Cláusulas pétreas e a maioridade penal
Ives Gandra da Silva Martins*
O presidente Lula, em inflamado e correto discurso, declarou, ao contestar o movimento que pretende reduzir a responsabilização penal do menor de 18 para 16 anos, o seguinte: “Fico imaginando que, se a gente aceitar a diminuição da idade para puni-los para 16 anos, amanhã estarão pedindo para quinze, depois para nove, depois para dez, quem sabe algum dia queiram punir até um feto” (dia 16 de fevereiro, todos os principais jornais do Brasil).
Embora, no presente artigo, pretenda discutir o direito individual do menor de não ser responsabilizado penalmente com menos de 18 anos, uma consideração preliminar faz-se necessária. E é uma consideração de elogio ao Presidente Lula. Ao declarar que o feto não deve ser punido, colocou-se decididamente contra o aborto, que é a punição máxima passível de ser imposta ao feto inocente, pois implica a supressão de sua vida. É pena de morte, embora não imposta por nenhum tribunal. É pena semelhante à adotada nos campos de concentrações nazistas, como a dilaceração dos membros do nascituro para partes dele sair, sem dificuldade, do ventre materno. Sua aplicação é feita por vários métodos: mediante a inserção de agulhas na cabeça do feto, para sugar-lhe o cérebro; pelo esmagamento da cabeça ou, ainda, pelo envenenamento, mediante injeções letais. Em alguns países, já se anestesia o feto, antes de matá-lo, para que sofra menos.
O Presidente Lula, numa demonstração de clara percepção dos direitos dos menores, desde a concepção (art. 4º do Pacto de São José e art. 2º do Código Civil), colocou-se nitidamente contra o aborto, ao dizer que não se pode punir o feto, a que o permissivismo emocional poderia levar, nesta tendência de responsabilização penal do menor em idade inferior a 18 anos.
A meu ver, todavia, a questão da responsabilização penal do menor é, fundamentalmente, uma garantia constitucional. Estabelecem os arts. 60 § 4º inc. IV e 228 da C.F.:
“Art. 60 – ………..
§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: …………
IV – os direitos e garantias individuais” ;
“Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.
Sendo, pois, a inimputabilidade antes dos 18 anos um direito e uma garantia individual do menor, não vejo como possa esta disposição da lei suprema ser modificada, pois cláusula imodificável do texto constitucional.
O constituinte originário poderia ter adotado o limite de 16 anos, visto que, hoje, dado o acesso à informação, a juventude amadurece com muito mais rapidez que no início do século passado. Basta lembrar que, no Código Civil de 1917, cujo anteprojeto foi elaborado por Clovis Bevilacqua, a maioridade civil era de 21 anos. Apenas com a emancipação –autorização pátria ou judicial- poderia ser reduzida para 18 anos. Por outro lado, o Código Penal é de 1940, ou seja, de época em que a maturidade era alcançada de forma mais lenta e o senso crítico não se encontrava sujeito a toda a espécie de impacto da mídia e da comunicação eletrônica, da flexibilização dos costumes e da amputação de princípios – característica maior da sociedade do final do século XX e início do XXI – em que a tecnologia facilitou a multiplicação dos vícios da sociedade e a sensível redução de valores, como o de pátria, família, lealdade, fidelidade e respeito ao próximo.
O próprio constituinte permitiu ao jovem o direito de votar aos 16 anos, –também cláusula pétrea- com o que, nesta idade, já lhe reconhece o direito de participar da escolha quanto ao destino do país.
Nas duas audiências públicas de que participei, a convite dos constituintes (Sistema Tributário e Ordem Econômica), e nos inúmeros contactos formais e informais que, naquela ocasião, com eles tive, referi-me à incongruência de ser o jovem responsável para decidir o destino do país aos 16 anos e irresponsável sob o aspecto penal, até aos 18 anos, no caso de violar a ordem jurídica.
A tese, todavia, de adotar critério uniforme (idade mínima de 16 ou 18 anos) para a definição da responsabilidade política e penal, terminou não prevalecendo. O texto constitucional acabou por consagrar fantástica incoerência ao adotar critérios diferentes, como se o menor fosse responsável e irresponsável ao mesmo tempo, conforme o tipo de ação que a sociedade lhe solicitasse, por deficiência biológica de seus mecanismos de captação da realidade social.
O certo, todavia, é que a solução incongruente foi constitucionalizada –até por que foram Comissões diferentes que cuidaram das temáticas- e hoje a impunidade do menor até os 18 anos é clausula pétrea.
Parece-me que a única solução, portanto, para a questão, é trabalhar-se com legislação especial, promovendo o alargamento do prazo de permanência dos menores nas escolas de recuperação e reintegração na sociedade, e transformando tais estabelecimentos em escolas de reeducação, e não em escolas do crime; escolas de inclusão comunitária, e não de segregação definitiva.
Parece-me, igualmente, que a Câmara dos Deputados agiu bem, ao elevar a pena dos adultos que utilizam menores para a prática de delitos, pois a falta praticada torna-se, nessa hipótese, muito mais grave e deve, portanto, ser punida.
O tema merece, de mais em mais, reflexão por parte dos operadores do direito e dos governantes, no momento atual, em que a criminalidade cresce, no país, de forma tão acentuada.
* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br
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