Se pudéssemos tocar a dimensão de delicadeza de assunto tratado nas páginas a seguir entenderíamos o drama de uma mãe que recebe o diagnóstico de
gravidez de feto anencefálico. Sem muitas delongas deixo a impessoalidade de lado por breves palavras e declaro meu apoio ao aborto, que prefiro que
seja tratado como antecipação terapêutica do parto, em casos de anencefalia. Num breve resumo da subsequente argumentação, podemos dizer que é uma
escolha, um sofrimento mínimo, uma complementariedade entre direito e moral.
Assistimos em sala um documentário intitulado “Uma história Severina” que contou paralelamente a decisão que o STF proibiu o aborto de anencefálicos e
Severina, seu marido e seu feto anencéfalo de sete meses. Quando levada a trabalho de parto, isso na véspera da decisão do Supremo sobre a matéria, ela
se viu num limbo jurídico e moral onde não poderia prosseguir com o procedimento devido a sua coação normativa e reflexo penal e manter-se grávida de
um nascituro que jamais veria o mundo já não era uma opção.
As imagens do documentário foram arranjadas de uma maneira digna de ser comentada: elas passavam os flashes dos votos dos ministros, dos
comentários das instituições da sociedade civil (CNBB, médicos) e a sustentação oral dos advogados e logo em seguida pinçavam a trecho do drama de
Severina referente a tal flash. Era assistir o que todo jurista pretende quando se debruça sobre o estudo, criação e análise de lei, nesse caso,
preceito fundamental: ver as aplicações vívidas de sua normatização, jurídica e moralmente falando.
No que entramos nas vias tocantes entre direito e moral, cabe aqui uma passagem de Habermas:
A legislação moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, os deveres éticos nos deveres
jurídicos, etc. Subjaz a essa construção a ideia platônica segunda a ordem jurídica copia e, ao mesmo tempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem
inteligível de um “reino dos fins” (…). A ideia de que existe uma hierarquia de leis faz parte do mundo pré-moderno do direito. A moral autônoma e o
direito positivo, que dependem de fundamentação, encontram-se numa relação de complementação recíproca.
Habermas quis dizer com complementação recíproca o relacionamento entre direito e moral dado quando um flui em direção ao outro, seja no que concerne à eficácia da moral ou ao que concerne à legitimidade do direito.
A parte que responde em nome do direito dentro do caso concreto da Severina apresenta-se entre os artigos 124 e 128 do Código Penal. Atualmente o
ordenamento jurídico brasileiro prevê duas modalidades de manobras abortivas: as lícitas e as ilícitas. Estas estão positivadas nos artigos
supracitados do CP.
Note-se que o artigo 124 do referido diploma legal trata do auto-aborto, o qual se configura quando a própria gestante, por sua conta e risco, efetua a
execução material do ato delituoso por meios químicos ou físicos, independentemente de instigação ou auxílio de outrem.
A legislação penal brasileira também prevê punição para o aborto praticado por terceiro. Onde o artigo 125 dispõe sobre o aborto provocado sem o
consentimento da gestante (o qual para configurar-se necessita indispensavelmente de duas situações: a interrupção do estado gravídico por qualquer
pessoa que não a própria gestante; e que a mesma não tenha conhecimento do estado em que se encontra. Torna-se, assim, desnecessária sua negativa
expressa, bastando simplesmente que meios abortivos sejam nela empregados à sua revelia) e o aborto provocado com o consentimento da gestante que está
tipificado no artigo 126 do Código (giza-se que para a conduta do agente adequar-se ao tipo, o consentimento da gestante só precisa ser válido, não
precisando necessariamente ser expresso). O ordenamento jurídico submete o aborto provocado por terceiro à qualificação, conforme aduz o artigo 127. Se
em decorrência das manobras abortivas efetuadas restarem à mulher lesões corporais de natureza grave, a sanção será aumentada em até um terço. Se o
desfecho da situação for à morte da parturiente, a pena será duplicada.
Por fim, o artigo 128 do Código Penal traz as duas formas legais de aborto no Brasil às quais são: o aborto necessário ou terapêutico e o aborto
sentimental ou em decorrência de estupro. Ressalta-se que além da situação fática adequar-se há pelo menos uma das hipóteses colacionadas acima, é
necessário que o ato seja praticado por um médico, ficando a paciente sob seus cuidados e em condições sanitárias adequadas.
