Direito Tributário

Cidadão, Objeto Fiscal

Cidadão, Objeto Fiscal

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

Diogo Leite de Campos, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em seu estudo “A jurisdicização dos impostos: garantias de terceira geração”, inserido no livro “O tributo – Reflexão multidisciplinar sobre sua natureza” (coordenação minha, Editora Forense, edição de 2007), escreve: “A degradação da pessoa dos cidadãos vai mais longe: estes são vistos como meros objetos da atividade administrativa“. E continua: “O contribuinte deve estar invisível, enquanto a Administração lhe mede os bens e os rendimentos ….” até ao mais pequeno torrão”, parafraseando Lactâncio: “deve mover-se se esta lho exigir; pagar quanto a tal for obrigado. É objeto, não sujeito“.

 

O estudo jurídico do eminente catedrático coimbrão de renome internacional conclui que só há justiça quando o direito se faz entre iguais, isto é, quando “o Estado é participado, definido e controlado diretamente pelos cidadãos”.

 

À evidência, nada há de mais distante da justiça tributária do que a política de arrecadação e coação adotada pela República Brasileira, “democrática” mais no nome, do que na realidade dos atos praticados pelos detentores do poder.

 

De início, impõem, sem consultar o povo, a  mais alta carga tributária dos países emergentes, e das mais altas do mundo civilizado, ofertando em troca apenas um plano assistencialista, que muitas vezes incentiva o ócio (bolsa-família) e migalhas de serviços públicos, normalmente de péssima qualidade, como se verifica em boa parte dos setores da saúde e educação.

 

Em compensação, os tributos pagos pelo “cidadão-objeto” abarrotam os bolsos dos detentores do poder, seja em subsídios diretos, seja nas fantásticas benesses dos benefícios indiretos, que levam  parlamentares e membros de outros poderes a gozar de ajudas de custo, verbas de gabinete, carros, empregados, tudo pago pelo Tesouro, sem necessidade de recolher sobre estas verbas imposto de renda, como qualquer “cidadão-objeto” do segmento não-governamental.

 

Por outro lado, tudo se justifica pela necessidade de apoio dos partidos “políticos”, meros conglomerados de interesses, que mudam de nome, tanto quanto seus senadores, deputados e vereadores eleitos mudam de legendas, como, no século XVIII, os condutores das diligências mudavam de cavalos, em cada entreposto. Quando o governo multiplica Ministérios, Secretarias, cargos de confiança – como as células cancerosas multiplicam-se, nos organismos humanos não tratados-, por mais que se arrecade, a receita é sempre insuficiente para o tamanho de uma máquina esclerosada que não pára de crescer.

 

Ministérios, Secretarias são disputados não em função da especialidade dos que deveriam servir ao povo, mas em função das verbas que o Presidente lhes destina, para que o seu detentor -aliado de ocasião e conveniência- possa manipulá-las. Estas verbas são resultantes dos tributos pagos pelo “cidadão-objeto”, que nada controla diretamente e vê grande parte delas ser veiculada por medidas provisórias.

 

Nem mesmo o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal é respeitado. Leia-se: “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (grifos meus).

 

Para que, entretanto, o “cidadão-objeto” não se defenda, apesar de a ampla defesa administrativa e judicial ser garantida pela “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, concebem-se, sem qualquer pudor, os mais arbitrários projetos. E o “cidadão-objeto” vê seus direitos decrescerem, numa degradação -na feliz expressão de Diogo Leite de Campos- como nem nos tempos do regime militar se viu. Projetos como execução fiscal sem participação do Judiciário; de redução de direitos de defesa, nos Conselhos de Contribuintes, perante o qual o advogado do “cidadão-objeto” não pode participar das sessões secretas, mas o advogado dos detentores do poder tem presença garantida; vinculação das decisões dos conselheiros ao teor das Instruções Normativas emanadas da administração superior, que proíbe a apreciação de matéria constitucional; desobediência dos agentes da Secretaria da Receita Federal, que autuam profissionais liberais e outros trabalhadores, que se organizam em sociedades fundamentados na garantia constitucional de livre associação, reiterada no art. 129 da Lei 11.196/05 (que converteu a Medida Provisória do Bem), além de muitas outras ações deste jaez – demonstram que, na República Fiscal Brasileira, caminhando para a plena ditadura do Fisco, o cidadão é mesmo, e cada dia mais, um mero objeto, um “patrimônio personificado”, que deve ser confiscado em prol de se manter o alto nível de subsídios e mordomias dos detentores do poder.

 

Não sem razão, o Brasil cresce pouco. Continua, apesar de toda a sua potencialidade, recebendo poucos investimentos estrangeiros, se comparados com outros emergentes de nosso nível, e corre o risco, ao menor sintoma de reversão do “boom econômico” mundial, de mergulhar numa crise sem precedentes, em que as empresas desaparecerão sufocadas pelo peso da Administração esclerosada, cujos feitores estão ai para pisotear o “cidadão-objeto”.

 

Pergunto-me: com os novos anteprojetos redutores dos direitos do contribuinte e que instituem arrecadação arbitrária para aumento do nível impositivo, para onde vamos? Transformar-nos-emos em “escravos-objeto”?

 

 

 

* Professor Emérito das Universidade Mackenzie e UNIFMU e da Escola de Comando e Estado maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: http://www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Cidadão, Objeto Fiscal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/cidadao-objeto-fiscal/ Acesso em: 22 dez. 2024