Caio Felype Trindade Cruz[1]
RESUMO
Trata-se de estudo acerca da problemática no sistema penal em torno da criminalização de condutas em decorrência de apelo social gerado pelo temor criado na transmissão midiática de determinados delitos de grande repercussão, mesmo que pouco ofensivas as condutas ao bem jurídico tutelado. No artigo serão citadas as opiniões de grandes autores como Vera Regina e Alessandro Barata sobre os temas correlatos. Além disso, tentaremos identificar a influência da mídia sobre o Poder Legislativo brasileiro, destacando os benefícios e malefícios da globalização neste panorama. Tudo isso será feito considerando jurisprudência e doutrina pátria sobre o minimalismo penal.
Palavras-chave: Cultura do medo; Minimalismo penal; Criminalização.
INTRODUÇÃO
Uma das principais marcas da sociedade atual é o medo propagado pela violência que é “vendido” à população principalmente pelos veículos midiáticos, os quais fazem questão de repetir diversas vezes as mesmas repudiantes e odiosas condutas. E isto acaba por criar um temor na população, que passa, por consequência, a protestar por soluções estatais para esta situação.
E este clamor, nem sempre bem justificado, impõe ao Poder Legislativo que crie leis criminalizando ou endurecendo penas para aquelas condutas transmitidas na televisão, no rádio, na internet etc.. Deste modo, acaba ganhando força no Legislativo a noção de “precaução”, da qual se extrai que a criminalização de comportamentos impede que eles se repitam, sem, contudo, identificar as suas causas.
Trata-se assim de uma paz meramente simbólica, uma vez que normas que tipificam condutas pouco ofensivas (quando ofensivas) aos bens jurídicos que tutelam não terão aplicação no Judiciário, o qual se guia, ao contrário da precaução, pelo princípio da intervenção mínima, no âmbito penal (GRECO, 2009, p. 62-63). Neste passo, as novas leis servem tão somente para congestionar ainda mais o Judiciário brasileiro, já tão carente de estrutura.
Vale dizer já de início, este princípio da intervenção mínima é vetor de todo o Direito Penal, enunciado que deve este ramo jurídico preocupar-se apenas com os bens mais importantes, ou seja, com aqueles que realmente produzem um drástico efeito na sociedade (GRECO, 2009, p. 62-63), tal qual nos casos de estupro, latrocínio etc..
Numa análise meramente visual do contexto social em que vivemos, é fácil perceber o alto índice de violência e desigualdade entre as classes. O sistema vigente motivado pelo lucro, e marcado, como já dito, pela cultura do medo, é que faz com que os indivíduos ofendam os direitos alheios, o que será demonstrado em momento oportuno.
Neste sentido, propomo-nos neste estudo a confrontar a criminalização de condutas com intuito apenas de dar satisfação à sociedade que clama pela não ocorrência de comportamentos expostos nos meios de comunicação face ao princípio da intervenção mínima, tocante à aplicação destas mesmas leis.
1 REPRODUÇÃO DO MEDO, CRIAÇÃO DE CRIMES E APLICAÇÃO DA LEI PENAL
É fácil observar diariamente, através dos veículos de comunicações, os elevados índices de ocorrências que provocam indignação na sociedade, ou seja, os crimes. Essa reprodução repetida faz com que os indivíduos se sintam ameaçados, razão pela qual exigem respostas, as quais podem ser dadas, ao menos no papel, através da atuação legislativa, tipificando condutas antes não criminalizadas e endurecendo a pena de outras já previstas como delitos.
Num apriorístico ver, essas leis criadas para responder ao clamor social podem parecer eficazes – é o caso da lei seca, que veio para punir com efetividade as pessoas que dirigissem sob efeitos de álcool –, porém, aos poucos vão se mostrando inviáveis tendo em vista a existência de vetores penais que guiam a aplicação da norma em matéria criminal pelos seus intérpretes – no caso da lei seca, o limite é a vedação à obrigação de produção de provas pelo imputado contra si mesmo (GOMES, 2013).
Vera Regina (2008, p. 233) fala numa “deslegitimação” do sistema penal que retrata o sistema penal como se estivesse “nu” perante a sociedade, já que não mais consegue cumprir com suas funções declaradas. Completa a autora que essa deslegitimação acaba por dar ensejo a uma “relegitimação” que se apropria de outras práticas discursivas da sociedade tecnológica por meio de espetáculos midiáticos e dramatúrgicos, sendo a partir daí criada uma espécie de medo do inimigo, que seria a criminalidade, construído em escala massiva.
