Apesar do aumento do rigor da lei sobre crimes de violência familiar e doméstica, casos contra as mulheres alcançaram o maior patamar histórico em 2022, com incremento expressivo em todos os seus índices: desde denúncias de agressões, assédios, feminicídios e estupros, como comprova o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Esses números podem revelar algumas vertentes interpretativas, possivelmente, interdependentes: ou os casos dos anos anteriores eram subnotificados ou não notificados, ou, de fato, o cenário pós-pandêmico trouxe novas conjunturas sociais e tecnológicas (trabalho híbrido ou remoto), que impactaram na violência de gênero, ou as mulheres estão denunciando mais, movida pela salvaguarda da Lei Maria da Penha, ou mesmo o maior rigor legal não tem servido como instrumento inibitório à contento, ou as autoridades competentes tem, por vezes, efetuado tipificações questionáveis de crimes de violência doméstica sem devidas comprovações e testemunhos complementares à palavra da suposta vítima, entre outra hipóteses preliminares inconclusivas.
Há uma relação direta entre o alto número de feminicídios, sobretudo de mulheres negras, e as negativas de medida protetiva em alguns Estados, conforme a pesquisa de Rosely Pires, com dados coletados entre 2015 e 2021 e divulgados em 2022 pelo Fórum de Segurança Pública, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Instituto Maria da Penha (IMP) e pelo Instituto Avon. Essa situação é suficiente para saldar as medidas protetivas e a Lei Maria da Penha, como importantes escudos estatais na maioria dos casos de violência de gênero.
Mas, como saber, se mulheres, mal intencionadas, podem utilizar esse escopo jurídico sofisticado para agredir e caluniar seus parceiros e ficar blindadas por uma lei, que em tese, não prevê esse tipo de uso canhestro e canastrão? E como ter certeza, se em face a essa possibilidade, a lei será bem aplicada pelo juiz, capaz de vencer a lógica de telefone sem fio, se, amiúde, os procedimentos policiais em uma ocorrência não são conduzidos de maneira apurada por policiais bem treinados e remunerados para situações de risco de vida iminente, sendo os mesmos pressionados para atender às metas de secretários de segurança, tipificando crimes de forma automatizada?
Na outra ponta, como asseverar que os casos são sempre bem conduzidos por delegados e delegadas que atuam, por vezes, em um estado de estafa mental contraproducente à elucidação sensível de fatos e tratamento humanista de cidadãos nas Delegacias? O resultado é que “saúde mental” passou a ser assunto da nuvem de palavras dos profissionais de segurança. Nos últimos cinco anos o aumento dos casos de suicídios entre servidores das forças de segurança do Estado do Rio Grande do Sul atingiu cerca de 150%, em função, de questões salariais, plano de carreira, condições de trabalho, perseguições por superiores.
Para completar esse quadro desfavorável à boa prática judicial, o 2° Mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil, de 2021, realizado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), constatou um déficit de 58% de defensores públicos, o que demandaria a contratação imediata de 4,5 mil profissionais para garantir o direito de defesa com qualidade para todos os brasileiros hipossuficientes, na proporção de 1 defensor para cada grupo de 15 mil habitantes. Essa realidade de desvalorização dessa categoria e precarização do seu trabalho compete para criar maior adversidade de atuação por parte da defensoria, que, certamente, tem tido maior ônus psicológico e cognitivo no cotidiano de sua equipe compostas, quase sempre, de combativos profissionais.
Tal conjuntura estruturante, tende a afetar a qualidade do atendimento de orientação e defesa do assistido pelo seu serviço, conferindo ao mesmo, via de regra, um direito à estreita defesa, pois que meramente protocolar e simbólico, favorecendo o sentimento e realidade de injustiça social, em que só os ricos conseguem se safar da prisão com subterfúgios retóricos de escritórios de advocacia invencíveis. O rebaixamento estamental da Defensoria é uma política eugenista de Estado, que visa reproduzir a prática de criminalização e de encarceramento de populações pobres, pretas e periféricas.
O triste cenário da alta incidência de crimes cometidos contra as mulheres no Brasil e arrefecimento pontual dos casos de feminicídio, onde as medidas protetivas cautelares são mais deferidas, não pode, no entanto, instituir uma modalidade impressionista, juridicamente válida, de suposto fato jurídico estatístico de violência doméstica, por mais que esses números sejam reais e alarmantes. Fato esse, que possa servir para punir por tabela, de forma pouco assertiva, com restrição de liberdade parcial ou total, cidadãos de direitos, simplesmente, por terem nascidos no sexo masculino e o coletivo “homens”, já ter uma ficha policial comprometedora, em matéria de crimes de gênero.
