Violação de Direitos Humanos e de Cidadania
André de Moura Soares*
1. DOS FATOS VIOLADORES DE DIREITOS HUMANOS E DE CIDADANIA. TRANSPORTE IRREGULAR DE PRESOS.
Todos os dias inúmeros presos são transportados para audiências nos diversos fóruns espalhados pelo Brasil. Também é realizado transporte para hospitais, exames médicos, oitiva e acareações em delegacias. O transporte de pessoas custodiadas é feito nos chamados “cubículos” ou “chiqueirinhos” das viaturas policiais, ou seja, na parte traseira de viaturas, que nos carros de passeio são utilizados para transporte de bagagens, não de pessoas.
Basta dar uma olhada nas ruas e veremos que os carros policiais não possuem estrutura para o transporte de presos. Em qualquer jornal, especialmente nos que fazem cobertura de casos policiais, despudoradamente se vê o Estado lançando pessoas nos bagageiros das viaturas policiais, canhestramente chamados de “cubículos” ou “chiqueirinhos”. O dicionário Aurélio (novo dicionário da língua portuguesa – 3º edição revista e atualizada) define cubículo como “pequeno compartimento”, o que já denota suas dimensões reduzidas. Chiqueirinho não precisa de tradução, remete ao local em que permanecem os porcos.
Na maioria das vezes o transporte se dá de forma coletiva, 04, 05 presos em um mesmo cubículo, aviltando a dignidade do preso. Na maioria das vezes o preso ainda segue viagem algemado, sendo lançado aos lados conforme as manobras feitas pelos policiais que conduzem o veículo. É uma forma aviltante de despersonalização do ser humano.
Em um Estado que zela pela dignidade da pessoa humana o preso, ou qualquer pessoa custodiada pelo Estado, deve ser transportado sentado, com utilização de cinto de segurança e com a total observância das regras de trânsito que regulam o transporte de passageiro.
A propósito, aliás, o próprio Ministro da Justiça reprovou este modo de transporte de presos, conforme se lê em página do site de “O Globo Online”, editado a 16/05/07, verbis:
“O ministro da Justiça, Tarso Genro, determinou que a Polícia Federal crie um modelo de carro para transporte de presos (camburão) sem as gaiolas, porta-malas com grades instaladas na parte traseira das caminhonetes. Para o ministro, os novos camburões devem ter bancos e espaço suficiente para que os presos sejam conduzidos sentados. A idéia do ministro é evitar que os presos sejam submetidos a sofrimentos desnecessários. Em geral, as gaiolas são apertadas e obrigam os presos a ficarem encolhidos. Tarso Genro fez o pedido ao diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, recentemente. Ele viu pela televisão imagens de presos sendo colocados dentro de gaiolas durante uma das várias operações de combate à corrupção da PF e não gostou das cenas. O ministro entende que as gaiolas implicam num castigo a todos os presos, inclusive aqueles ainda não condenados pela Justiça. O que custa fazer algumas mudanças nos veículos ? A PF está num grau de prestígio que pode fazer essas mudanças – disse Genro ao Globo. Caso a proposta dê certo, Tarso Genro acha que o modelo poderá ser implantado pelas polícias civis e militares. O ministro também pediu que a PF volte a examinar a possibilidade de transportar determinados presos sem algemas” (in http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/05/16/295775429.asp).
A indignação do Ministro da Justiça é tardia, pois o artigo 5º da Constituição Federal, ao traçar um rol meramente exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais, deixou consignado ser assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.
A Constituição, com este inciso, reforça a disposição do Código Penal de que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” (Art. 38).
Com efeito, a Lei 8653, de 10 de maio de 1993, dispõe que: “É proibido o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade”. A lei de 1993 pretendia acabar com os chamados camburões, mas a boa intenção de nada serviu. A lei não pegou, fenômeno tipicamente brasileiro…só aqui existem leis que pegam e leis que não pegam.
Ora, os chamados “cubículos” das viaturas, de forma manifesta, não respeitam o comando constitucional e infraconstitucional. O respeito à pessoa do preso é dogma constitucional, não podendo ser ele humilhado, sob pena de o contrário caracterizar evidente abuso de autoridade, constrangimento ilegal e violência arbitrária, passíveis seus autores de serem responsabilizados administrativa e criminalmente.
A desumana forma de transporte de presos, além da legislação acima indicada, ainda viola outros preceitos legais de observância cogente, agravando a situação de ilegalidade verificada no transporte de presos no Distrito Federal.
Com efeito, o artigo 1º da Lei 9503, de 23 de setembro de 1997 preceitua que o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação rege-se pelo Código de Trânsito brasileiro. Dispõe no § 2º do citado artigo 1º que “o trânsito em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”.
