Direito de Família

A sucessão do cônjuge no direito brasileiro

A interpretação do artigo 1.830 do Código Civil de 2002 trouxe problemas para doutrina pátria, e adotou como principal marco teórico a relação entre a separação de fato e o fim da sociedade conjugal.

Afinal quais são os critérios que o cônjuge sobrevivente deve preencher para ser herdeiro do falecido, seja na hipótese de concorrência com os descendentes ou com os ascendentes, seja hipótese de sucessão isolada.

Já nas Ordenações Filipinas, o cônjuge ocupava o quarto lugar na ordem vocacional hereditária[1] e, só era chamado à sucessão na ausência de colaterais até o décimo grau. Com a Lei 1.839/1907, chamada de Lei Feliciano Pena, em homenagem ao seu autor, o cônjuge passou a figurar no terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, antes dos colaterais, os quais passaram a herdar somente até o quarto grau.

O Código Civil de 1916, o Código de Beviláqua consolidou a posição do cônjuge à frente dos colaterais, atrás dos descendentes e dos ascendentes. E, para ser apto a receber a herança, o cônjuge não poderia estar desquitado, ou seja, separado judicialmente.

Era necessário o decreto do desquite, passado em julgado, sendo insuficiente a separação de fato ou a separação de corpos, ainda que judicialmente decretada como preliminar do desquite.

A proteção do cônjuge sobrevivente não era matéria de grande preocupação àquela época, tendo em vista que o regime supletivo legal era o da comunhão universal e o casamento era indissolúvel. Portanto, o cônjuge já seria meeiro do patrimônio deixado pelo falecido e, em tese, teria garantida a sua sobrevivência.

Todavia, cumpre mencionar que ocorriam injustiças, como por exemplo, nos casos das uniões celebradas sob o regime[2] da separação de bens[3], ou ainda, quando o casal não tinha adquirido bens durante o casamento.

Em 1962, veio o Estatuto da Mulher Casada[4] com a finalidade de proteger a mulher após a morte do marido, o que trouxe novas conquistas para o direito sucessório. O referido estatuto alterou o artigo 1.611 do Código Civil de 1916, acrescentando-lhe dois parágrafos, e ainda institui o direito do cônjuge à sucessão além de ser usufrutuária dos bens deixados pelo falecido.

Era o chamado usufruto vidual e o direito real de habitação, ambos considerando o regime de bens do casamento.

O Código Civil de 2002 trouxe mudanças significativas ao direito sucessório do cônjuge, dando maior caráter protetivo ao consorte. Assim, a herança privilegia não apenas aquelas pessoas que tinham laços consanguíneos com o de cujus, mas igualmente, aquelas com quem mantinha vínculo afetivo.

E a justificativa lógica para o tratamento especial ao cônjuge seria porque é o único componente fixo e fundamental do núcleo familiar, uma vez que os filhos[5] naturalmente se desprendem da família primitiva, indo formar suas próprias entidades familiares.

De fato, com a introdução da concorrência sucessória[6], o cônjuge passou a concorrer com os demais herdeiros. Assim, na primeira classe concorre com os descendentes do falecido; na segunda classe concorre com os ascendentes. E, na terceira classe, figura como herdeiro sozinho de todo patrimônio.

Antes, percebe-se que, só recebia o usufruto de bens, passou também a ser contemplado com a propriedade deles. Afora isso, o cônjuge passou a ter status de herdeiro necessário. E, também lhe foi outorgado o direito real de habitação ao imóvel destinado à residência da família, em qualquer regime de bens, desde que seja o único a inventariar.

O fato foi comemorado por grande parte da doutrina para o tratamento privilegiado recebido pelo cônjuge, apesar de que a sistemática escolhida pelo legislador pátrio não agradou. E, nem há consenso entre os doutrinadores sobre as disposições sobre o tema, que foram consideradas confusas, mal redigidas e imprecisas, e por isso, só vieram aumentar as controvérsias a respeito da concorrência sucessória implantada.