A coação moral de nosso caso concreto também é polêmica. O documentário contou com uma passagem de um comentário à religiosidade, metaforicamente
representada pela cruz que ali na sala de sessões do STF se apresentava. Por vezes que o Estado tenha vestido o manto da laicização, ainda muito vale o
reflexo da Igreja na sociedade civil. E, mais, a opinião do cidadão comum, da sociedade civil como um todo que se pudesse falar exprimiria os anseios e
crenças que vulgarmente chamamos de senso comum.
Na audiência pública proposta pelo relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio, foram ouvidos
representantes de 25 diferentes instituições, ministros de Estado e cientistas, entre outros.
Foram quatro dias de argumentos, opiniões, palestras e dados científicos. De um lado, defensores do direito das mulheres de decidir sobre prosseguir ou
não com a gravidez de bebês anencéfalos. Do outro, aqueles que acreditam ser a vida intocável, mesmo no caso de feto sem cérebro.
O advogado Luis Roberto Barroso, que propôs a ADPF 54 em nome da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, disse que foram quatro sessões
longas e extremamente proveitosas e agradeceu às diferentes entidades religiosas, científicas, médicas e da sociedade civil que participaram do debate.
Em nome da Confederação, Barroso destacou o privilégio de ter compartilhado essas sessões com “pessoas de grande qualificação técnica e moral”. Ao
final, ele fez suas considerações sobre o debate realizado e destacou que o diagnóstico é feito com 100% de certeza e é irreversível, além de dizer que
a rede pública de saúde tem plenas condições de fazer o diagnóstico assim como realizar o procedimento médico adequado. Disse ainda que a anencefalia é
letal em 100% dos casos, sendo que 50% morrem durante a gravidez.
Em sua opinião, prosseguir com a gravidez traz risco para a saúde da mulher e lembrou que não é possível transplantar órgãos de anencéfalos, além de
afirmar que a interrupção deve ser tratada como antecipação terapêutica do parto e não aborto. Por fim, disse que a anencefalia não se confunde com
deficiência, pois não há crianças ou adultos com anencefalia.
A dificuldade em precisar o número de gestações de anencéfalos se deve, primeiramente, ao fato de que muitos fetos morrem (clinicamente) ainda no útero
materno e estas mães nem sempre levam este fato ao conhecimento de médicos ou de um hospital. Em segundo lugar, as genitoras de fetos anencefálicos que
expõe o problema à sociedade são, geralmente, aquelas que necessitam de tratamento pela rede pública de saúde, já que as demais, uma vez que possuem
melhores condições econômicas são assistidas por médicos particulares e, em sua maioria, efetuam com estes profissionais a interrupção de seu estado
gravídico (SANTOS, 2007).
Também pela absoluta inconveniência da proibição legal do aborto, pois é evidente que ninguém deixa de praticá-lo pelo só fato de ser crime um tal
comportamento, não tendo as disposições jurídico-penais relevância alguma no processo motivacional de formação da vontade de abortar; sendo muito mais
importante, no particular, razões de ordem moral, religiosa, as condições econômico-financeiras da mulher etc. Ademais, o direito – “capítulo da
anatomia política” (Foucault) – não pode pretender ser um apêndice da moral, especialmente num Estado laico, confundindo crime e pecado, como se ainda
vigesse entre nós o Livro V das Ordenações Filipinas (1603 – 1830). Nesse caso específico, portanto, não admitir a cirurgia significa penalizar quem,
ao invés de se dirigir a uma das muitas clínicas especializadas em aborto, optou por atuar de acordo com a lei.
Aqui cabe encaixar a teoria da desobediência das leis de Dworkin. Uma teoria da obediência das leis torna necessário o tratamento da questão da
desobediência, pois o problemático não parece ser, diante de um teoria jurídica ou moral, a obediência à lei, visto que isso é demandado pelo próprio
sentido da norma. Dessa forma, o problemático, principalmente sob o ponto de vista normativo, reside na questão da desobediência.
Nesse sentido, o tratamento da problemática da desobediência à lei deve ter por base e ser deduzida, no caso de Dworkin, da tese de levar os direitos a sério. Se essa tese for seriamente tomada, implicando que o indivíduo tenha certos direitos anteriores à ordem legal, então
“qualquer sociedade que pretenda reconhecer os direitos deve abandonar a ideia de um dever geral de obedecer à lei que seja válido em todos os casos”.
(DWORKIN, 1977). Nessa formulação, é necessário reconhecer:
O direito de desobedecer à lei não é um direito à parte, que tenha algo haver com consciência, adicional a outros direitos contra o governo. Ele é
simplesmente uma característica dos direitos contra o governo e não pode ser negado, em princípio, sem que seja negado que tais direitos existam.
Uma crítica que se faz à Alexy remete à demasiada aproximação feita por Alexy entre a correção moral e a jurídica e à sua defesa de uma harmonia muito
estrita entre elas. Tal harmonia “não somente relativiza a correção de uma decisão jurídica, mas a coloca em questão enquanto tal”. (HABERMAS, 1997).
Isso ocorre porque uma racionalidade completa da decisão judicial pressuporia a racionalidade da legislação. Como tal racionalidade não está disponível
devido às vicissitudes da política e ao amálgama de razões da legitimidade do direito (e é impossível afastar aqui a imagem da plenária do STF no que
cabe ao nosso caso concreto), a própria correção da decisão judicial acabaria ameaçada devido à impossibilidade ou dificuldade de realizar efetivamente
tal aproximação. Para responder a essa objeção, é necessário reconstruir o direito vigente, com Dworkin, de tal forma que a decisão correta tenha que
se encaixar num sistema jurídico coerente. O ponto em questão é que se trata de um sistema jurídico e não moral.
Primeiro, direito e moral são distintos, sob vários aspectos, mas não são separados: a legitimidade do direito não deve ser assimilada à validade
moral, nem deve o direito ser separado completamente da moral. Contra a ponderação, a prioridade do justo não significa moralização do direito,
significa, sim, que os conteúdos morais que adentram no direito devem ter prioridade sobre as demais razões que também adentram no direito.
Quanto à tese no caso especial, o próprio Habermas afirma se tratar de uma limpeza na casa habitada por ambos. Ao que parece, o ponto reside numa
questão de forma e não de conteúdo. Alexy propõe que a abertura da racionalidade adentre no direito em toda sua abrangência e liberdade. Habermas, por
sua vez, quer circunscrever o direito à racionalidadade engessada nos produtos da atividade legislativa, vedada aquela liberdade do juízo,
característica da abertura à universalidade da moral.
Com relação ao aborto, Habermas o aloca nas fileiras do desacordo moral e sugere aceitar a posição de Dworkin em relação a questão. Ora, Dworkin trata
o aborto, não só ligado ao direito à privacidade ligada ao devido processo, mas também à liberdade religiosa.
Estamos aqui versando sobre a liberdade. Preceito fundamental indiscutível, essa liberdade veste personificações nas quais a chamamos de liberdade
sobre o próprio corpo, liberdade religiosa, liberdade de pensamento, liberdade para contestar, liberdade de valores. Essa questão do aborto e, em nosso
conteúdo pontual, do aborto de anencefálico, jamais deixará de ser controversa e instigante. O nascituro tem resguardados direitos que a lei concede a
ele, mas não podemos fugir da teoria que nosso Código Civil recepciona para tal, a teoria da personalidade condicionada, que oscila em classificar o
feto ora como pessoa e ora como coisa.
A moral tampouco deixará esse assunto restar em paz, desejosa de adentrá-lo sempre que sua discricionariedade assim lhe soar melhor. “É moral abortar?
É moral abortar um feto anencefálico?”, pergunta-se a moral sempre que se vê refletida dentro do ordenamento jurídico referente.
O caminho de tijolos dourados dessa trama é o andar pelo solo do ordenamento jurídico fertilizado com a moral. Frutos bons e vindouros são os que com
apreciação cuidadosa são colhidos e classificados como justos, ao fim do caminho.
Gisele Witte
Acadêmica de Direito da UFSC
Estagiária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina