A prisão preventiva de pessoas influentes
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Vasta maioria da população — e não só os ignorantes — vê com olhos suspeitosos a dança do “prende e solta” de réus ilustres. Notadamente aqueles com polpudos — os malévolos, sempre desconfiados, diriam “convincentes” — recursos financeiros. Conclui, desconhecedora dos meandros jurídicos, que “cadeia foi mesmo feita só para pobres”, ou para “os três ‘p’: preto, pobre e pu…”
Mesmo com condenações em primeira e segunda instância — ou mesmo em “terceira”, o STJ — o réu alega que deve permanecer solto porque, afinal, sua condenação “não transitou em julgado”. Argumenta que, segundo nossa Constituição Federal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII da CF).
Ocorre que o “trânsito em julgado” de qualquer condenação, no Brasil, trafega em passo de tartaruga pois a estrada processual é cheia de brechas legais, com generoso arsenal de recursos. Mesmo com a existência de quatro condenações sucessivas, inclusive no STF, a interposição de embargos de declaração contra a decisão do tribunal máximo pode retardar — enquanto o réu foge, com ou sem passaporte — o famoso “trânsito em julgado” que alguns entendem necessário para prender — melhor dir-se-ia “segurar” — o réu. Conclusão: réu rico ou poderoso, bem defendido — sempre o é —, dificilmente vai para a cadeia ou, quando vai, é só por um curto período, principalmente se for idoso. Horrorizado com o novo ambiente — muito diferente do seu habitual —, o infrator fica doente, com hipertensão e depressão (quem diria…), o que favorece a chance de conseguir a prisão domiciliar que, pelo conforto, causaria inveja a qualquer morador (solto) de favela ou modesta residência. Como o réu, cidadão importante, tem profissão, residência fixa, recursos que o dispensem de cometer assaltos e geralmente é primário — embora, por vezes, com má reputação —, fica discutível, pela nossa legislação e tradição interpretativa, prendê-lo antes do quase quimérico “trânsito em julgado”.
Pessoas de bom senso concordam que, com ou sem disposição constitucional explícita, qualquer réu só pode ser considerado “culpado” quando proferida a última decisão sobre o caso. Isso é elementar, acaciano, e está implícito, provavelmente, em todos os sistemas judiciários do planeta. A inconformidade da maioria de população não é quanto ao conceito teórico de “ser culpado”. Rebela-se é contra o que chama de “privilégio” e “chances de fuga” dos abonados, que sempre têm residência fixa (talvez várias), profissão (ou boa aposentadoria) e reservas financeiras (excelentes…) para se manter e, por isso — segundo uma discutível hermenêutica da lei — não podem aguardar presos o “trânsito em julgado”.
Repetindo: uma coisa é a necessidade — logicamente perfeita — de se aguardar a decisão final para se rotular alguém como “culpado”. Outra, a necessidade prática, “terra-a-terra”, de segurar o réu para impedir sua fuga quando ele percebe que vai mesmo ser preso em caráter definitivo.
É raro encontrar uma pessoa mentalmente sã que se disponha a ficar em casa, aguardando a prisão, quando seu advogado o alertou, por telefone, de que será preso em poucas horas, ou dias, porque não há mais recursos disponíveis. Ele só aguardará a prisão — talvez, talvez, em casos raros… — se souber, com quase certeza, que ficará pouco tempo na cadeia propriamente dita, em razão da idade, estado de saúde ou outro fator de abrandamento da pena. A decisão de fugir, ou não, depende apenas de um cálculo de custo/benefício. Isso é normal e duvido que um réu inteligente — esses réus sempre são inteligentes — proceda de outra maneira. Se proceder — não fugindo, mesmo na iminência de uma longa estadia na prisão —, é o caso de seu advogado aproveitar, depois, essa anômala passividade alegando insanidade mental. ignorada anteriormente, a justificar uma boa revisão criminal. Afinal, Só um “louco” não foge, em tal circunstância. Este desdobramento é mencionado aqui mais como ironia, embora não impossível de ocorrer.