O artigo 1.830 do Código Civil estabeleceu os requisitos para o cônjuge participe da sucessão do falecido. Cumpre frisar que na interpretação literal que o cônjuge separado judicialmente ou extrajudicialmente perde a qualidade de herdeiro do falecido. Já na separação de fato, podem ocorrer duas situações, a saber: a primeira garante o direito do cônjuge à herança se, ao tempo da morte do outro, ele estivesse separado de fato por período inferior a um biênio.

A segunda situação permite que o cônjuge, ainda que separado de fato, há mais de um biênio, seja chamado a suceder, caso haja a prova de que não fora o culpado pelo fim do casamento, e ipso facto, pela extinção da sociedade conjugal.

A redação do artigo 1.830 CC é tormentosa e é alvo de duras críticas doutrinárias, pois cabem aos juristas a apresentação de soluções para as diversas situações que podem advir dos arranjos familiares contemporâneos. Nesse sentido, importante frisar que a Constituição Cidadã modificou totalmente a arquitetura conceitual da família brasileira, consagrando outras formas de entidades familiares, aderindo a um conceito plural de família.

A interpretação literal do dispositivo legal aduz a diversos problemas, entre eles, a questão de comprovação do tempo da separação de fato, a perquirição de eventual culpa do falecido, a possibilidade de a pessoa separada de fato constituir união estável com terceiro, o que não está sujeito a qualquer prazo mínimo.

Travou-se uma celeuma na disciplina da sucessão do cônjuge, mas é essencial, uma análise mais enfática dos requisitos previstos no direito positivo a respeito da sucessão do cônjuge a fim de se conseguir uma interpretação mais adequada.

Antes a Emenda Constitucional 66 de 2010, o sistema era dual de dissolução do matrimônio, através do qual seria necessária a prévia separação, seja a judicial, a extrajudicial ou mesmo a de fato, para então, somente após o transcurso do prazo, ser autorizado o divórcio.

Com o advento da referida emenda constitucional, a prévia separação não era mais o requisito para o divórcio. E, como se sabe, o direito ao direito ao divórcio tem natureza potestativa e, assim, sendo, só dependerá da vontade das partes para que seja exercido.

Apesar das discussões doutrinárias[7] que arguem a extinção da separação, não se pode negar que a EC66/2010 reduziu em grande parte a aplicação do artigo 1.830 CC, quanto ao que menciona a separação judicial. Isso porque, ainda que se considere a permanência do instituto do nosso ordenamento jurídico, é inegável que este tendo a ser cada vez menos utilizado.

Quanto a separação de fato que é instituto fartamente utilizado pelos casais contemporâneos, gerando grandes repercussões no direito sucessório e particularmente quanto à capacidade sucessória do cônjuge. E, antes mesmo da EC66/2010 e da supressão temporal dos prazos para a decretação do divórcio, tanto a doutrina como a jurisprudência já vinham entendendo que a separação de fato coloca o fim à sociedade conjugal, aos deveres matrimoniais e, ao regime dos bens.

De sorte que naturalmente a separação de fato traz em seu bojo o fim da plena comunhão de vida, e da affectio maritalis, típicos elementos caracterizadores do matrimônio. Portanto, corolário, natural é pôr fim a comunhão patrimonial.

Assim, todos os três tipos existentes de separação possuem o mesmo efeito, ou seja, o de romper a sociedade conjugal. Já quanto aos efeitos da separação de fato, refletindo na partilha, inexiste qualquer esforço comum para formação patrimonial.

Há, ainda, na jurisprudência[8] recente brasileira precedentes do STJ no sentido de que os bens adquiridos, após a separação de fato, não integram a partilha de bens..

Não se pode deixar de mencionar ainda que a separação de fato possui efeitos de grande relevância na união estável, conforme previsto no artigo 1.723, primeiro parágrafo do CC.

O preceito legal admite que uma pessoa casada, porém, separada de fato, venha constituir uma união estável com terceiro, formando assim nova entidade familiar igualmente protegida constitucionalmente. E, assim, o legislador pátrio demonstrou que deve ser dada a preferência à realidade fática, ou seja, a existente união estável em detrimento do casamento que já se esvaiu e tornou-se mero registro cartorário histórico.

No campo sucessório, não se deve fugir a lógica do sistema. Posto que tanto o direito de família como o direito das sucessões estão intimamente ligados, porque os conceitos de um devem ser considerados na interpretação do segundo. E, portanto, a separação de fato tem implicações jurídicas na sucessão.

E, se o cônjuge separado de fato à época do óbito de cujus, não faz jus à herança. E, o biênio exigido no artigo 1.830 do CC permanece como mero resquício do prazo de divórcio direto, conforme a redação do artigo 226, sexto parágrafo da CF/1988, antes da EC 66/2010.

A questão da culpa conjugal no direito brasileiro sempre fora alvo de intenso debate e atualmente a maior parte da doutrina e da jurisprudência entendem que não mais se pode discutir a culpa pelo término da sociedade conjugal. E, mesmo antes da Emenda Constitucional 66/2010 já havia a mitigação o conteúdo do artigo 1.572 do CC, o qual prevê que qualquer dos cônjuges poderá propor ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação de deveres matrimoniais e torne insuportável a vida em comum.

O STJ tem precedente de destaque. No caso a mulher tinha ajuizado a ação de separação, pretendendo imputar a culpa pelo término do casamento. Em sede de contestação e reconvenção, não só o réu e reconvinte negou que o relacionamento terminara por culpa sua, como também ainda pleiteou a imputação de culpa à mulher.

Na decisão da origem havia se decidido que as partes permaneceriam casadas porque nenhuma das partes logrou êxito em comprovar a culpa da outra. O marido recorreu e o acórdão reconheceu que a insuportabilidade da vida em comum dispensa a imputação de culpa a qualquer das partes.

Quanto à insuportabilidade da vida em comum, a dúvida evidenciada era pelo próprio ajuizamento da ação de separação ou divórcio. Afora isto, não faz sentido atribuir a culpa pelo fim do casamento a um só dos cônjuges. As condutas tipificadas como culposas, artigo 1.573 CC são em verdade, meras consequências do fim de um relacionamento já falido, carente de amor e afeto.

Apesar do direito brasileiro com a influência da doutrina e da jurisprudência estivesse caminhando para o afastamento da culpa no direito de família, inclusive com a introdução do divórcio direto, sem discussão de culpa, o Código Civil de 2002 trouxe a possibilidade de discussão da culpa para o direito sucessório, abrindo a possibilidade do cônjuge separado de fato, herdar bens do falecido quando não mais havia comunhão plena de vida;

Percebe-se, assim, por tais razões, que a discussão da culpa, tão logo fora introduzida no direito sucessório, passou a ser alvo de severas críticas, conforme já assinalou João Gabriel Vilela Machado.

A introdução da possibilidade de discussão de culpa, no âmbito do processo de inventário, para apuração das causas da separação de fato vai de encontro aos progressos que vinham sendo alcançados no trato da matéria. Condenando tal retrocesso, diversos juristas sustentam a necessidade de se afastar tal aferição de culpa até mesmo no âmbito da separação judicial.

Conclui-se que a discussão da culpa na seara sucessória só permite a inútil perpetuação de disputas judiciais entre o cônjuge e os demais herdeiros, autorizando as partes a acionar o poder Judiciário para discutir a culpa de quem já morreu.

Aliás, Rolf Madaleno, denominou de absurdo legal de culpa mortuária[9].

A discussão da culpa no direito sucessório, relevante frisar a questão referente ao ônus da prova em caso de eventual litígio. Com efeito, não há como negar que, se o cônjuge sobrevivente pretende provar que é inocente, isso significa provar que o falecido é culpado.