O artigo 3º da Lei 9503/1997 deixa assente que “as disposições deste Código são aplicáveis a qualquer veículo”, situação que abrange, portanto, as viaturas policiais que realizam transporte de presos. O artigo 22, Inciso I da Lei 9503/97 determina competir aos órgãos de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição, cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito. A omissão do DETRAN/DF é patente.
Ao transportar presos no “cubículo” ou “chiqueirinho” das viaturas policiais, o Distrito Federal, que tem o dever de cumprir e fazer cumprir a legislação de trânsito deixa, por exemplo, de observar o conteúdo do art. 65 da Lei 9503/1997: “É obrigatório o cinto de segurança por condutor e passageiro em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN”.
Também transgride o comando legal do artigo 230, Inciso II, verbis: “conduzir o veículo transportando passageiros em compartimento de carga, salvo por motivo de força maior, com permissão da autoridade competente e na forma estabelecida pelo CONTRAN”. Note-se que a punição para esta infração, considerada gravíssima é multa e apreensão do veículo.
Obviamente, a inércia do Estado em envidar meios adequados para o transporte de presos não pode ser reputado como motivo de força maior.
2. PRESO. DIREITO AO RESPEITO À DIGNIDADE INERENTE AO SER HUMANO.
A Constituição Federal, logo em seu primeiro artigo, alçou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos de nossa República. Cuida-se de um valor supremo que agrega em torno de si todos os demais direitos e garantias fundamentais do homem. Não se pode, em nenhuma atividade estatal ou privada, deixar de lado tal princípio, que é a pedra onde todos os outros direitos se encontram alicerçados.
A inobservância do princípio fundamental e maior de nossa República, sempre acarretará em violação de direitos inalienáveis e fundamentais do homem e do cidadão. Toda vez que a dignidade da pessoa humana for aviltada, como acontece no caso que se denuncia, estaremos diante de um fato arrasta nossa república para o atraso, para manutenção de nossa situação de um povo subdesenvolvido.
Não é demais lembrar a lição de Uadi Lammêgo Bulos[1] para quem “a dignidade da pessoa humana, enquanto vetor determinante da atividade exegética da Constituição de 1988 consigna um sobreprincípio, ombreando os demais pórticos constitucionais (…). Sua observância é, pois, obrigatória para a interpretação de qualquer norma constitucional, devido à força centrípeta que possuí, atraindo em torno de si o conteúdo de todos os direitos básicos e inalienáveis do homem”.
No atual estágio de evolução da civilização ocidental, é reputado incorreto fazer animais sofrerem inutilmente. Ora, se de forma correta não admitimos a imposição de atos cruéis aos animais, com muito mais razão não devemos tolerar atos de crueldade contra seres humanos, dotados de uma indignidade ímpar.
Corresponde a uma exigência da tutela do bem comum o esforço do Estado destinado a conter a difusão de comportamentos lesivos aos direitos humanos e às regras fundamentais da convivência civil. A legítima autoridade pública tem o direito e o dever de infligir penas proporcionais à gravidade dos delitos praticados pelos que infringem o ordenamento jurídico, mas, em hipótese alguma, pode transbordar os limites éticos e morais de aplicação da pena, impondo aos que se sujeitam a autoridade estatal um tratamento desumano. Se o Estado age de forma contrária ao direito posto torna-se tão infrator do ordenamento quanto os que já foram considerados dignos de culpa pelo próprio Estado.
Não se pode olvidar que a pena deve ter como primeiro escopo reparar a desordem introduzida pelo cometimento de alguma infração penal, nunca, em nenhuma hipótese, pode servir de escusa para que o próprio Estado introduza desordem na vida social, como acontece na forma de transporte dos presos em todo o Território Nacional.
Ora, o objetivo de constituir uma verdadeira justiça social, traçado no artigo 3º, Inciso I, da Constituição Federal só pode ser alcançado no respeito à dignidade transcendente do homem. A pessoa, pura e simplesmente pelo fato de ser pessoa, representa o fim último da sociedade.
O respeito à pessoa humana implica que se respeitem os direitos que decorrem de sua dignidade. Tal direito é anterior à própria sociedade, faz parte do direito natural. O respeito pela pessoa humana passa pelo respeito deste princípio: que cada um respeite o próximo, sem exceção, como outro eu, como um semelhante. O respeito à dignidade da pessoa humana, aliás, se torna mais urgente quando este se acha mais carente.
Em outras palavras, a justiça é a virtude moral que consiste na vontade consciente e firme de dar ao próximo o que lhes é devido. Ela nos dispõe a respeitar os direitos de cada um e estabelecer nas relações humanas a harmonia que promove a equidade em prol das pessoas e do bem comum.
A dignidade do homem é algo transcendental, o respeito não ser humano deve ser endereçado aos bons e aos maus, aos ricos e pobres, aos libertos e aos presos.
* Defensor Público em Taguatinga, DF.
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