Direito do Trabalho

Trabalhador versus Uber: como a justiça brasileira ignora a relação de emprego

Rafael Celeste[1]

Resumo: o presente trabalho visa analisar o modus operandi de decisão dos juízes, bem como apresentar uma crítica a forma como os juízes operacionalizam o direito sob argumento de autoridade e de modo personalista. Para isso, buscou-se interpretar a jurisprudência no conflito entre a empresa Uber e os motoristas a ela associados. Optou-se por estudar o único acórdão sobre o conflito, na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ no Conflito de Competência nº 164544 – MG (20190079952-0). A conclusão é de que o STJ não apreciou a competência com base em um modelo de racionalidade que permitisse apresentar os fundamentos da decisão de modo coerente, pois limitou-se a citar posições que corroboram para a opinião pessoal do relator, assim como ignorou os conceitos e relações materiais que fundamentam a relação de emprego e o Direito do Trabalho. Este artigo utilizou de pesquisa teórica/bibliográfica e do método indutivo.

Palavras-chave: Uber. Relação de emprego. Judiciário. Direito do Trabalho

Introdução

O atual estágio do capitalismo trouxe relações flexíveis, sobretudo no campo do trabalho, dificultando identificar quando estamos diante de relações que podem ser identificadas como relações de emprego, isto é, um vínculo contratual entre empregador e empregado. Essas novas formas de organização do trabalho somadas ao avanço das tecnologias de informação possibilitaram o surgimento de empresas conhecidas como sharing economy – economia de compartilhamento -, que, por meio de sites e aplicativos, possibilitam que duas pessoas, em pontas opostas, comercializem bens e/ou serviços.

Essas novas formas de tecnologias e organização do trabalho também trouxeram dilemas jurídicos para dirimir os conflitos decorrentes das contradições do novo sistema. O surgimento da sharing economy levantou discussões territoriais para a aplicação do direito, afinal, como adaptar a dinâmica de um projeto de relações comerciais em ordenamentos distintos? Se nos Estados Unidos é possível promover a lógica da empresa Uber, onde os direitos trabalhistas são mais flexíveis e voltados para a área cível, como operacionalizar essa lógica em um ordenamento mais garantista e protetivo como o do Brasil?

Essas perguntas ainda não possuem respostas consolidadas no Direito brasileiro. A jurisprudência é divergente ao analisar se existe ou não relação de emprego entre a empresa Uber e os motoristas a ela associados. Entre os tribunais regionais existem posições diferentes, ora apontam para a existência, ora negam e apontam a natureza civil do contrato entre as duas partes aqui analisadas. Diante da dificuldade de unificar tais decisões e pensamentos, no presente trabalho optou-se por estudar o único acórdão sobre o conflito, na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ no Conflito de Competência nº 164544 – MG (20190079952-0).

Para analisar a decisão do STJ é necessário pontuar o padrão decisório do judiciário brasileiro. Em busca de um modelo de racionalidade que fundamente os argumentos e consolide uma posição clara e coerente sobre as matérias abordadas em decisões judiciais, notou-se que esse modelo inexiste, sobretudo porque os juízes promovem argumentos com discursos de autoridade e com traços personalistas. É característica dessa forma de decidir que os juízes – e os juristas em geral – optem por citar doutrinadores e jurisprudência como verdades autoevidentes e incontestáveis – pois “é assim que a maioria entende” – para sustentar opiniões pessoais.

Portanto, o objetivo desse trabalho é situar em que patamar estão as decisões das cortes e como os juízes fundamentam as decisões, mas com um olhar crítico sobre esse modus operandi no campo do Direito do Trabalho. A escolha do tema, se existe relação de emprego entre a empresa Uber e os motoristas a ela associados, expressa importância nesse contexto de flexibilização das relações do trabalho e no avanço de políticas públicas no sentido de desmontar o sistema de garantias individuais e coletivos, pois cabe ao pesquisador do direito identificar como as mudanças econômicas e sociais se ajustam na reprodução do direito na sociedade.