E, por óbvio, o falecido não pode provar que não teve culpa pelo término do relacionamento, pois, se assim fosse, estar-se-ia violando a garantia constitucional de ampla defesa e do contraditório.

Portanto, o questionamento sobre de quem seja o ônus da prova nesses casos, do cônjuge sobrevivente ou dos demais herdeiros ou sucessores do falecido. É uma questão que fora objeto de unânime decisão do STJ no julgamento do REsp 1.513 253/SP.

Recurso especial. Direito civil. Sucessões. Cônjuge sobrevivente. Separação de fato há mais de dois anos. Art. 1.830 do CC. Impossibilidade de comunhão de vida sem culpa do sobrevivente.

Ônus da prova.1. A sucessão do cônjuge separado de fato há mais de dois anos é exceção à regra geral, de modo que somente terá direito à sucessão se comprovar, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, que a convivência se tornara impossível sem sua culpa. 2. Na espécie, consignou o Tribunal de origem que a prova dos autos é inconclusiva no sentido de demonstrar que a convivência da ré com o ex-marido tornou-se impossível sem que culpa sua houvesse. Não tendo o cônjuge sobrevivente se desincumbido de seu ônus probatório, não ostenta a qualidade de herdeiro. 3. Recurso especial provido (STJ. REsp nº 1.513.252/SP. 4ª Turma. Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 03.11.2015, p. 12.11.2015)

No voto, a Ministra Relatora, Maria Isabel Gallotti, discorreu sobre as severas críticas feitas pela doutrina brasileira ao art. 1.830 do Código Civil, mas, posteriormente, passou a definir o sentido e o alcance do texto legal, acabando por concluir que “não há que se falar em ilegalidade ou impertinência da discussão da culpa no vigente direito sucessório”.

Primeiramente, como já dito, não se concorda com o entendimento exarado no voto.

Ao contrário, a passagem representa um verdadeiro retrocesso. Nas palavras de Paulo Lôbo, “o uso da justiça para punir o outro cônjuge, máxime quando já falecido, não atende aos fins sociais nem ao bem comum” (LÔBO, 2014, p. 124).

Mas, prosseguindo na análise do julgado, a relatora, por considerar pertinente a discussão da culpa, passou a apreciar a questão do ônus da prova. Conforme se depreende do voto, havia sido decidido que o ônus da prova seria dos demais herdeiros interessados na herança, os quais deveriam provar que a ruptura da vida conjugal se deu por culpa do cônjuge sobrevivente, uma vez que a separação de fato há mais de dois anos era fato incontroverso nos autos.

Entretanto, a relatora não concordou com o entendimento, ao argumento de que o ônus da prova caberia ao cônjuge supérstite, porque “[…] conforme se verifica da ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829, o cônjuge separado de fato é exceção à ordem de vocação”.

Mais à frente, a Ministra concluiu que “[…] a sucessão do cônjuge separado de fato é exceção à regra geral, devendo o cônjuge separado há mais de dois anos suceder apenas se comprovar que a convivência se tornara impossível sem culpa sua”.

No voto que, frise-se, foi acompanhado por todos os outros Ministros integrantes da Quarta Turma, a Ministra citou a doutrina de Zeno Veloso, para quem o dispositivo tem uma sequência lógica. Assim, para o cônjuge ser afastado da sucessão[10], os herdeiros têm que provar que o sobrevivente estava separado de fato do falecido há mais de dois anos. Mas, quando for este o caso (separação de fato há mais de dois anos), é do sobrevivente o ônus da prova concernente à ausência de culpa dele, cônjuge sobrevivente.

Dessa forma, tem-se que a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de que, não só é pertinente a discussão da culpa no direito sucessório, mas, também, que o ônus da prova deve ser distribuído da seguinte forma:

É dos herdeiros o ônus de provar a existência da separação de fato por período superior a dois anos; contrariamente, é do cônjuge sobrevivente o ônus de provar que a separação de fato por período superior a dois ocorreu por ser impossível a convivência sem culpa sua.

