Direito e Tecnologia

A informática na Justiça e os hackers

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

 

A informática na Justiça e os hackers

 

Que o computador está, mais do que os demais fatores técnicos, revolucionando o mundo, não há dúvida. E, no conjunto — considerando os prós e os contra —, revolucionando para melhor. A própria arte literária será imensamente beneficiada com essa técnica de transformar idéias e sentimentos em palavras, pois a diferença básica entre um texto bom e um mau está — na minha modesta opinião — menos na natureza do cérebro do autor do que no número de correções aplicadas à redação anterior. No fundo, é a quantidade alterando a qualidade.

Quando não havia computador, o autor, depois de ocupar, com correções, todo o espaço das margens da folha e entrelinhas, considerava o texto “pronto”. Relia, achava-se genial e passava, ou mandava passar, tudo a limpo, supondo haver atingido a perfeição. Todavia, se ingênuo “gênio” voltava a ler, no dia seguinte, o que escrevera constatava, desanimado, que seu texto continha inúmeros defeitos. E aí? Escrever tudo de novo ou publicar assim mesmo, na esperança de que as falhas não fossem notadas? Somente uma imensa vaidade ou exagerado senso de responsabilidade levava o autor a novamente retocar e passar tudo a limpo. Preferia-se, geralmente — porque ninguém é de ferro —, mandar o texto para a publicação do jeito que estava. Talvez o leitor nem percebesse. Engano, porque o leitor inteligente infelizmente, ou felizmente, percebe.

Havia, porém, os perfeccionistas, que transformavam seu trabalho numa tortura auto-imposta. Conta-se que Euclides da Cunha, vendo rejeitada pelos editores sua grande obra, “Os Sertões” — a preocupação estritamente comercial já causou muito dano à cultura —, decidiu financiar a publicação do livro. Dois mil exemplares, se não me falha a memória. Recebendo os exemplares, percebeu, horrorizado, que a obra continha 22 erros tipográficos. E a data de autógrafos já estava marcada para breve. Fazer o que? Publicar assim mesmo? De jeito nenhum! Cioso, trancou-se numa sala com todos os exemplares e, munido de um canivete, tinta e bico de pena, fez, em todos os volumes, as 22 alterações. Com o canivete ele raspava o erro e com o bico de pena, e tinta preta, corrigia. Deve ter passado dias fazendo só isso. Tarefa hercúlea.

No enfrentamento do morosidade da Justiça brasileira, tem havido enorme ênfase na aplicação da informática, como se nela estivesse a quase total solução para o problema. Engano, porque por mais que a informática acelere o andamento dos processos, não será o computador que decidirá a causa nas várias instâncias. O problema principal está no enorme represamento dos recursos, motivado pelo interesse em protelar. A meta dos adeptos da informática, parece, é informatizar o Judiciário por inteiro, abolindo-se o papel. Por outro lado, magistrados mais velhos, acostumados a lidar com papel e máquina de escrever — ou computador usado apenas como substituto desta última — resistem à inovação, temerosos do desconhecido. Com alguma razão.

Minha posição é intermediária, com recomendação de prudência na adoção plena da informática. A solução maior do problema da morosidade judiciária está na modificação inteligente — ênfase no adjetivo — da legislação processual, principalmente no que se refere a recursos (apelações, embargos, etc.). Os recursos não podem ser, simplesmente abolidos, porque em toda a decisão de primeiro grau, ou mesmo de segundo, pode haver um erro. Todavia, o legislador precisa estabelecer sanções financeiras automáticas contra quem deforma a utilização normal, justa, dos recursos. Estes foram inventados pela humanidade, para corrigir injustiças, não para obter o proveito econômico resultante da demora no encerramento do processo. Nesse ponto, seria extremamente eficaz se a lei processual dissesse que em todo recurso, julgado totalmente improcedente, o recorrente fosse condenado a pagar, à parte contrária, autônomos honorários advocatícios. Perdeu totalmente o recurso? Condenação em honorários, independentemente do que ocorreu na decisão anterior. A menos que o tribunal, que julgou o recurso, isente o recorrente dessa nova carga financeira porque, no caso, a matéria era delicada e merecia, de fato, um reexame. Sem necessidade de o tribunal ter que usar — para justificar novo ônus financeiro — a pecha de “litigante de má-fé”, como ocorre atualmente, expressão pesada e que envenena o relacionamento entre advogados e magistrados. Outra sugestão será a de limitar-se a gratuidade da justiça às decisões de primeiro e, talvez, de segundo grau. Depois do julgamento da apelação não haveria mais isenção de custas e honorários. Digo isso porque mesmo o beneficiário da justiça gratuita pode recorrer apenas para retardar. Na minha opinião pessoal, a isenção de custas e honorários deveria limitar-se às decisões de primeiro grau, se quisermos realmente desafogar os tribunais de segundo grau, o STJ e o STF.

