Direito Internacional

A entrevista do teólogo iraniano

A entrevista do teólogo iraniano

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

O jornal “Estado de S. Paulo”, de 19-4-06, na pág. A13, publica entrevista do “aiatoleslam” — segundo na hierarquia islâmica — Mohamad Mehdj Godjian. Com base nas suas palavras está comprovado — sem necessidade de novas provas —, o perigo, para a humanidade, de se permitir uma fusão total da religião com o Estado. Godjian, percebe-se facilmente, é um teólogo sincero, profundamente conhecedor do islamismo, em condições, portanto, de representar o ideário dessa religião.

 

Costumo dizer que a “energia” contida nas concepções religiosas não é muito diferente da nuclear, embora em planos totalmente distintos. A religião é, no fundo, até mais poderosa, porque teólogos podem gerar guerras nucleares, enquanto estas não geram teólogos, apenas os queimam, juntamente com quem está por perto, seja qual for a sua crença, ou ausência dela.

 

Godjjian afirma que a religião é motivo de desenvolvimento. Como imensa, respeitável e intocável força psicológica, pode até servir para o desenvolvimento de um país, em raras circunstâncias. Mas nem por isso deve ser encarada como um remédio de alma isento de perigo, pois se, de fato, confere alívio íntimo para o cidadão, é um remédio que pode ser manipulado pelo dono do laboratório. Este pode — talvez movido por zelo sincero e que supõe sagrado —, “enriquecer” a fórmula recebida “do alto”, acrescentando substâncias políticas excitantes que poderão causar dependência no paciente, afetando seu juízo. E quem sofre depois não é apenas o consumidor, mas toda a vizinhança.

 

Não basta, só, a consideração do desenvolvimento. O nazismo, que não era uma religião, também foi motivo de notável crescimento de um país, no começo dos anos trinta do século XX. Hitler ergueu uma Alemanha empobrecida, desorganizada, devastada pela inflação e pelo desemprego. Derrotada na I Grande Guerra ( não falemos em “mundial” porque não abrangeu todos os países), não sabia para que lado caminhar, até que surgiu Hitler, com seu feroz e sincero patriotismo — outro grande perigo potencial, o patriotismo, quando não neutralizável nos seus excessos. Hitler pôs ordem na casa, e até nas ruas, com os “camisas negras”. Cancelou, unilateralmente, as onerosas — para uma nação devastada — “reparações de guerra”, impostas pelas nações vencedoras no “Tratado de Versalhes”. A propósito, os EUA — representados, na época, por uma dos maiores estadistas do mundo, Franklin D. Roosevelt — e China não o assinaram, o que mostra que a reputação de um povo depende muito mais da principal cabeça governante do que da índole do povo em si. Enfim, Hitler transformou a então fraca Alemanha no país mais poderoso da Europa, à sua época.

 

Mas a que custo? O que fez com tanto “desenvolvimento”. A História sabe. Ele acabou prejudicando, finalmente, seu próprio povo, derrotado e esfomeado, depois de esmagar os que não eram “arianos”, e arianos especificamente alemães. O que ele deu com uma mão, tirou depois com as duas, embora contra sua vontade, porque até o fim ele ainda amava a sua pátria de adoção ( era austríaco). Parodiando o nome de um filme, os fanáticos também amam.

 

O problema da ditadura — e o estado teológico acaba se transformando em ditadura, porque “só há um Deus”, onisciente, que fala pela boca de seu representante político incontrastável — é que, quando ela toma o caminho errado, não há como corrigir a rota. “Como tolerar a ousadia de mãos profanas tentando mexer no leme conduzido por mão sagrada?” Não foi ainda inventado um sistema político — “misto” de ditadura e democracia —, no qual o povo autorizaria o exercício do poder tirânico até o momento “x”, a hora do “basta!” — sempre discutível —, após o que o ditador sairia pacificamente de cena, devolvendo o poder à “medíocre” democracia usual, com eleições e tudo o mais. Pela experiência dos povos, o poder absoluto afeta o nervo auditivo, provocando surdez ou enormes distorções interpretativas sobre o que seria o “bem comum”. O “guru” governante interpreta o grito geral por mudanças como faniquitos de invejosos querendo seu trono, digo, seu cargo, “exercido com imenso sacrifício pessoal”.

 

O teólogo iraniano em referência argumenta ainda que quando “aparecer o imã oculto” ( mensageiro de Alá esperado pelos xiitas), “e fizer sua oração, o primeiro que vai rezar atrás dele é Jesus Cristo, e os cristãos se converterão em muçulmanos. Jesus será o general do imã oculto. No Islã, dizemos que não há nenhum domínio a não ser o de Deus. Ninguém tem o direito de governar o outro”. Em suma, só Deus pode governar, o que seria ótimo. Mas pela boca de quem? Aí reside o grande problema. E há muitas bocas sinceramente desejosas de exercer essa representação.

 

Os judeus se consideram “o povo eleito”. Certamente — salvo complexa hermenêutica — isso quer dizer o “povo preferido”, o mais amado, declaração que provoca ciumeiras na grande irmandade humana. Os filhos querem pelo menos um empate na preferência do Pai.

 

Como se vê, governos teológicos representam risco para seus povos e para a humanidade, porque “Deus não erra!” O problema não está em Deus, mas no seu procurador.

 

Certa está, portanto, nossa Constituição, separando o Estado da religião.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. A entrevista do teólogo iraniano. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/entrevistadoteologo/ Acesso em: 21 dez. 2024