Observa-se, portanto, que, apesar de se entender que não cabe mais a discussão da culpa no direito de família e, menos ainda, no direito sucessório, a interpretação e aplicação do art. 1.830 do Código Civil é matéria complexa e ainda está pendente de melhor definição na jurisprudência pátria, merecendo maiores debates e reflexões dos juristas e dos operadores do direito.

Conclui-se que o direito sucessório do cônjuge passou por severas mudanças. E, que do patamar de desprestígio que ocupava o cônjuge situado no quarto lugar dentro da ordem vocacional hereditária, preterido em relação até mesmo em relação aos colaterais até de décimo grau. Percebe-se, portanto, que o cônjuge dificilmente seria herdeiro do falecido, porque inúmeros eram os parentes à frente do cônjuge.

A iniquidade perdurou até o advento da Lei Feliciano pena, quando passou para o terceiro lugar na ordem vocacional hereditário, o que fora posteriormente confirmado pelo Código Civil de 1916.

Somente com o Código Civil de 2002, que o cônjuge fora incluído no rol de herdeiros necessários, além de concorrer com os descendentes e ascendentes[11] do falecido.

O que veio atender aos anseios da época, com o fito de proteger o cônjuge sobrevivente, que poderia ficar desamparado em virtude da modificação do regime de bens supletivo legal, da comunhão universal para a parcial de bens.

Além disso, a alteração também teve o intuito de prestigiar as pessoas mais próximas do de cujus, aquelas que com ele mantiveram laços de afetividade e solidariedade e estavam ao seu lado no fim da vida.

Mesmo assim, apesar de beneficiar o cônjuge sobrevivente e prestigiar o afeto, o legislador pátrio não redigiu bem a disciplina do tema. Inicialmente o equívoco está em atrelar a separação de fato ao prazo de dois anos. Pois a separação de fato coloca fim à sociedade conjugal e faz cessar o regime de bens matrimonial, afastando o cônjuge da sucessão.

Argumentou-se, também, que o reconhecimento da união estável entre pessoas casadas, mas separadas de fato, vem sedimentar a ideia de que a separação de fato põe fim à sociedade conjugal e que o relacionamento vivo somente no papel, não deve gozar de proteção sucessória em detrimento do relacionamento. com o companheiro. E, este último traduz a realidade fática do falecido e deve ser tutelado pelo direito sucessório.

Merece relevo o fato de que a união estável não depende de qualquer prazo. e o requisito fora extirpado do nosso ordenamento jurídico em por isso, o biênio mencionado no artigo 1.830 do CC permanece apenas como resquício de requisito para a propositura do divórcio direto antes da EC 66/2010.

A única ressalva a ser realizada se refere ao direito à meação[12] do cônjuge, pois faz jus à metade do patrimônio amealhado durante o casamento até a separação de fato, conforme o regime de bens.

A ausência de culpa conjugal como requisito para a sucessão do cônjuge fora demonstrada cabalmente em face da incoerência de se permitir que a pessoa casada, e já separada de fato por mais de um biênio do autor da herança possa vir a sucedê-lo, se provar que a convivência havia se tornado impossível sem culpa sua, cônjuge sobrevivente.

A jurisprudência também exerce papel de suma importância na interpretação dos casos concretos que chegam ao Judiciário e precisa repensar qual é a melhor forma de aplicar o art. 1.830 do Código Civil, especialmente no que diz respeito aos efeitos da separação de fato e à perquirição da culpa.

O recente precedente do Superior Tribunal de Justiça, analisado no último tópico deste trabalho, levantou o debate relacionado ao ônus da prova da culpa do cônjuge sobrevivente, pois adotou interpretação literal do art. 1.830 do Código Civil, ignorando toda a evolução pela qual passou o direito de família em nosso ordenamento jurídico, desde a introdução do divórcio, em 1977, até a Emenda Constitucional nº 66/2010.

Em conclusão, o precedente representa retrocesso ao reacender a discussão da culpa, principalmente da culpa mortuária, totalmente ultrapassada e despropositada, como demonstrado.