Como a grande maioria da população encara como tratamento desigual, esse “privilégio” outorgado aos réus de maior destaque e/ou poder aquisitivo, seria o caso de o judiciário estudar uma “guinada” no interpretar as normas cautelares, cuidando de “segurar” — essa a palavra adequada — o réu já condenado em uma ou duas instâncias, presumindo, não que não vá fugir, mas o contrário, que ele certamente fugirá antes da condenação final. E, a meu ver, para essa modificação não é preciso alteração legislativa, sempre problemática e com possíveis novas “brechas” de redação. No Brasil, mantida a condenação em grau de apelação — duas condenações, portanto —, não há dúvida de que o “fumus boni juris” de culpa já forneceu fumaça suficiente para indicar a quase certa culpa do réu, sendo prudente trancafiá-lo porque a probabilidade de fuga é altíssima quando a pena de prisão também é alta. Somente, por rara exceção — quando há muita política envolvendo o caso — é que os tribunais tolerariam, caso a caso, o réu aguardar, solto, a decisão dos Tribunais Superiores. A assim mesmo, fixando fianças não ridículas, como acontece hoje.
Países mais “desconfiados”, ou “insensíveis”, como os EUA — com todos os seus defeitos na atual política externa — têm suas justiças mais respeitadas porque presumem que o réu, acusado de crimes graves, certamente fugirá para não ser preso. Com alguma freqüência vemos figurões das finanças indo para a cadeia — para ficar! Daí que geralmente seguram o réu condenado em primeira instância, enquanto se processam os recursos. Ou, se for o caso, estabelecem pesadíssima fiança para que responda, solto, o término do processo.
Os inimigos da prisão cautelar costumam citar o brilhante ex-Min. Evandro Lins e Silva, um grande criminalista antes de chegar ao Supremo. Ele afirmava que a prisão avilta, degrada, não regenera, vicia e corrompe. E realmente é isso mesmo. Ocorre que, no atual momento de evolução da civilização não há ainda outro instrumento adequado para desestimular os impulsos criminosos. Dizia Mahatma Gandhi que todo criminoso no fundo é um doente. Acontece que não é um doente que permanece no seu canto, passivo, curtindo sua infelicidade. Ele avança sobre os corpos ou bens, públicos ou particulares, dos demais colegas de espécie, com fins nada nobres. Por isso, precisa ser contido. E mesmo que não seja propenso a novos delitos, se não receber punição pelo crime cometido, outras pessoas, igualmente tentadas a cometer igual infração, sentem-se estimuladas a soltar as próprias rédeas, porque, afinal, também são “filhas de Deus”.
Se a prisão vicia e corrompe o indivíduo, a impunidade vicia e corrompe muito mais, porque corrompe em larga escala. Vicia toda a comunidade, abala seu senso de valores. O mal coletivo, decorrente da sensação geral de impunidade, excede, em muito, o mal individual causado pelo confinamento do réu que foi condenado justamente. Afinal, o que ele queria? Cometer crimes a seu bel prazer e apenas receber um “pito” do juiz? Sairia rindo da audiência. Se o ambiente da prisão é degradante, a solução é melhorá-lo, investindo mais na recuperação dos delinqüentes “pé de chinelo”. Isso porque o delinqüente de grande status só será parcialmente “recuperado” — melhor dizer “forçado ao arrependimento” — através do sofrimento efetivo no cárcere. Um ilustre professor de Ética que matou a esposa ou a namorada, ou um banqueiro que embolsou o dinheiro dos clientes não precisam ser “recuperados”, costurando bolas de futebol ou plantando alface na horta do presídio. Precisam é de um castigo que também servirá como exemplo para o resto do comunidade, dentro e fora da cadeia.
