Edição nº 5 – Ano I
Resumo: O vertente artigo tem como escopo analisar o fenômeno do crime continuado sob a perspectiva diferenciadora em relação à reiteração criminosa e aos crimes habitual e permanente.
Sumário: 1. Crime Continuado e Reiteração Criminosa; 2. Crime Continuado e Crime Habitual; 3. Crime Continuado e Crime Permanente.
Palavras-Chaves: Dogmática Penal; Teoria do Delito; Concurso de Crimes; Crime Continuado; Reiteração Criminosa; Crime Habitual; Crime Permanente.
- CRIME CONTINUADO E REITERAÇÃO CRIMINOSA.
Estas são duas figuras que não se confundem. Aliás, este também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual “a reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional é suficiente para descaracterizar o crime continuado”.[1]
A continuidade delitiva representa, na verdade, conforme já destacado inicialmente, ficção jurídica inspirada em política criminal e na menor censurabilidade do autor de crimes plurais da mesma espécie e praticados de modo semelhante, a indicar continuidade (ou seja, que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro).
Diferente, no entanto, é a hipótese de simples reiteração ou habitualidade criminosa, em que, muito embora haja pluralidade de delitos, ainda que da mesma espécie, ausente as similitudes; ou, ainda que verificadas as similitudes, estas não são bastantes a indicar continuidade.
Tome-se, por emprestado, hipótese concreta julgada pelo Supremo: “No caso dos autos, os modos de execução são distintos e os delitos estão separados por espaço temporal igual a seis meses. Não se cuida, portanto, de crime continuado, mas de reiteração criminosa. Incide a regra do concurso material”.[2]
Nos casos de mera reiteração criminosa, é claro que o tratamento penal deve ser endurecido (leia-se: maior pena), uma vez que a culpabilidade (no sentido de censurabilidade ou reprovabilidade) é maior.
Indispensável, neste ponto, o magistério de Cernicchiaro, segundo o qual só se pode entender a continuação, desde que a seqüência das ações ou omissões diminuam a censura. “Ao contrário, se as circunstâncias evidenciarem, por exemplo, propensão para o delito, raciocínio frio, calculista, reiteração que se projeta todas as vezes que o agente encontra ambiente favorável aos delitos, pouco importa a conexão objetiva. A reiteração que, se transforma em habitualidade, atrai, sem dúvida, maior culpabilidade”, o que significa maior pena, em virtude de não se reconhecer o benefício dogmático e político-criminal da continuidade delitiva.[3]
Acompanhe, nesta linha, clássicos julgados do Egrégio Supremo:
– “As características reveladas pelo modo de ação do paciente na perpetração dos cinco crimes de estelionato revelam que houve mera reiteração no crime, e não continuidade delitiva, convergindo para a condução de que o paciente adotou o crime como meio de vida. Firmou-se a jurisprudência do STF no sentido da descaracterização do crime continuado ‘quando, independentemente da homogeneidade das circunstâncias objetivas, a natureza dos fatos e os antecedentes do agente identificam reiteração criminosa indicadora de delinqüência habitual ou profissional’ (STF – Primeira Turma – HC 70.891/SP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ de 01.07.94, p. 17498)”.[4]
– “Quem faz do crime sua atividade comercial, como se fosse profissão, incide nas hipóteses de habitualidade, ou de reiteração delitiva, que não se confunde com a da continuidade delitiva. O benefício do crime continuado não alcança quem faz do crime a sua profissão”.[5]
– “Habeas Corpus – Crime de Roubo – Práticas Sucessivas – Condenações Penais Diversas – Pretendido Reconhecimento do Nexo de Continuidade Delitiva – Inocorrência – Mera Reiteração de Crimes – Ordem Denegada. – A prática reiterada e habitual do crime de roubo, por delinqüentes contumazes – que fazem, de seu comportamento individual ou coletivo (reunidos, ou não, em quadrilha), uma atividade profissional ordinária – descaracteriza a noção de continuidade delitiva. O assaltante, que assim procede, não pode fazer jus ao benefício derivado do reconhecimento da ficção jurídica do crime continuado. A mera reiteração no crime – que não se confunde, nem se reduz, por si só, à noção de delito continuado – traduz eloqüente atestação do elevado grau de temibilidade social daquele que incide nesse gravíssimo comportamento delituoso. – O reconhecimento do crime continuado – que afasta a incidência da regra do cúmulo material das penas – reveste-se de caráter excepcional, devendo, para os efeitos jurídico-penais dele resultantes, ficar plenamente configurado em todos os elementos e pressupostos que lhe compõem o perfil legal e a noção conceitual. Precedentes”.[6]
– “’Habeas Corpus’. Pedido de unificação de penas relativas a doze condenações por delito de roubo. Indeferimento pelo Tribunal. Reexame pela via do “habeas corpus”, HC 68.864 e HC 69.224. Caráter excepcional da unificação. Mera reiteração de pratica criminosa. Configuração que não prescinde do concurso, necessário e essencial, de outros elementos e fatores, de ordem objetiva, referidos pela lei. Crimes subseqüentes que não resultavam do aproveitamento das condições objetivas da pratica dos delitos anteriores. Inexistência das condições objetivas: tempo, lugar e maneira de execução. Atos isolados, independentes, sem seqüência ou continuidade. Variação constante de comparsas. Ausência de homogeneidade ou uniformidade nas ações criminosas e nos desígnios do paciente. Continuidade não caracterizada, HC 68.124. Reiteração criminosa por quem faz do crime de roubo meio de vida. Descabe o beneficio da continuidade delitiva, em se tratando de pratica habitual e reiterada do crime: HC 68.626, HC 69.899, HC