Neste sentido, observa-se uma influência negativa da mídia sobre o novo sistema que está se instaurando em nossa sociedade, já que se mostra, neste aspecto, demasiadamente manipuladora da opinião pública graças também hoje em dia à facilidade da retransmissão que marca o mundo globalizado, pela qual segundos constituem tempo suficiente para que os fatos sejam conhecidos por todo um país.
Andrade (2008, p. 232) ensina sobre uma tal “eficácia invertida” do sistema penal, dizendo haver uma contraposição entre as suas funções declaradas (“ou promessas que não cumpre”) e as suas funções reais (“que cumpre sem declarar). Estas últimas, segundo o autor e na forma como mencionados, são cumpridas “em silêncio, embora hoje desnudadas”.
Em outras palavras, é declarado pelo sistema que a função da norma penal é proteger a sociedade e reabilitar as pessoas que cometeram atos infracionais, mas o que acaba ocorrendo é a existência de brechas (e até impulsos) para o cometimento de crimes, que, a depender da classe social do criminoso, gerará penas diversas para situações idênticas ou, no mínimo, assemelhadas.
Com efeito, cabe mencionar situação ocorrida em 1999, no Distrito Federal, que embora não relacionada à criação ou aplicação de lei penal, tem relação com o combate ao crime motivado pela cultura do medo. Neste ano, a sede da capital brasileira vinha sofrendo uma onda de crimes de sangue que aterrorizavam toda a população. Desesperado, o governador local, após uma visita de dois altos funcionários da polícia de Nova York, que já aplicou a “tolerância zero”, resolveu aderir também a este tipo de política de segurança, contratando 800 policiais civis e militares para varrer os delitos que vinham inserindo pânico na sociedade (WACQUANT, 1999, p. 20).
E essa política é vendida para o mundo inteiro, dando causa ao efeito chamado de globalização da política de “tolerância zero”, por ser este meio prático e rápido na busca por uma resposta à sociedade. Entretanto, com isto, o que realmente ocorrera foi um súbito aumento da população encarcerada, fragilizando ainda mais o sistema carcerário nacional que já não aguenta nem os presos já comportados (WACQUANT, 1999, p. 20).
No mesmo contexto, tem-se também o movimento de “lei e ordem” que preconiza o maior número de leis incriminadoras como tentativa de se reduzir a criminalidade, esvaindo ainda mais as forças do sistema penal (ANDRADE, 2008, p. 481-482). Deste modo, os objetivos deste movimento coincidem com as consequências da cultura do medo no que se refere ao legislador penal.
E é bom que se diga, no mais das vezes, estas políticas, como a de “lei e ordem” e a da “tolerância zero”, não são adotadas no intento de atingir toda a população, mas somente aquela parte já marginalizada por razões sociais, isto é, para os alheios à elite social, tornando verdade o pensamento de Vera Andrade (2003, p. 50), segundo o qual “a prisão é para os três pês: o preto, o pobre e a prostituta”.
Em complementação, vale trazer os ensinamentos de Allan Ferreira (2011, p. 5):
A hipótese central da dissertação sustenta que as políticas criminais estão sendo inspiradas pelos discursos propagadores das ideologias da Tolerância Zero e da Lei e Ordem, em especial, entre os anos de 2003 a 2010. Assim, identificamos discursos políticos, jurídicos, midiáticos, acadêmicos, dentre outros, que influenciam e legitimam a execução de tais políticas de segurança e repressão máxima.
Por tudo isso, fica cada vez mais claro como a mídia tende a propagar o medo na sociedade, ocasionando o surgimento de uma espécie de “princípio da precaução”, que enuncia a velha máxima de que “é melhor prevenir do que remediar”, sem, contudo, prevenir do modo certo, pelo menos em nosso ver. Os comportamentos indesejados são criminalizados na esperança de que não mais ocorram pelo medo à lei penal, sem que seja investigado o que lhes geram. E o só temor à lei penal e às suas sanções não parece suficiente para o impedimento de crimes, até porque é máxima no Direito Penal a ideia de que a aplicação das normas deste ramo somente deve se dar quando nenhum outro ramo for mais capaz de solucionar aquela problemática, o que somente ocorre quando do cometimento de condutas efetivamente graves, as quais já são tipificadas independentemente de clamor social.