1. Justiça comum ou justiça trabalhista: onde tramitam ações contra a empresa Uber?

1.1. Sharing economy: a empresa Uber e suas ideias

A tradução para sharing economy é “economia de compartilhamento” ou “economia colaborativa”, o exemplo mais significativo é a empresa Uber[2]. Com a ampliação do uso de tecnologias de informação, essa forma de economia cresceu nos últimos anos, promovendo as plataformas peer-to-peer – ponto a ponto. “Esses tipos de plataformas permitem que indivíduos façam uso colaborativo de ativos físicos ou humanos subutilizados através de compartilhamento pago por taxas e coordenado através de serviços online” (FOLGUEIRA; SILVA; CARVALHO, 2019, p. 88).

A sharing economy permite práticas comerciais de produtos e serviços entre pessoas sem intermediários no controle dos termos das atividades, como empresas maiores ou o próprio Estado. Utilizando-se de sites e aplicativos online, as empresas constroem ferramentas de avaliação da confiança dos produtos e serviços com base nas avaliações realizadas pelos usuários, a chamada “reputação digital”. Assim, é possível descartar intermediários e realizar trocas ponto a ponto (peer-to-peer, ou P2P), por isso os custos são reduzidos e as taxas de utilização estão abaixo das empresas tradicionais (FOLGUEIRA; SILVA; CARVALHO, 2019).

Desse modo, a economia compartilhada promove a ideia de que há uma relação de colaboração entre as partes envolvidas. No caso da Uber, o motorista não é chamado de trabalhador ou empregado, a empresa opta por classificá-lo como “parceiro”[3], haja vista a necessidade de difundir a ideia de que o motorista parceiro também é um empresário e sua atividade se distingue das realizadas por empregados porque possui mais autonomia no desempenho das suas funções. Isto é, o motorista parceiro é um empreendedor individual.

Além disso, a empresa Uber se classifica como empresa de tecnologia, não de transporte: Uber Technologies Inc. Portanto, seu papel se reduziria a apenas realizar as trocas ponto a ponto, não se responsabilizando, necessariamente, com os problemas decorrentes da relação entre o motorista e os usuários. Contraditoriamente, se a sharing economy é um meio de eliminar os intermediários – empresas maiores e o Estado -, por que a Uber lucra com as transações peer-to-peer? Parece óbvio, ela é a intermediária, pois o motorista não pode negociar as corridas diretamente, por meio do aplicativo. Os valores e trajetos são definidos pela empresa, não pelos “motoristas parceiros”.

Destarte a importância de destacar que a empresa faz questão de enfatizar que o “motorista parceiro” não é empregado. Nos termos e condições[4] de adesão aos serviços da empresa, a afirmação de que o motorista não é empregado está em caixa alta, exibindo os seguintes caracteres com as letras maiúsculas:

VOCÊ RECONHECE QUE A UBER NÃO É FORNECEDORA DE BENS, NÃO PRESTA SERVIÇOS DE TRANSPORTE OU LOGÍSTICA, NEM FUNCIONA COMO TRANSPORTADORA, E QUE TODOS ESSES SERVIÇOS DE TRANSPORTE OU LOGÍSTICA SÃO PRESTADOS POR PRESTADORES TERCEIROS INDEPENDENTES QUE NÃO SÃO EMPREGADOS(AS) E NEM REPRESENTANTES DA UBER, NEM DE QUALQUER DE SUAS AFILIADAS.

Assim, essa posição da empresa cumpre duas funções: primeira, enquanto ideologia, pois promove a ideia de autonomia e de empreendedorismo, como exposto em suas mensagens no site[5]: “Dirija com a Uber. Ganhe dinheiro no seu horário”, “Faça seu próprio horário. Você decide quando quer ganhar dinheiro dirigindo” etc.; segunda, afasta a aplicação de direitos materiais do trabalho e evita que os motoristas demandem na Justiça do Trabalho, por exemplo, para exigir férias, 13º salário, salário-mínimo entre outros direitos decorrentes das relações de trabalho.