Causa certa aversão e solidariedade, nas classes média e alta, a idéia de um ilustre professor, um ex-governador, um intelectual ou financista, ser recolhido a um presídio infecto, seja em razão de prisão cautelar, seja em decorrência de condenação definitiva. Ele sofre — não há dúvida —, psicologicamente, mais que seus colegas de cárcere, na maioria assaltantes, traficantes, estupradores, etc, já meio habituados a tais “riscos da profissão”. Mas como a lei deve valer para todos, ou pelo menos assim aparentar — exigência da democracia —, é preciso que a comunidade sinta que a justiça realmente “funciona”, realmente cega às diferenças de classe. No caso da prisão cautelar de destacadas figuras, há um remédio para a hipótese (rara) de o réu ser considerado inocente na derradeira decisão, após sofrer injustos vexames com a prisão acauteladora: ele poderá ser detido em quartel, ou em seção especial da cadeia, protegido dos ataques, humilhações e ameaças dos bandidos perigosos, deliciados com a queda do rei: “Vamos infernizar a vida desse rico desgraçado…”. O que interessa à coletividade ordeira, no caso, é que o réu, seja impedido de escapar da pena.
O conceito de “garantir a ordem pública” não significa necessariamente apenas evitar revoluções armadas nem tentativas de linchamento. “Ordem pública” também significa o respeito pela “ordem na casa”, pela justiça como algo sério. Até mesmo algum medo dela, se o medo decorrer justamente de seu rigor e acerto.
A prisão cautelar não visa apenas impedir, por exemplo, que o patrão que matou a secretária — que o rejeitou — saia por aí cometendo o mesmo tipo de crime, matando secretárias. Provavelmente ele não fará isso de novo. Foi um momento passional. Mas, se a comunidade vê o matador — por vezes confesso ou até filmado — andando à-vontade pelas ruas, como se nada tivesse acontecido, esperando um futuríssimo “transito em julgado” — ele pode morrer antes, de enfarte —, não fará uma boa imagem da justiça de seu país. E isso é mau. Rapazes desempregados, curtindo uma vida sem esperança, logo pensarão: “Por que apenas eu, que sou pobre, devo me abster de entrar no lucrativo mundo do crime? Se eu for bem sucedido terei muitas vantagens, inclusive recursos para contratar uma competente equipe de advogados para me defender. Vale a pena arriscar.”
Resumindo: prisão cautelar para garantir que o réu cumpra a pena nada tem a ver com o conceito de “culpado”, segundo nossa Constituição. E não adianta elaborar uma complicada lei para “regulamentar”, de modo exaustivo, quando o réu deve ou não aguardar preso a condenação final. Os juízes devem avaliar caso por caso. Não dá para adivinhar intenções. Mas na dúvida, é recomendável prender — “reter” é palavra menos dura —, se confirmada a condenação em grau de apelação, porque o mundo é grande, passaportes falsos podem ser comprados, e o anseio de liberdade é bem mais poderoso do que a justeza teórica de que todos devem pagar por seus crimes. Isso é bonito para os outros.
Alguns amigos meus, competentes criminalistas, devem estar pensando: “O Pinheiro ‘pirou’: as cadeias já estão superlotadas e ele ainda sugere a prisão cautelar, com medo das fugas, embora altamente prováveis? E como fica nossa situação profissional?”
A eles respondo frisando que este artigo aborda apenas os processos contra os “figurões”, umas poucas dezenas num universo de centenas de milhares de encarcerados. As cadeias não ficarão mais superlotadas com esse acréscimo de “seletos” hóspedes. Além disso, um “endurecimento” da justiça valorizará a atuação profissional dos criminalistas, que até mesmo poderão cobrar mais por seu trabalho pois quanto maior a dificuldade, maior a remuneração. Nos EUA, país de justiça severa, até demais, o advogado criminalista é um profissional altamente especializado. E caro… Imagine-se o que foi cobrado no caso do ex-atleta e ator “colored” americano, que matou, digo, que dizem que matou a esposa e seu namorado . Advogados cultos e especializados em complexas matérias corporativas nem se atrevem a defender um réu acusado de homicídio. Passam o caso para um perito do ramo, um criminalista. Assim, o “endurecimento” aqui cogitado acabaria valorizando a classe dos advogados. Trabalho fácil é sempre barato.