É necessário mencionar a razão pela qual se permite que as pessoas sejam controladas pela mídia, no que se refere ao permissivo para a criminalização irrestrita de condutas em consagração a esse, por nós mencionado, suposto princípio da precaução. Segundo Loïc Wacquant (1999, p.13) seria o “boom da economia do sistema carcerário”, pois com a super lotação dos presídios seria necessário a criação de firmas de carceragem, de saúde penitenciária, de construção, de tecnologias de identificação e de vigilância, escritórios de arquitetura, de seguros e de corretagem etc..
2 O CONTRASSENSO ENTRE O DIREITO PENAL DO MEDO E O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
Como visto no tópico anterior, a política do medo, transmitida e retransmitida demasiadamente pelos veículos midiáticos, gera um maior número de condutas criminalizadas, o que gera uma espécie de “falso conforto” na sociedade, consubstanciado na errônea ideia de que a só proibição legal é suficiente para diminuir a criminalidade, quando, em verdade, este fenômeno apenas aumenta, em quantidade, o número de crimes praticados, e, especialmente a reincidência[2].
Daí se falar num “Direito Penal do medo”, onde condutas minimamente ofensivas são previstas como criminosas apenas para diminuir o temor da população, a despeito de carentes esses tipos penais de qualquer eficácia social. E esse tipo de pensamento gera um senso comum, já impregnado há décadas na sociedade, de que a melhor forma de se tratar as pessoas é como criminosas ou não criminosas (as ditas “honestas”). Esse senso comum, conforme ensina Vera Regina (2003, p. 38) em tom crítico, ainda “ajuda” as pessoas “boas” a identificar as pessoas “más” a partir do contexto social de cada um.
E não é demais repetir que essa cultura do medo que influencia diretamente na produção da norma penal tem como fim último a obtenção do lucro, na medida em que as cadeias geram rendas, na forma já dita em momento oportuno, além de o medo obviamente movimentar o mercado dos equipamentos de segurança.
Observa-se, neste cenário, haver uma prévia cautela do legislador penal sobre condutas minimamente indesejadas por parte da população de modo geral (eis o tal “princípio da preocupação” que parece guiar a atuação legislativa em matéria criminal). Basta um mínimo repúdio, ou uma mínima repercussão negativa, a um certo tipo de comportamento para que o Congresso Nacional se movimente no sentido de criar uma pena, ou agravá-la, para aqueles que o cometem.
Como exemplo recente, é de se citar a midiaticamente batizada “Lei Carolina Dieckmann” (trata-se da Lei 12.737, de 30 de novembro de 2012, sem nome oficial, e que, dentre outras providências, tornou crime a “invasão de dispositivo informático”). O aludido diploma, acrescentando o Art. 154-A ao Código Penal, tornou crime a seguinte conduta:
Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Sem analisar o mérito da lei, se boa ou ruim, causa certa curiosidade o fato de ter sido promulgada poucos meses após uma artista da Rede Globo, a atriz Carolina Dieckmann, ter tido o seu computador pessoal invadido e fotos íntimas suas divulgadas na rede mundial de computadores, a internet. O fato foi amplamente divulgado em todos os meios de comunicação, inclusive a sua investigação[3].
Ora, é evidente não se tratar de mera coincidência. Tal conduta somente virou crime graças a repercussão do fato acima mencionado, que somente foi tão intensamente reproduzido por ser a vítima uma pessoa pública, funcionária da principal rede de comunicação deste país. E a repercussão gerou medo nas “pessoas comuns” (no sentido de “não públicas”), que passaram a acreditar que se famosos podem ter seus computadores invadidos e informações pessoais furtadas, também eles poderiam.
Sobre o assunto, são sábias as palavras de Vera Andrade (2008, p. 231):
Trata-se do movimento reformista em curso que, sob signo despersonalizador do principio de intervenção mínima, do uso da prisão como último ratio e da busca de penas alternativas a ela (com base nos binômios criminalidade grave/pena de prisão x criminalidade leve/penas alternativas), desenvolvesse desde a década de 80 XX e, no Brasil, a partir da reforma penal penitenciaria de 1984.
Este tal Direito Penal do medo encontra, além dos problemas sociais já mencionados, um problema de ordem estritamente jurídica, tocante à aplicação da lei penal, isto é, à aplicação das leis que tipificam condutas de forma irrestrita sob a justificativa da precaução para acalentar o medo da população. Tem a ver com aquele que é um dos postulados mais importantes do Direito Penal contemporâneo: o princípio da intervenção mínima.
Enuncia o referido postulado que o Direito Penal somente deve se ocupar com condutas realmente graves aos bens jurídicos tutelados, somente tipificando comportamentos para os quais outros ramos jurídicos não apresentam solução e somente aplicando as normas já criadas quando verificada uma efetiva ofensa ao direito da vítima a ponto de justificar a reprimenda ao infrator (GRECO, 2009, p. 62-63).