2. CRIME CONTINUADO E CRIME HABITUAL.
O critério distintivo entre crime habitual e crime continuado reside exatamente na natureza jurídica dos atos integrantes e, conseqüentemente, no número de delitos praticados. Deve-se verificar se foram vários os crimes cometidos (em continuidade delitiva) ou apenas um delito (na forma habitual).
O crime habitual significa a repetição de certos atos, tidos como indiferentes penais (se considerados isoladamente), mas que, à luz do todo, manifestam estilo de vida censurável e incriminado. Em detalhes, são características do crime habitual: a) repetição de atos; b) atos que, se considerados isoladamente, seriam indiferentes penais; c) estes atos, no entanto, quando analisados à luz do todo, traduzem um estilo de vida; d) modo de vida, este, reprovável e previsto em lei como crime.
Já o crime continuado significa, em verdade, uma série (ou pluralidade) de crimes, todos eles ligados pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, de maneira que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro. Trata-se, de fato, como o próprio nome indica, de vários crimes cometidos em continuidade ou, então, de uma continuidade delitiva.
Observe a diferença entre os institutos. No crime habitual, os atos que o compõem são, por si mesmos, irrelevantes penais (ou seja, não constituem crimes isoladamente); apenas a soma destes atos, o todo, que configura um delito, chamado de habitual, pois manifesta o estilo de vida do sujeito ativo. Ex.: curandeirismo (art. 284 do CP). Diferentemente, no crime continuado, as partes integrantes do todo são, de per si, crimes, configurando o todo apenas uma pluralidade de delitos, reunidos sob o nome de continuidade criminosa, tendo em conta os elementos especiais que os identificam enquanto verdadeira “cadeia de delitos”. Ex.: homicídios em continuidade delitiva (art. 121 c.c. 71, ambos do CP).
3. CRIME CONTINUADO E CRIME PERMANENTE.
O crime permanente é aquele cuja consumação se protrai (ou prolonga) no tempo. Já o crime continuado, repita-se, são vários delitos, porém ligados um ao outro devido a condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, de forma que os subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro. O paradigma de diferenciação é o mesmo da hipótese anterior (crime continuado x crime habitual), qual seja, a natureza jurídica dos atos integrantes e, conseqüentemente, do número de delitos praticados. O crime permanente é crime único cuja consumação se arrasta no tempo. Ex.: seqüestro (art. 148 do CP). Já a continuidade delitiva indica número plural de crimes (dois ou mais). Ex.: furtos em continuidade delitiva (art. 155 c.c. 71, ambos do CP).
* Leonardo Marcondes Machado, Delegado de Polícia em Santa Catarina. Especialista em Ciências Penais pela UNISUL / IPAN / LFG. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Colaborador-articulista de diversas revistas eletrônicas.
[1] STF – Primeira Turma – RHC 93.144/SP – Rel. Min. Menezes Direito – j. em 18.03.08.
[2] STF – Segunda Turma –HC 93.824/RS – Rel. Min. Eros Grau – j. em 13.05.08 – DJe 152 de 14.08.08.
[3] CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Código Penal – Concurso de Pessoas. Crime continuado. Penas – Aplicação e Execução. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 8. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 89.
[4] STF – Primeira Turma – HC 72.848/SP – Rel. Min. Ilmar Galvão – j. em 03.10.95 – DJ de 24.11.95, p. 40389.
[5] STF – Segunda Turma – HC 74.066/SP – Rel. Min. Maurício Corrêa – j. em 10.09.96 – DJ 11.10.96.
[6] STF – Primeira Turma – HC 70.794/SP – Rel. Min. Celso de Mello – j. em 14.06.94 – DJ 13.12.02, p. 72.
[7] STF – Segunda Turma – HC 71.019/SP – Rel. Min. Paulo Brossard – j. em 18.10.94 – DJ de 19.12.94, p. 35182.