Enfim, a sucessão do cônjuge sobrevivente em concorrência com ascendentes e descendentes representa uma medida de prestígio a dignidade da pessoa humana principalmente por representar a defesa da igualdade e a proteção do afeto e da família.

Referências:

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TATSCH, Fernanda Lemos. A evolução jurídica da proteção do cônjuge e do companheiro na sucessão: uma análise legislativa do Código de 1916 ao Novo Código Civil. Disponível em:http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2007_1/fernanda_lemos.pdf   Acesso em 9.2.2018.

SIMÃO, José Fernando. Sucessão Legítima: A Concorrência do Cônjuge com os descendentes e ascendentes do de cujus. Disponível em:  http://professorsimao.com.br/artigos_simao_doutorado.htm Acesso em 08.2.2018.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil, vol. 6. São Paulo: Saraiva, 2003.

GAVIÃO DE ALMEIDA, José Luiz. Código Civil comentado, vol. XVIII. São Paulo: Atlas, 2003.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil, vol. 20. São Paulo: Saraiva, 2003

LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil, vol. XXI. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

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ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: sucessões. 4. ed. [S. l.]: Coimbra, 1989.

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CARVALHO NETO, Inácio de; FUGIE, Érika Harumi. Novo Código Civil comparado e comentado. Curitiba: Juruá, 2002, v. VII, comentários ao art. 1.961.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Grupo Gen, 2017.

MADALENO, Rolf. Concorrência Sucessória e o Trânsito Processual. Disponível em:  http://www.rolfmadaleno.com.br/novosite/conteudo.php?id=45 Acesso em 03.03.2018.



[1] Vocação Hereditária” é uma regra pela qual o legislador estabeleceu uma ordem em que são divididas as pessoas chamadas a herdar em classes impondo, como esclarece Silvio Rodrigues, entre eles uma “relação preferencial”. (III) A ordem da vocação hereditária pelo art. 1.603 do CC 1916 considerava a sucessão legítima na seguinte ordem: I) descendentes; II) ascendentes; III) cônjuge sobrevivente; IV) colaterais; V) Municípios, Distrito Federal ou à União.

[2] O regime legal de bens, à falta de estipulação expressa ou convenção, é o regime de comunhão parcial; todavia o parágrafo único do art. 1.640 permite aos nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes previstos no CC, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, dispensável somente se o regime escolhido for o de comunhão parcial feito apenas por termo reduzido no processo de habilitação.

[3] O cônjuge não concorrerá com os descendentes (ou seja, não dividirá a herança deixada que irá integralmente para os descendentes): a) na comunhão universal de bens, pois o supérstite já terá direito à meação, e, então, o legislador entende que não haverá o direito à concorrência, já que o sobrevivente terá bens próprios suficientes a garantir seu sustento;

b) na separação obrigatória do artigo 1641 (há um erro na remissão do legislador), pois, nesta hipótese, se a lei impediu a meação em vida, não admitiria a meação entre descendentes e cônjuge mortis causa (Gavião de Almeida: p. 226).

[4] O Estatuto da Mulher Casada (Lei nº. 4.121/62) criou o usufruto vidual e o direito real de habitação, inserindo-os, respectivamente, nos §§ 1º. e 2º. do art. 1.611 do Código Civil. Usufruto vidual é o direito que se dá ao cônjuge viúvo, se o regime de bens não era o da comunhão universal, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos, ou à metade, se não houver filhos.