A ânsia premente de defesa dos Direitos das Mulheres, com especial ênfase a palavra da suposta vítima, tem que ser concretizada sem nenhuma tendência passional de enquadramento interpretativo e condenatória prévia, com base na predominância do todo sobre as partes e na ilusão de continuidade de uma dada sequência sabidamente regular, mas por meio de uma análise fina da particularidade exclusiva de cada caso, em observância legal ao direito à presunção da inocência, bem como, ao direito constitucional à igualdade e à dignidade humana.
Possíveis ocorrências de desvirtuamentos e inversões de valores e funções, durante o curso da linha do tempo de uma ação jurídica penal, a partir de uma abordagem militar, passando por uma investigação civil, resultando em um processo judicial, que deveria findar clarividente e cristalino, deveriam ser evitadas com excelência técnica, porque tais possíveis desvios são deméritos vergonhosos para todas as instituições estatais envolvidas. No entanto, a despeito de fatos novos, que possam denunciar uma atuação diletante e vilipendiadora cumulativa no curso do processo, maculando formal e material o julgamento de custódia e de mérito, o judiciário, raramente, volta atrás na sua engrenagem de produção de processos e detenções. Essa irreversibilidade é parte de um holocausto invisível que, por meio, da banalização do preconceito étnico, social e espacial, institucionaliza no sistema policial e judiciário, a prática do apartheid de negros homens e pobres das periferias urbanas.
Em desacordo com o princípio pro-réu do direito brasileiro, as revisões dos juízes, das turmas recursais e dos corregedores de justiça podem, em alguns casos, ser protocolares e corporativistas. O desvio de conduta, consonante ao direito à presunção de inocência, naturaliza o fato de ser mais fácil prender um inocente, do que libertá-lo, o que dirá inocentá-lo, mesmo após ter evidências concretas nesse sentido. Pesa sobre a atuação da polícia e o do judiciário no Brasil, assim, a dúvida sombria se não tem ocorrido o aniquilamento ou confinamento de pobres, pretos e periféricos, por vezes, de forma sistêmica, em função dos resquícios camuflados da escravidão no Brasil. Um justiçamento ilícito dentro da burocracia estatal, legitimado pela perspectiva social excludente e concentradora das classes dominantes, que controlam os 3 poderes e o quarto (imprensa).
No âmbito dos direitos de gênero, segue essa mesma regra de limpeza étnica, apesar de que o evidenciamento da causa feminista trouxe à tona a necessidade de pagar uma dívida histórica e atual da sociedade patriarcalista com as mulheres, em geral, em sua maioria, as verdadeiras vítimas de violência física, sexual, psicológica, moral e patrimonial, mas não em 101 por cento das vezes. O que não se pode aceitar é que essa dívida seja paga com mais injustiças e sofrimentos humanos, por meio licenciosidades voluntaristas, por vezes, ilegais, de agentes públicos nas prisões de homens, supostamente, incocentes, que, uma vez, na malha fina do Estado, serão denominados, antes de julgamento, réus.
A sociedade não pode consentir, sob pena de regredir para um cenário pré-iluminista, de que qualquer cidadão, possa ser detido preventivamente ou declarado culpado, baseado em versão sem provas e testemunhas qualificadas, ou outra evidência comprobatória complementar. Em um mundo machista violento, é de se esperar, mas não aceitável, que mulheres também se tornem, defensivamente, violentas e possam desenvolver desvios de caráter, por vezes, podendo inclusive, agredir fisicamente e caluniar moralmente homens, o que, certamente, não costuma ser considerado plausível em uma Delegacia das Mulheres, sobretudo, se composta só por mulheres, onde é flagrante, pela recorrência de casos traumáticos de violências contra mulheres, uma indisposição prévia e cerceamento de depoimento (liberdade de expressão) para com qualquer ser humano masculino, mesmo que seja, supostamente, inocente.
Na matéria da BBC News Brasil intitulada “Além de arranhões e bofetadas: o fenômeno oculto dos homens que são agredidos pelas mulheres” de 26 de julho de 2016, Margarita Rodrigues mostra como o tema da violência doméstica contra homens em uma relação abusiva, mormente, em sociedades com alta taxa de feminicídio, é um tabu que não encontra eco social para ser reportado e denunciado, por receio de ser ridicularizado pelos pares. É preciso dar visibilidade a empírica figura jurídica de homens autuados, em liberdade simples, liberdade provisória e condenados, que podem ser inocentes de crimes de agressão, tendo sido vítima de violência doméstica psicológica ou física, seguido de calúnia de que são os agressores de suas parceiras.
