Adendo da Tragédia de Ricardo II
Ricardo II era o monarca retratado na peça teatral, mas não era um rei competente. Apesar de ser rei por direito, suas qualidades particulares, naquele momento histórico, não justificavam seu cargo de rei. Sua posição era exclusivamente por motivos hereditários e, o respeito das regras de sucessão.
Numa explicação teórica que passava pela invocação do direito divino. Questionava-se se o rei mesmo quando fosse ruim para o Estado, deveria ser protegido e mantido no trono? Ou seria melhor respeitar a hereditariedade, ou proteger o Estado, admitindo que uma pessoa mais capacitada para ser governante. Afinal, o que vale mais: a incompetência legítima ou a competência ilegítima.
Um mal governo ainda que eleito democraticamente pode mesmo deixar ser governante? Ou devemos suportá-lo até o fim de seu mandato?
Em verdade, o desfecho da história indica que Ricardo II se vê forçado a entregar a coroa a Bolingbroke e, se torna Henrique IV. A renúncia de Ricardo II é repleta de ambiguidades. Mas, Bolingbroke quer garantir a legitimidade da renúncia. Desta forma, fortalece seu poder e, ainda, afasta a pecha de usurpador. O processo culmina com a traditio da coroa, a entrega física do símbolo real.
A temática principal de toda peça é delicada, afinal, a deposição de um rei, o impeachment de um Presidente da República e, a transformação do governante em pessoa comum redunda em procedimento traumático. Ricardo II é, então, levado para o Castelo Pomfret ou Pontefract, para fora de Londres, onde depois é assassinado por pessoa ligada a Bolingbroke que se torna, Henrique IV.
Quando, enfim, toma ciência da morte do primo, lamenta, dizendo ao assassino, literalmente: “Quem necessita de veneno não gosta por isso de veneno, nem eu de ti, pela mesma razão”. Sentindo-se culpado, Henrique IV promete realizar peregrinação à Terra Santa, para se purificar. E, assim termina a peça. Porém, essa promessa jamais é cumprida. O máximo que ocorre é que o Rei Henrique IV morre numa sala chamada de Jerusalém.
A respeito da legitimidade do governo e o direito à rebelião nos socorro John Locke (162-1704) que foi um filósofo inglês, principal representante do empirismo que afirmava que o conhecimento seria essencialmente determinado pela experiência, tanto de origem externa, como as sensações, quanto na ordem interna, ou seja, a partir das reflexões.
Foi, igualmente, um dos principais defensores da teoria contratualista. Teve especial contribuição para o desenvolvimento do liberalismo e, na construção da noção de Estado de Direito. Abordou o direito à rebelião nos derradeiros capítulos de sua obra chamada Segundo Tratado do Governo Civil. O direito à resistência deriva do problema da constituição dos governos e da forma como as sociedades políticas se fundam.
Invariavelmente no consentimento do povo e, quando algum governante pretende modificar tal princípio, o faz de forma ilegítima. Portanto, o governo civil legítimo é pautado pelo consentimento explícito dos governados, que através de acordo, decidem para ele transferir o poder-dever de executar a lei e de julgar a pessoa (estes são os poderes dados ao governo central e que legitimam a função do sistema de justiça).
Recorde-se que para ingressar no estado civil, as pessoas renunciam ao direito essencial que é o de fazer justiça por suas próprias mãos. E, assim, conservam todos os outros direitos, principalmente o direito à propriedade, que já nasceria perfeito dentro do estado de natureza, fruto de ação natural, chamada trabalho e, que não dependeria, obrigatoriamente, do reconhecimento alheio.
Enfim, a preservação da vida, da liberdade e da propriedade traça o fim principal que leva os homens se unirem em comunidades políticas e a confiarem num governo.
Se o governo pretende perverter a vontade da comunidade, quem detivesse o poder, perderia, ipso facto, o direito de governar. E, a manutenção do governo, seria, ilegítima.
É nesse ponto que Locke vai desenvolver o direito à rebelião, de resistir quando se está diante do abuso do poder dos governantes e, até mesmo de destituí-los, se for o caso.
Na ótica de Locke, a possibilidade de revolução constitui uma das características de qualquer sociedade civil bem formada. Confirma sua reprovação ao poder absoluto e, se mostra um campo fértil do abuso, semente do governo ilegítimo. Se o fim do governo é o bem da humanidade, não pode haver tolerância à tirania.