[5] Surge a dificuldade pode se colocar quando houver filhos comuns e não comuns. Ter-se-ia, neste caso, que conjugar as disposições dos incisos I e II do art. 1.790, ou seja, ao (à) companheiro (a) caberia cota equivalente à dos filhos comuns e que fosse, ao mesmo tempo, de metade do que coubesse aos filhos não comuns. Ocorre, entretanto, que eles são incompatíveis entre si, em vista da necessidade de igualdade de quinhões entre os filhos. Se o filho comum A recebe x e o filho não comum B recebe também x, como poderia o companheiro receber o mesmo que A (x) e a metade de B (x/2)? Parece-nos prevalecer, neste caso, a regra do inciso I, dividindo-se igualmente a herança por todos;

[6] Na primeira classe o cônjuge concorre com os descendentes (art. 1.829, I) somente se não for casado com o de cujus no regime de comunhão universal ou se casado no regime de separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único) ou ainda se casado no regime de comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares.

[7] Cumpre observar segundo Maria Helena Diniz quanto a possibilidade de mudança de regime matrimonial que “a esse respeito será preciso ressaltar que pelo art. 2.039 do novel Código os casamentos realizados antes da sua entrada em vigor, em relação ao regime de bens, seguem o disposto no Código Civil de 1916 (norma especial)” (VIII); isto quer dizer que a norma do § 2º, do art. 1.639 do CC 2002, só se aplica aos casamentos realizados após 11/01/2003.

[8] Na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal: “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. A concorrência seria descabida, então, pois os cônjuges casados pelo regime da separação legal teriam direito de partilhar os aquestos adquiridos na constância do casamento. Com esta partilha, o cônjuge sobrevivente disporia de bens para sobreviver.

[9] Ao examinar a culpa funerária, ao prescrever que só conhece o direito sucessório do cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de um biênio, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente. Consigne-se que os ordenamentos jurídicos apresentam forte tendência de substituir o princípio da culpa pelo princípio da ruptura, procurando afastar do processo o desnudamento da intimidade do casal em desafeto, que, por sinal já possui constrangimentos suficientes para dispensar traumática separação.

[10] O quinhão do cônjuge que concorre com os descendentes Como regra, o artigo 1832 CC determina que o cônjuge herdará quinhão igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça. Entretanto, o artigo faz uma ressalva: a quota do cônjuge não poderá ser inferior a ¼ se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer. Exemplificamos.

a) Cônjuge e um filho (comum ou não): ½ para filho e metade para cônjuge;

b) Cônjuge e dois filhos (comuns ou não): 1/3 para o cônjuge e 1/3 para cada filho;

c) Cônjuge e três filhos (comuns ou não): ¼ para o cônjuge e ¼ para cada filho;

d) Cônjuge e quatro filhos comuns: ¼ para cônjuge e ¾ a serem divididos entre os quatro filhos. Há uma reserva de quinhão;

e) Cônjuge e quatro filhos só do falecido: 1/5 para o cônjuge e 1/5 para cada filho.

[11] O quinhão do cônjuge que concorre com os ascendentes; também não há qualquer dificuldade em se tratando do quinhão a ser partilhado entre cônjuge e ascendentes. Se concorrer com o pai e mãe do de cujus, a herança será dividida em 3 partes iguais cabendo 1/3 ao pai, 1/3 à mãe e 1/3 ao cônjuge.

Em qualquer outra hipótese de sucessão com ascendentes, ½ da herança ficará com o cônjuge e a outra metade será dividia entre os ascendentes. Exemplificamos.

a) Falecido deixa pai vivo e esposa. Metade da herança para cada.

b) Falecido deixa 3 avós vivos e a esposa. Metade para a esposa e outra metade para os três avós.

[12] Convém ressaltar que a meação pertence ao cônjuge sobrevivente por direito próprio e não por herança, sendo uma decorrência do regime de bens matrimonial, sendo, pois, intangível não podendo ser afastada por indignidade ou deserdação. Já a herança é uma universalidade que se compõe não apenas da meação sobre bens comuns deixados, mas igualmente do patrimônio particular do falecido, o que tem sido alvo de discórdia quando se analisa sua transmissão ao cônjuge sobrevivente quando em rivalidade com os demais herdeiros ou sucessores.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. A sucessão do cônjuge no direito brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-de-familia/a-sucessao-do-conjuge-no-direito-brasileiro/ Acesso em: 23 fev. 2025