E como fica a questão ética — fujo, aqui, do tema principal — de defender, com máximo de perícia, conseguindo absolvição, um réu poderoso que o advogado sabe ser culpado? Cabe aqui um conselho realista: defendam, com toda a competência, seus clientes de “alto ou baixo gabarito”, usando todos os recursos ensejados pela legislação. Para isso foram contratados e é de seu dever, conforme Código de Ética da profissão. Analogicamente, como ocorre na Medicina, um cirurgião contratado para operar o abdômen de um ditador ou financista inescrupuloso não pode fechar o corte “esquecendo” pinças ou tesouras no intestino do paciente por saber que ele tem mau caráter. A sociedade não pode exigir, do criminalista, que rejeite — com excessivos pruridos éticos —, os grandes clientes, só defendendo réu pobre. Se fizer isso, a própria sociedade — impregnada de materialismo e consumismo — dirá que ele não passa de um “advogadozinho de porta de cadeia”, defensor de “pé-de-chinelo”. A sociedade não perdoa a falta de sucesso financeiro em qualquer profissão.
Se o criminalista conseguir — sem falsas provas, sem intimidar testemunhas, sem inventar calúnias contra vítima — a absolvição de um financista culpado, a “culpa” por essa decisão injusta não é sua: é do sistema repressivo. Falha a ser corrigida por nova legislação ou por uma nova hermenêutica da legislação já existente. Legislação processual e jurisprudência são entidades vivas, sujeitas a evolução. Precisam evoluir, porque o crime também evolui. E nem sempre o réu livra-se solto, não obstante defendido por renomado advogado.
Em casos assim, de réus abonados — e se culpados —, o advogado deve mesmo cobrar altíssimos honorários — uma recomendação que presumo seródia… — porque se o seu cliente eventualmente conseguiu escapar — talvez por deficiência de provas — da condenação criminal, acabou “pagando”, de certa forma, um pesada “multa” indireta, na forma de honorários advocatícios. Punição bem amarga para financistas gananciosos. Um velho ditado diz: “Mexam na minha alma, mas não mexam no meu bolso!” Cobrando pesados honorários do cliente realmente culpado — condenado ou absolvido — o advogado estará, embora inconscientemente, atuando como um “justiceiro”, “punindo” na alma, digo, no bolso, o infrator. Um religioso meio filósofo, ou louco, diria que a “facada” foi desferida com a sábia lâmina de Deus, punindo com linhas tortas.
Se o criminalista— na mas remota ou cômica hipótese —, tiver alguma dor de consciência social por ver — graças a sua competência profissional —, um pilantra na rua, pode sanar esse incômodo moral destinando fração dos vultosos honorários a instituições de caridade, ou ajudar no estudo de jovens pobres. Para abrandar sua consciência levará também em conta o fato de que a prolongada insônia do financista culpado — nunca há certeza quanto ao resultado de um processo — mais a desmoralização pública, mais a “punição” dos altos honorários já foi uma forma, embora esdrúxula, de se fazer justiça sem o tal encarceramento, que a doutrina condena.
Alfred Nobel patenteou e fabricou inúmeros explosivos, que foram usados para o bem e para o mal. Provavelmente, o remorso influiu para a criação do Prêmio Nobel, que tanto vem estimulando a pesquisa científica. Corpos estraçalhados por dinamite gerando pesquisas que nos livram das doenças. O leitor que me lê pode estar vivo em razão desses esforços. O mundo é tão complexo, em seus desdobramentos, que até o mal pode segregar o seu opostos, e vice-versa.
(5-01-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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