Se o motorista não é empregado, mas exerce a atividade profissional por intermédio do aplicativo e está submetido às regras estabelecidas pela empresa, qual relação existe entre as duas pontas? Ainda não há uma jurisprudência consolidada na justiça brasileira, por isso essa pergunta ainda não tem uma resposta definitiva. Existem decisões divergentes, ora considerando uma relação de natureza cível, ora de natureza trabalhista. Contudo, o STJ já teve que se posicionar sobre a competência de processar e julgar esses casos, decidindo pela justiça comum. É o que veremos a seguir.

1.2. A posição do STJ: a justiça comum é competente

 As abordagens acima permitirão compreender o caso escolhido para a análise do presente trabalho. Trata-se de uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ sobre o conflito de competência entre a Justiça Comum e a Justiça do Trabalho nos conflitos entre a empresa Uber e os motoristas a ela associados.

O processo envolvia a ação de obrigação de fazer – reativar a conta do motorista no aplicativo -, combinada com a reparação de danos materiais e morais, ajuizada por um motorista em face da empresa Uber. O autor teve a sua conta suspensa pela empresa sob a alegação de comportamento irregular e mau uso do aplicativo. Isso estava lhe gerando prejuízos materiais, pois não podia exercer o seu trabalho, mas também o prejudicava porque tinha alugado um carro para trabalhar. Destaque para o fato de que não há a demanda por vínculo de emprego, ou seja, o reconhecimento de uma relação de emprego.

A ação foi proposta no Juizado Especial Cível de Poços de Caldas – MG, que declinou de sua competência para a 1. Vara do Trabalho de Poços de Caldas – MG, por entender que se tratava de relação de trabalho. Esta, por sua vez, declarou-se incompetente e suscitou o conflito de competência, pois alegou que não visualizava na ação os requisitos para a caracterização de relação de trabalho.

O STJ declarou a justiça estadual competente sob dois argumentos:

1. Os fundamentos de fato e de direito da causa não tratavam da possível relação de emprego entre as partes, nem de verbas de natureza trabalhista. Para o magistrado, o pedido decorre de um contrato civil firmado com a Uber. Portanto, não estão presentes os pressupostos para a relação de emprego: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade.

2. Como consequência do primeiro argumento, o tribunal utiliza o art. 4º, inciso X, da Lei nº 12.587/2012 (Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana), para sustentar que a atividade possui caráter privado. Da mesma forma, como a relação é desenvolvida por meio de aplicativos com base na sharing economy e na lógica peer-to-peer, o motorista não é empregado da empresa, porque atua como empreendedor individual.

Embora a demanda não fosse o reconhecimento de vínculo de emprego, o STJ tratou dessa matéria brevemente para decidir qual justiça é competente para processar e julgar ações dessa natureza. No entanto, apresentou seus argumentos de forma resumida, sem se aprofundar na análise dos pressupostos da relação de emprego e muito menos justificou a escolha das fontes e dos argumentos que sustentam a ideia de que o motorista é um empreendedor individual.

Antes de tratar especificamente das falhas dessa decisão, é importante fazer algumas considerações sobre a necessidade de um modelo de racionalidade para a argumentação na prática jurídica.

2. Como os juízes decidem

O subtítulo dessa parte é uma paráfrase do livro Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro) de José Rodrigo Rodriguez (2013), pois é disso que se trata o presente trabalho: compreender como os juízes decidem. Na busca por entender a lógica das decisões nas cortes brasileiras, Rodriguez (2013, p. 6, grifos do autor) aponta que, “em geral, os juristas brasileiros agem de maneira personalista ao decidir casos concretos e têm a tendência de naturalizar seus conceitos ao refletir sobre o direito em abstrato”.