Voltando à informática, a sua utilização nos processos judiciais não pode, por enquanto, ser total, com abolição dos papéis, porque existem, na computação, perigos que não existiam nos papéis: “hackers” e vírus. Dizem os especialistas da computação que não há defesa cem por cento contra vírus e hackers, mesmo com os programas de proteção sendo atualizados diariamente. Até homicídio se pratica pelo computador, como ocorreu na Itália, segundo relato de um magistrado italiano a um magistrado paulista.

Segundo informação, a Máfia italiana, revoltada e impotente com as denúncias dos mafiosos arrependidos — “pentiti” — com prisões em massa dos chefes do crime organizado, resolveu coibir a “denúncia premiada” — e programas de proteção às testemunhas —, com a seguinte técnica: “Está bem, traidor, não podemos te matar porque você mudou de país, de nome e até de rosto; mas você tem parentes, e nós vamos eliminá-los”. Em um determinado caso, a vítima escolhida foi um irmão do “arrependido”. Saindo do trabalho, recebeu alguns tiros mas não morreu. Conduzido a um hospital, permaneceu na Unidade de Terapia Intensiva, ligado a aparelhos que lhe forneciam oxigênio e os líquidos necessários nas veias. Como seria impossível matá-lo a tiros no hospital, devido à vigilância policial, a Máfia contratou um hacker suíço que conseguiu penetrar no sistema do hospital e desligar os aparelhos que mantinham vivo o baleado. Caso típico de tele-homicídio.

Conversando com um técnico em informática, ele me disse que um bom hacker poderia alterar a prova produzida em uma ação judicial processada apenas eletronicamente. O juiz nem perceberia isso no momento da sentença. Somente no recurso é que a parte prejudicada poderia apontar a falha, mas nada impediria que, também nos recursos, um hacker causasse problemas, interferindo novamente. E há também os vírus. Cada juiz do interior precisaria atuar bem acompanhado de um técnico. Enfim, há um campo minado a ser atravessado para que a Justiça funcione inteiramente através de computadores.

A imprensa internacional, recentemente, mencionou ataques cibernéticos chineses contra países ocidentais. Saber se é, ou não, o governo chinês que comanda essa invasão é irrelevante. O grave é a realidade da invasão. Primeiro, na Alemanha, no Ministério das Relações Exteriores, Pesquisa e Economia. Depois, no Pentágono, com invasão do sistema de e-mail do Secretário de Defesa. Finalmente, no Reino Unido. Se o hacker consegue esvaziar contas bancárias, causar blecautes e paralisar o Pentágono por sete dias — como diz a imprensa — não lhe será muito difícil interferir em julgamentos estritamente informáticos, se houver fortes interesses financeiros em jogo, se o valor da causa justificar a contratação de um hacker dispendioso. Um “bombardeio” de vírus e outros procedimentos reprováveis, alterando dados, pode acarretar um novo tipo de retardamento dos processos de maior valor econômico.

Talvez o processo informático deva se limitar — por enquanto, e no Brasil — a intimações de partes, recebimento de petições e coisas do gênero. Toda a prova documental, pericial e testemunhal deve ser resguardada, também em papel, sem possibilidade de ser alcançada pelo hacker. Emissões de certidões, também, podem ser manipuladas, aparentemente, por esses técnicos do mal. Quando constatada, em tribunais, a interferência manipuladora em determinado processo, o que fazer? Começar tudo de novo, em papel?

Não sei, por falta de especialização, como compatibilizar esses dois interesses — a rapidez da informática e a segurança — mas certamente os entendidos poderão criar uma sistemática que afaste — totalmente? será possível? — os perigos dessa nova forma de delinqüência que responde pelo nome de “hacker”. Enquanto não se alcançar esse ponto, é direito dos magistrados mais velhos optar entre ler os autos em papel ou ler o que aparece na tela do computador. Em próximo futuro será necessário que, entre as matérias necessárias ao ingresso na magistratura, conste a informática, habilitando o futuro juiz não só a escrever no computador — habilidade hoje comum — como também a operar como um “virus and hacker hunter” (caçador de vírus e hacker).

Antes de informatizar totalmente o andamento dos processos no Brasil convém estudar profundamente o que ocorreu nos E. U. A, para ver se há, lá, uma técnica capaz de impedir em pelo menos em 98% a interferência do hacker. Não se trata de copiar servilmente usos de países estrangeiros, mas de aproveitar a experiência de quem lida há muito mais tempo com o problema. Talvez isso já esteja sendo feito.

Reiterando, uma forte dosagem de informática no processo civil brasileiro é recomendável para a celeridade da justiça, mas o grande foco da demora reside no acúmulo de recursos desvirtuados de sua função primeira e essencial: corrigir erros judiciais.

 

* Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco Cesar Pinheiro. A informática na Justiça e os hackers. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-e-tecnologia/hacker-justica/ Acesso em: 04 fev. 2025