O reconhecimento dessa categoria humana de acusados de lesão corporal ou ofensa verbal com base, exclusivamente, na palavra da vítima, o que não exclui a possibilidade de terem sido ou vierem a ser um potencial agressor, longe de ser uma subversão da Lei da Maria da Penha, resgata, que esse instrumento legal legítimo é, antes de tudo, de defesa dos direitos humanos das mulheres em situações com evidências reais de ultraje, não, de ataque ao gênero masculino.
O fato de que o gérmen holístico do conflito familiar e afetivo, tendo como agressor mulheres, pode ser uma colateralidade das atuações violentas ou microviolentas pretéritas masculinas, é uma variável sociológica que reforça a desconfiança prévia com o gênero masculino. Porém, mesmo que o indivíduo preso em flagrante de crime doméstico, já tenha passagem pela polícia pelo mesmo crime que é acusado no presente momento, não deve, então, ser punido, automaticamente, pelo novo crime, mas sim, pelo já consumado, se ainda não o foi, sob pena de se naturalizar a Lei de Talião (“olho por olho, dente por dente”).
Ao contrário do rigoroso sistema judiciário japonês, em que poucos casos chegam a se traduzirem em sentença, que costumam ser muito severas, no Brasil se sentenciam em série, por retrato falado e pigmentação epidérmica, restando às Igrejas Católicas ou Evangélicas e as ONGs de direitos humanos, atuarem como bastiões espontâneos dos abusos de violência, maus tratos e excessos contingenciais da população carcerária brasileira.
População, que em virtude da progressão de pena, nunca cumpre integralmente a sentença de reclusão, e que retorna à sociedade com mais experiência criminosa do que quando entrou -, exceto aqueles que têm a oportunidade de ser ressocializados por meio do trabalho manual ou penitência cristã na penitenciária. Estigmatizados, mesmo o ex-detento seguirá às sombras de uma oportunidade de conversão social, porque no Brasil existe, sim, prisão perpétua, a do preconceito.
Na luta por Direitos Humanos, apesar da palavra ser no masculino, temos que incluir todos os gêneros, mesmo que tenha sido necessário criar um código específico para lidar com a massiva violência contra as mulheres, que é a regra, para a qual, existem exceções, que se invisibilizadas, poderão se tornar também a regra. O direito de um não pode anular e ser usado para se esquivar do direito do outro, já que todo sofrimento injusto deve ser combatido, independentemente, do sexo.
Considerando que não é incomum o efeito de projeção transferencial de uma mulher vítima de violência de gênero com qualquer figura masculina, mesmo que, bem-intencionada, como psicólogos e assistentes sociais competentes, é preciso conscientizar as mulheres de que os homens com postura pró feministas podem ser possíveis aliados para exterminar a cultura do machismo estrutural no país. Eles é que podem ter maior acesso intimista para incutir nas rodas vitais e virtuais sexistas de cidadãos insensíveis e refratários à causa feminista justa, o espírito do bom combate da violência contra as mulheres.
Em prol de colaborar para esse esforço, além das medidas protetivas e sentenças condenatórias aplicadas com precisão cirúrgica, despolitizadas de qualquer preferência pela “crença no Gênesis” e na “ideologia de gênero”, são as campanhas e formações educativas assertivas e preventivas, por meio da comunicação não-violenta e cultura de paz, que podem permitir educarmos os sujeitos para os direitos humanos e para diversidade sexual, o que não tem sido despertado pela cultura geral pop feminista atual (funk e feminejo), marcada pelo carma da violência, invertendo somente as posições usuais sadomasoquistas de dominante-masculina e dominada-feminina.
Será mito o de que uma prisão será decretada caso haja o comparecimento de uma mulher na delegacia, alegando ter sido agredida física ou moralmente pelo marido, companheiro, namorado ou “ficante”? “Melhor não pagar para ver e fazer as malas na primeira fagulha e só se encontrar com desafetos amorosos na presença de testemunhas”, recomendam tarimbados advogados. Da antítese de algo tão nocivo como machismo, por mais, que tenha permitido conquistas imprescindíveis para a proteção feminina, não será encontrado estratégias para solução de abusos de poder no âmbito da Lei Maria da Penha, sendo necessário uma reforma da cultura organizacional do Estado, a partir de perspectiva humanista sustentável e universal.
Sem modificar a estrutura polarizada entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, que foram envolvidos pela tendência neoconservadora do ativismo judiciário pouco garantista, a moderna Lei Maria da Penha torna-se um cabo de guerra ideal para essas instituições apagar o fogo da discórdia entre os cidadãos com gasolina, camuflando na pirotecnia discursiva normativa, os abusos e negligências, porventura, cometidas por tantas autoridades estatais sobrecarregadas e confusas envolvidas em uma ação penal.
Por F. Assis Brasil: Professor de políticas públicas UFSJ; Doutor em Ciências Econômicas e Jurídicas UFRJ