Assim, os juízes estariam mais preocupados em expor suas opiniões pessoais; a demonstração analítica para a correção do caso concreto se torna algo secundário. Segundo Rodriguez (2013, p. 7, grifos do autor), cada “juíz parece se relacionar com a esfera pública de forma independente: sua individualidade está acima das eventuais ‘razões do Tribunal’”. No mesmo sentido, Felipe Recondo e Luiz Weber (2019), ao estudarem as práticas e posturas do ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, apontam:

Individualidades são fator de extrema relevância num tribunal de apenas onze pessoas. Na década de 2000, o então ministro Sepúlveda Pertence disse que o Supremo era um arquipélago de onze ilhas incomunicáveis – os colegas não se frequentavam, não eram amigos, não criavam laços que facilitassem a comunicação. Consequentemente, não coordenavam os votos diante de um caso paradigmático, os chamados leading cases. Embora cercadas de águas, as onze ilhas ainda formavam um arquipélago. Uma metáfora até elegante, se comparada à imagem cunhada pelo juiz da Suprema Corte americana, Oliver Wendell Holmes, que descrevia seu tribunal como “nove escorpiões numa garrafa”. (RECONDO; WEBER, 2019, p. 44)

O problema dessas ilhas é que não sustentam uma corte coerente e que aponte para a segurança do Direito no sentido de apresentar à sociedade razões suficientes para acreditar que exista um modelo de racionalidade nas decisões. Se posições dos juízes estão submetidas às contingências políticas, um juiz pode decidir de uma forma num dia e de outra forma noutro dia. Para isso, bastaria afirmar que mudou de opinião, sem se debruçar sobre as bases argumentativas que levaram a mudança de posição.

Na prática jurídica brasileira, os argumentos são deixados de segundo plano, assim tornam as decisões vulneráveis, pois se o placar final é mais importante, as matérias votadas podem ser objeto de nova votação na alteração de conjuntura ou de composição dos ministros. Não há, segundo Rodriguez, a consolidação de uma posição firme das cortes, pois não existe uma organização dos fundamentos dos votos em uma decisão que representaria o “voto da corte”. Isto é, por mais que os argumentos vencedores sejam fortes, o placar será o centro das atenções. Assim, o juiz não precisa articular os argumentos com base em modelo de racionalidade coerente, basta emitir um parecer, muitas vezes fundado em opinião pessoal.

De outra parte, ao refletirem abstratamente sobre o direito, os juristas tendem a naturalizar os conceitos de que se utilizam, apresentando-os como a única solução possível para o problema que os ocupa com a utilização de argumentos de autoridade e erudição histórica para justificar sua posição. E, também nesse caso, eles tendem a deixar de demonstrar analiticamente a correção de sua posição perante a esfera pública. (RODRIGUEZ, 2013, p. 7)

Embora as considerações precedentes tenham caminhado para debater sobre órgãos colegiados, as práticas descritas se alastram para todo o judiciário, incluindo advogados, promotores etc. A racionalidade subjacente à linguagem das jurisprudência é usada frequentemente pelos juristas. Mas que racionalidade é essa? Ironicamente, Rodriguez diz que não é racional. Quando advogados usam excessivamente a jurisprudência e a doutrina, eles querem impressionar juízes e cidadãos por sua erudição e pela suposta extensão de seu domínio sobre a doutrina. Trata-se de argumento por autoridade, “quanto maior o número de autoridades, maior a força do argumento”. “De acordo com esta forma de pensar, uma posição é tanto mais correta quando mais pessoas concordarem com ela” (RODRIGUEZ, 2013, p. 59). Portanto, trata-se “na verdade de persuadir o juiz e os cidadãos com a citação de autoridades – e quanto mais autoridades melhor – de que a solução para o caso só pode ser uma: aquela veiculada naquela demanda específica” (RODRIGUEZ, 2013, p. 60).

Desse modo, citar jurisprudência e doutrina serve mais para colecionar autoridades que digam o que o juiz deseja e para isso não precisa justificar a escolha das fontes. Por que usar determinado doutrinador? Quais são as razões por usar uma posição na jurisprudência e não outra? Rodriguez (2013) intenta dar respostas para essas perguntas e afirma que as decisões são majoritariamente personalista e baseadas na autoridade, o que chega ao cúmulo de juízes citarem a si próprios para justificar uma decisão.

