Examinaremos neste artigo a questão relacionada com a aplicação do direito intertemporal relativamente aos delitos relacionados com tributos, cuja legislação vem sofrendo alterações com relativa freqüência.
O crime de sonegação fiscal definido na Lei nº 4.729/65 deu lugar aos chamados crimes contra a ordem tributária definidos na Lei nº 8.137/90.
O art. 14 da Lei nº 8.137/90, em sua redação original, versava sobre extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, a exemplo do que prescrevia o art. 2º da Lei nº 4.729/65.
À luz desse dispositivo formou-se a jurisprudência no STF segundo a qual somente o pagamento da última parcela do crédito tributário fracionado tem o condão de extinguir a punibilidade, podendo em conseqüência, quando for o caso, ser recebida a denúncia: RTJ 163/885.
Esse art. 14 veio a ser revogado pelo art. 98 da Lei nº 8383/91. Porém, por força do princípio da ultratividade das normas penais, aquela disposição do art. 14 continuou sendo aplicada em relação aos fatos ocorridos durante a sua vigência. Aliás, é nosso entendimento de que o pagamento antes da denúncia exclui a responsabilidade nos termos do art. 138 do CTN. E mais, nos crimes contra a ordem tributária o bem jurídico tutelado é o Erário. Não se trata de retirar de circulação elemento que represente ameaça à sociedade.
Posteriormente, o art. 34 da Lei nº 9.249/95 reintroduziu a extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária pelo pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia. Em face do princípio da retroatividade da lei benigna (art. 5º, XL da CF) o preceito do art. 34 tem aplicação a todos os casos, inclusive, àqueles já definitivamente julgados. Consulte-se a respeito o disposto no artigo 2º do Código Penal e no artigo 66 da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal).
Na vigência do art. 14 da Lei nº 8.137/90 e do art. 34 da Lei nº 9.249/95 firmou-se a Jurisprudência no sentido de que somente com a extinção total do crédito tributário é possível reconhecer a extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, não bastando a existência de mero parcelamento em curso: RTJ 171/505 e RTJ 177/1321.
Na vigência dos diplomas legais retro referidos nenhum efeito provocava na esfera penal o acolhimento do pedido de parcelamento do crédito tributário. Não cogitava a jurisprudência de suspensão da pretensão punitiva do Estado na pendência de parcelamento. Os dispositivos legais pertinentes (arts. 14 da Lei nº 8.137/90 e 34 da Lei nº 9.245/95) eram aplicados literalmente, sem qualquer flexibilização. Entretanto, não se permitia a instauração de ação penal na pendência de processo administrativo tributário originário de impugnação do lançamento tributário, por força do art. 83 da Lei n? 9.430/96, que proíbe a representação penal enquanto não encerrado definitivamente o processo administrativo tributário. Essa norma, impugnada pelo MPF, foi considerada constitucional pelo Plenário do STF (Adin nº 1571-1-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 19-12-2003).
A suspensão da pretensão punitiva do Estado só veio a ser prevista no art. 15 da Lei nº 9.964/00, que instituiu o Refis. Incluídos os créditos tributários no regime de parcelamento antes do recebimento da denúncia opera-se a suspensão da pretensão punitiva concomitantemente com a suspensão da prescrição criminal (§ 1º do art. 15). A extinção de punibilidade, todavia, só ocorrerá com o pagamento integral dos tributos sob o regime de parcelamento (§ 3º do art. 15). Com a quitação total do crédito tributário a suspensão da pretensão punitiva convola-se em extinção da punibilidade. Nesse sentido a jurisprudência do STF: RHC nº 89.618-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio.
Atualmente, vigora o art. 9º da Lei nº 1.684, de 30-05-2003, vasado nos seguintes termos:
“Art. 9º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 1º. A prescrição criminal não corre durante o período da suspensão da pretensão punitiva.
§ 2º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”.
O caput do art. 9º suspende a pretensão punitiva do Estado com a adesão do contribuinte inadimplente ao regime de pagamento parcelado (Refis I, Refis II, Paex etc.). Não mais existe a restrição do diploma legal anterior que condicionava a adesão ao programa de parcelamento antes do recebimento da denúncia. O § 1º, de forma lógica e harmônica, suspende igualmente a prescrição criminal porque a extinção da punibilidade dar-se-á apenas com o pagamento total da dívida tributária. Nesse sentido, a jurisprudência do STF: HC nº 90.591/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RHC nº 89.152/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski.
Se o contribuinte for excluído do regime de pagamento parcelado, a pretensão punitiva do Estado fica ipso fato reativada, podendo prosseguir o inquérito policial, bem como ocorrer o recebimento da denúncia e a instauração da ação penal. Entretanto, se do ato de exclusão tiver sido interposto recurso administrativo, por força do princípio constitucional do contraditório e ampla defesa, enquanto em tramitação o respectivo processo administrativo tributário, a pretensão punitiva do Estado continuará suspensa.
Por derradeiro, cumpre analisar o disposto no § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03, que tem uma abrangência maior que a norma do caput que tem natureza temporária. A extinção da punibilidade proclamada pelo § 2º não está vinculada ao pagamento integral de débitos tributários incluídos no Refis II. O texto refere-se, com lapidar clareza, ao pagamento de “débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios”. Não mais existe a relação entre a adesão ao programa de parcelamento e a extinção da punibilidade, como estava no § 3º do art. 15 da Lei nº 9.964/00, que instituiu o Refis I.
Agora, o pagamento integral do débito tributário, a qualquer tempo, incluído ou não no programa de parcelamento, extingue a pretensão punitiva do Estado. O legislador partiu para a despenalização completa na hipótese de pagamento integral do débito tributário, com o que se tem por satisfeito o interesse público tutelado. Seria uma iniqüidade não reconhecer a extinção da punibilidade ao contribuinte devedor que paga, de uma só vez, a totalidade do débito tributário e, ao mesmo tempo, reconhecer essa extinção da pretensão punitiva do Estado em relação ao contribuinte devedor que paga a última prestação decorridos mais de dez anos. Nesse sentido evoluiu a Jurisprudência da Corte Suprema: HC nº 81.929-RJ, Rel. Min. Cezar Peluso; HC nº 83.414-RS, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
Por oportuno, esclareça-se que a norma do § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03 – extinção da punibilidade pelo pagamento a qualquer tempo – tem aplicação aos casos presentes, futuros e passados. Quem estiver cumprindo pena decorrente de condenação por crime contra ordem tributária poderá obter alvará de soltura mediante pagamento integral do tributo devido acrescido de acessórios.
* Kiyoshi Harada, Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo