessidade de (re)pensar alternativas à luz das premissas constitucionais civilizatórias, não centradas na taxação penal, considerando, com efeito, a importância social, artística, econômica, turística, antropológica e urbanística que, no caso em apreço, o grafite possui.

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[1] Artigo apresentado à disciplina Criminologia, da Universidade Estadual do Maranhão, ministrada pela professora Thayara Castelo Branco, como requisito de nota.

[2] Por treze anos, o legislador brasileiro tratou de maneira igualitária as atividades de pichação, graffiti e conspurcação, conforme art. 65 da Lei n. 9.605/98.

[3] A participação do indivíduo na construção da sociedade cultural deve ser estimulada e garantida pelos Estados nos diferentes níveis, do global ao local, tal qual designado nos compromissos assumidos por meio das Convenções sobre a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial e sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, além da efetivação das liberdades fundamentais da Declaração de Direitos do Homem, dos Pactos Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais. (LEVY, Dan Rodrigues; LIGUORI, CARLA. CIDADE CINZA: O GRAFITE E O DIREITO HUMANO DE PARTICIPAÇÃO NA SOCIEDADE CULTURAL NA CONSTRUÇÃO DO MEIO AMBIENTE URBANO. CONPEDI, Direito ambiental, sustentabilidade e direitos da natureza I [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UNA/UCR/IIDH/IDD/UFPB/UFG/Unilasalle/UNHwN. 2017)

Como citar e referenciar este artigo:
MEIRELES, Antônio Ramos; BRITO, Camila de Carvalho; ALMEIDA, Larissa Vidal Diniz de. Criminologia Cultural: Uma análise da estética urbana, da moda e sobre a (des)criminalização do grafite. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/criminologia-cultural-uma-analise-da-estetica-urbana-da-moda-e-sobre-a-descriminalizacao-do-grafite/ Acesso em: 22 nov. 2024