A estrutura textual utilizada na argumentação por autoridade é sempre muito parecida: elabora-se uma tese, de saída, a partir de uma autoridade qualquer (legislação, doutrinador, caso julgado). Em seguida, são invocadas autoridades para corroborá-la, pouco importando a coerência entre elas, ou seja, a coerência entre as leis, casos julgados ou citações de doutrina utilizadas. Por fim, é proposta uma solução para o caso como se ela fosse absolutamente óbvia, por ter sido, justamente, sustentada por praticamente “todos”, todas as autoridades relevantes sobre o assunto. Uma argumentação que é pura manipulação, no sentido pejorativo da palavra, das fontes de direito. (RODRIGUEZ, 2013, p. 68-69)

Rodriguez (2013, p. 69) afirma que esse modelo “aposta mais no poder simbólico da jurisdição do que na necessidade de que ela se legitime racionalmente diante das partes na ação e da esfera pública mais ampla”. Esse poder simbólico, nas palavras de Pierre Bourdieu (2005, p. 7-8), “é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.”

Para Bourdieu, a categoria campo representa o espaço simbólico permeado pelas lutas dos agentes que o determinam e legitimam representações. E o Direito é um desses campos específicos:

O campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social. É com esta condição que se podem dar as razões quer da autonomia relativa do direito, quer do efeito propriamente simbólico de desconhecimento, que resulta na ilusão da sua autonomia absoluta em relação às pressões externas. (BOURDIEU, 2005, p. 212)

Desse modo, na luta pelo “monopólio do direito de dizer o direito”, textualistas e instrumentalistas disputam qual é o caminho para “dizer o direito”. Embora Tamanaha (2011) estivesse analisando a tradição jurídica nos Estado Unidos, essas duas correntes majoritárias se manifestam no Brasil, conhecidas por alguns como literalistas e voluntaristas. Para os textualistas, ou literalistas, “estipula que representantes governamentais e cidadãos são obrigados a se submeter ao regime das normas jurídicas que regem sua conduta”, por outro lado, os instrumentalistas, ou voluntaristas, defendem “que o direito é um meio para um fim ou um instrumento para o bem social” (TAMANAHA, 2011, p. 25).

Lênio Streck (2019a; 2019b) faz críticas duras a ambas correntes. Aos que invocam a literalidade, o hermeneuta aponta que o sentido que dão converge a um objetivo já previamente estabelecido, o que ele chama de textualismo ad hoc, literalidade de marketing. Por outro lado, ao ideologizar o Direito, os voluntaristas politizam o mérito.

Argumentos consequencialistas (sem empiria, diga-se) não podem derrubar leis. Seria como admitir que um pamprincípio como o da “afetividade” valha mais do que um dispositivo do Código Civil, para usar um dos flertes dos juristas para com a primazia da moral sobre o Direito. Como se um argumento retórico ad hoc tirado do bolso valesse mais que o estatuto epistemológico, para usar o termo de Otávio Luiz Rodrigues Jr., autêntico e tradicional, de um mesmo ramo específico do Direito. (STRECK, 2019b)

Contudo, não estamos debatendo se uma corrente é melhor do que a outra nesse trabalho. O intuito é apenas apontar que essa discussão existe na reprodução do Direito. Mais do que isso, esse ponto reflete na segurança das decisões judiciais, pois gera instabilidade. Ora o juiz é literalista, ora voluntarista. Tais posições modificam conforme as opiniões pessoais do magistrado ou em virtude de situações contingentes, como necessidades econômicas e políticas.

Dito isto, podemos retomar os argumentos do acórdão em apreço sobre o conflito de competência para perceber que o texto da decisão reflete as análises realizadas por Rodriguez (2013): discurso de autoridade e opinião pessoal. Embora o conflito suscitado não verse sobre relação de emprego, sua análise sucede à apreciação da competência, afinal, é preciso saber antes de tudo se se tratava de uma relação de emprego, o que apontaria a justiça trabalhista como competente para processar e julgar ações decorrentes do conflito entre a empresa Uber e os motoristas que lhe prestam serviços.