Como faceta deste princípio da intervenção mínima, Alessandro Baratta (2010, p. 9) leciona sobre um certo princípio da proporcionalidade abstrata, segundo qual “somente graves violações aos direitos humanos podem ser objeto de sanções penais” e “as penas devem ser proporcionais ao dano causado pela violação”. Como se vê, o autor apenas especifica o enunciado geral do princípio da intervenção mínima sob as vestes da proporcionalidade, confirmando ainda mais a chamada doutrina do minimalismo penal, que guia o Direito Penal contemporâneo.
Deste modo, observa-se um verdadeiro contrassenso entre a atuação legislativa e a atuação judiciária no tocante à matéria criminal. Enquanto o Legislativo, em nome de uma suposta precaução, tipifica quaisquer condutas que causem um mínimo de medo na sociedade; o Judiciário, tendo em vista o princípio da intervenção mínima, somente pode punir condutas efetivamente graves aos bens jurídicos que deve proteger. Deste modo, por muitas vezes é necessário que o magistrado se afaste da lei para dar a solução mais adequada ao caso concreto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mídia possui inegável e imensurável importância na formação de opiniões, e, justamente por isso, a notícia dos fatos deve se dar sempre sob temperamentos, evitando a criação de traumas fantasiosos na sociedade, especialmente no que se refere ao medo causado pela criminalidade. Do contrário, a reprodução sem cuidados pode causar graves problemas ao seu público, que se vê coagido diante do medo de se tornar mais uma vítima de fatos, embora isolados, divulgados de forma massificada.
Não parece ser a lei penal instrumento de resposta ao medo social criado pelas reproduções midiáticas de crimes de grande repercussão. Na verdade, conforme foi discorrido no decorrer deste trabalho, deve ela ser utilizada somente em último caso, para hipóteses nas quais se torna efetivamente necessária por inexistir outra solução jurídica. E é neste sentido que deve se posicionar o intérprete da lei. Mesmo que ela preveja punições para as condutas mais irrelevantes, não deve ele esquecer do princípio da intervenção mínima, aplicando reprimendas somente se inevitáveis, cabendo-lhe inclusive se afastar dos enunciados normativos, se assim exigir o caso.
REFERÊNCIA
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
______, Vera Regina Pereira de. Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão, 2008. Disponível em: <http://www.mp.to.gov.br/cint/cesaf/arqs/040908090302.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2013.
BARATTA, Alessandro Princípios do direito penal mínimo para uma teoria dos direitos humanos como objeto e limite da lei penal, 2003. Disponível em: <http://danielafeli.dominiotemporario.com/doc/ALESSANDRO%20BARATTA%20Principios%20de%20direito%20penal%20minimo.pdf>. Acesso em: 8 out. 2013.
FERREIRA , Allan Hahnemann. Os ditos e os interditos da tolerância zero: atualidades legislativas das fantasias de controle Social penal total – estado de Goiás 2003 – 2010, 2011. Disponível em: <http://www.uff.br/ppgsd/dissertacoes/Tese%20de%20Allan%20Hahnemann%20Ferreira.PDF>. Acesso em: 7 out. 2013.
GOMES, Luiz Flávio. A nova Lei Seca deve ser interpretada literalmente. Conjur, 2013. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-fev-01/luiz-flavio-gomes-lei-seca-nao-sendo-interpretada-literalmente> Acesso em 10. out. 2013.
GRECO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 4a ed. Niterói: Impetus, 2009.
PRUDENTE, Neemias Moretti. Sistema Prisional Brasileiro: Desafios e Soluções, 2013. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/neemiasprudente/2013/03/06/sistema-prisional-brasileiro-desafios-e-solucoes/>. Acesso em: 7 out. 2013.
WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[1] Acadêmico do 10º período do curso de Direito da Universidade Estadual do Maranhão.
[2] O índice de reincidência no Brasil é de 70% e, além disso, temos um elevado aumento na população carcerária brasileira. Contudo o indicie de reincidência criminal cai para 40% para aqueles que trabalham e estudam durante o processo de sua pena, porém cerca de 76% estão ociosos na penitenciaria (PRUDENTE, Neemias 2013, p.1).
[3] Dentre outros meios, o caso está disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/05/suspeitos-do-roubo-das-fotos-de-carolina-dieckmann-sao-descobertos.html> Acesso em 10. out. 2013.