O relator sustenta que não há relação de emprego porque os pressupostos trabalhistas não estão presentes: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. A redução realizada pelo magistrado aponta que não existe relação hierárquica, porque os serviços são prestados de forma eventual, sem jornada definida e que não existe uma salário fixo. Portanto, a análise do juiz se limita a um parágrafo para responder sobre conceitos do campo justrabalhista que ultrapassam o textualismo da lei.

Sabe-se que a Justiça do Trabalho possui uma relação diferente entre as partes envolvidas num contrato, em virtude da característica desigual da relação capital trabalho. Nascido para proteger os hipossuficientes das arbitrariedades dos empregadores, o Direito do Trabalho sedimenta pressupostos e princípios que contribuem para a sua natureza protetiva. Destaque para o princípio da primazia da realidade, que visa coibir e punir fraudes trabalhistas que intentam usurpar direitos sociais importantíssimos para uma parcela da sociedade que precisa vender a sua força de trabalho em troca de um salário.

O princípio da primazia da realidade sobre a forma (chamado ainda de princípio do contrato realidade) amplia a noção civilista de que o operador jurídico, no exame das declarações volitivas, deve atentar mais à intenção dos agentes do que ao envoltório formal através de que transpareceu a vontade (art. 85, CCB/1916; art. 112, CCB/2002).

No Direito do Trabalho deve-se pesquisar, preferentemente, a prática concreta efetivada ao longo da prestação de serviços, independentemente da vontade eventualmente manifestada pelas partes na respectiva relação jurídica. A prática habitual — na qualidade de uso — altera o contrato pactuado, gerando direitos e obrigações novos às partes contratantes (respeitada a fronteira da inalterabilidade contratual lesiva). (DELGADO, 2017, p. 223)

Assim, é possível descaracterizar uma relação civil pactuada de prestação de serviços quando “no cumprimento do contrato despontem, concretamente, todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego (trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação).” (DELGADO, 2017, p. 223). É o que, evidentemente, o magistrado não se atentou, pois optou por ignorar preceitos do Direito do Trabalho que poderiam fundamentar a decisão em outro sentido.

Como negar que haja pessoalidade se o cadastro no aplicativo é pessoal e intransferível? O motorista não pode alugar ou terceirizar o trabalho por meio do seu aplicativo. Da mesma forma, como ignorar que há uma relação de hierarquia? A hierarquia se configura por meio de normas e procedimentos que vinculam o motorista aos padrões e desejos da empresa, por exemplo, os mecanismos de “reputação digital” com as avaliações ou mesmo a suspensão da conta em virtude de usos incompatíveis com as regras da empresa, como o caso da jurisprudência analisada no presente trabalho. Outro ponto: salário fixo não é o único meio de pagamento para empregados, pois existem os salários variáveis, os salários por tarefa etc.

Como disse DELGADO (2017, p. 224):

O princípio da primazia da realidade sobre a forma constitui-se em poderoso instrumento para a pesquisa e encontro da verdade real em uma situação de litígio trabalhista. Não deve, contudo, ser brandido unilateralmente pelo operador jurídico. Desde que a forma não seja da essência do ato (ilustrativamente, documento escrito para a quitação ou instrumento escrito para contrato temporário), o intérprete e aplicador do Direito deve investigar e aferir se a substância da regra protetiva trabalhista foi atendida na prática concreta efetivada entre as partes, ainda que não seguida estritamente a conduta especificada pela legislação.

Isto é, independente da corrente que o juiz adote – textualista ou voluntarista -, o exercício da jurisdição deve observar não só a lei, mas a dinâmica das relações concretas entre os sujeitos de direito envolvido. Além disso, buscar na fundamentação das decisões justificativas que apresentem um modo de expor racional e coerente, tentando fugir de meras opiniões pessoais e do discurso de autoridade.

Conclusão

É possível notar que o padrão adotado pela decisão do STJ reflete em parte a postura majoritária do judiciário brasileiro, pois não segue um modelo de racionalidade que sustente as decisões em um todo coerente, com justificações sobre como e porquê decidir desse ou daquele modo. Reproduz-se o discurso de autoridade, cita-se sem justificar as escolhas de doutrinadores e jurisprudência, e o modo personalista de decidir, pois reflete a opinião pessoal do julgador. Em suma, o juiz faz um parecer sobre o caso. Nas decisões colegiadas, o “parecer” serve de guia para os demais, que optam por seguir ou não o relator e muitas vezes apenas apontar que segue o voto do relator sem apresentar as próprias razões.

Destarte que o judiciário adota uma linha que privilegia a santidade do contrato civil em detrimento da garantia de milhares de trabalhadores espalhados pelo Brasil, desprovidos de direitos materiais protetivos que serviriam para dar uma relativa estabilidade tanto no exercício da profissão, quanto nas relações familiares. O fato é que esses trabalhadores – motoristas, motoboys, ciclistas – da sharing economy não participam nem dos rumos das empresas, nem dos lucros advindos de seus trabalhos. Por isso, na tradução para o português, chamar de economia de compartilhamento é um eufemismo que dá a ilusão de que os bens são partilhados de forma equânime. No entanto, o compartilhamento fica da seguinte forma: o bônus para a empresa e o ônus de jornadas excessivas e pouco retorno financeiro aos trabalhadores.

Assim, podemos concluir que, com base no debate acima sobre a racionalidade – ou irracionalidade – das decisões do judiciário, a decisão do STJ se limita a apontar entendimentos do relator sobre o tema, sem se preocupar em fundamentar os argumentos apresentados, muito menos justificar as referências escolhidas para julgar o objeto da ação sobre o conflito de competência entre a justiça comum e a trabalhista. Ademais, o magistrado não contemplou até mesmo a natureza da Justiça do Trabalho, que visa dar proteção aos trabalhadores.

Ignorar essa realidade é um exercício difícil de se fazer, afinal, os fatos estão aí, a realidade é gritante. O direito deveria dar conta de interpretar essa realidade e atuar no sentido de dirimir não só os conflitos decorrentes dessas relações contratuais, mas também criar um sistema de proteção que funcionasse efetivamente para a população hipossuficiente. Não se trata de defender uma mera posição instrumentalista do direito, pelo contrário, significa dar sentido à natureza dos institutos criados pela sociedade e força ao que está na lei para a promoção de decisões coerentes com o ordenamento jurídico, incluindo as considerações conjunturais.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. e ampl..— São Paulo : LTr, 2017.

FOLGUEIRA, R. S.; SILVA, A. L. P.; CARVALHO, C. E. Economia do compartilhamento e custos de transação: os casos Uber e Airbnb. Revista Pesquisa e Debate, v. 31, n. 1(55) (2019), p. 87-135. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/rpe/article/view/40293>. Acesso em: 27. nov. 2019.

RECONDO, F.; WEBER; L. Os onze. O STF, seus bastidores e suas crises. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

STRECK, Lênio. O literalista e o voluntarista diante dos cães na plataforma. Consultor Jurídico, 2019a. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-out-03/senso-incomum-literalista-voluntarista-diante-caes-plataforma>. Acesso em: 27 nov. 2019.

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TAMANAHA, Brian. Como uma visão instrumental do direito corrói o Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). A justificação do formalismo jurídico: textos em debate. São Paulo: Saraiva, 2011.

UBER. Legal. Uber Brasil Tecnologia LTDA. Termos e Condições, 2017. Disponível em: < https://www.uber.com/legal/terms/br/>. Acesso em: 25 nov. 2019.



[1] Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:  rrafaceleste@gmail.com

[2]Outros exemplos são a 99 e a Rappi.

[3]Para mais informações, disponível em:  https://www.uber.com/br/pt-br/about/how-does-uber-work/

[4]Para mais informações, disponível em:  https://www.uber.com/legal/terms/br/

[5]Para mais informações, disponível em:  https://www.uber.com/a/join-new

Como citar e referenciar este artigo:
CELESTE, Rafael. Trabalhador versus Uber: como a justiça brasileira ignora a relação de emprego. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/trabalhador-versus-uber-como-a-justica-brasileira-ignora-a-relacao-de-emprego/ Acesso em: 22 nov. 2024