Na última terça-feira foram nomeados o novo ministro da Justiça, André Luiz Mendonça, e o pretenso novo Diretor-Geral da Polícia Federal, Alexandre Ramagem. A posse de ambos estava prevista para acontecer na tarde de quarta-feira, mas apenas o primeiro participou, uma vez que a posse do quase-diretor-geral foi suspensa por decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes no curso do mandado de segurança coletivo, com pedido de liminar, impetrado pelo por partido político[1].
A decisão – fundada no suposto “dever” do Supremo Tribunal Federal de analisar se no exercício do poder discricionário do Presidente da República de determinadas nomeações foram observados os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade – está longe de ser novidade no cenário brasileiro. Em verdade, relembra casos como da suspensão da nomeação de Lula por Dilma Rousseff para o cargo de Chefe da Casa Civil em 2016, por exemplo, em que, como no caso de Ramagem, o principal elemento aventado no mandado de segurança era a possível existência de desvio de finalidade do ato.
Mesmo com a consumação da posse de Mendonça e tendo sido tornada sem efeito a nomeação de Ramagem, com esse texto, pretendemos demonstrar que, ainda que criticáveis, as nomeações são juridicamente válidas.
Há que se relembrar, de imediato, algumas disposições legais sobre as prerrogativas presidenciais. O artigo 84 da Constituição de 1988 elenca vinte e sete atribuições privativas do Presidente da República, desde a manutenção de relação com Estados estrangeiros até a nomeação de Ministros do Supremo Tribunal Federal, do presidente banco central, de Ministros de Estado e o provimento de cargos públicos federais. No que tange aos Ministros de Estado, o artigo 87 estabelece expressamente os três requisitos a serem preenchidos pelos escolhidos do chefe do Poder Executivo Federal: ser brasileiro, maior de vinte e um anos e no exercício de seus direitos políticos. Por sua vez, o artigo 2º-C da Lei nº 9.266/1996[2] atribui ao Presidente da República a incumbência de nomeação do Diretor-Geral da Polícia Federal, que deve ser escolhido entre os integrantes da classe especial da corporação.
Em primeiro lugar, o Poder Judiciário deve prestar deferência às escolhas político-discricionárias do Poder Executivo, diante das capacidades institucionais[3] – expertise técnica e, principalmente nesse caso, legitimidade democrática – que a Administração Pública goza para tomar decisões de cunho político. Diante disso, o Poder Judiciário deve adotar uma postura “minimalista”[4] de autocontenção, de modo a evitar substituir a decisão de mérito do Executivo – balizada pelo voto de milhões de brasileiros – pela sua própria opinião, sob pena de inverter a própria lógica da separação de poderes.
Disso não resulta um Judiciário inerte ou passivo. Pelo contrário. Cabe ao Judiciário verificar se as decisões de mérito do Poder Executivo preenchem requisitos legais-constitucionais básicos e se eventualmente não sejam abusivas. A seu turno, as decisões de mérito do Poder Executivo, em vez de serem apreciadas por instâncias não-eleitas (judiciário), ficam suscetíveis à responsabilização político-eleitoral. Ou seja, ao invés de ser tutelado por juízes, o chefe do Poder Executivo que responda por suas nomeações perante a opinião pública da população brasileira[5].
A escolha da pessoa adequada para ocupar cargos públicos de gestão, como um Ministério de Estado ou Diretor-Chefe da Polícia Federal, é uma tarefa que demanda necessariamente realizar opções tipicamente políticas. Não é uma tarefa que possa ser enfrentada interpretando conceitos jurídicos abstratos, mas sim selecionando os candidatos de acordo com a capacidade de implementar políticas públicas que possuam algum grau de legitimidade democrática. E por óbvio, a decisão final sobre quem é afinal a pessoa mais indicada é avessa ao chamado “princípio da impessoalidade”, pois a opção sempre será o resultado de considerações sobre a afinidade política entre o indicado e a coalização política dominante.
Para tais matérias, o máximo que uma constituição pode fazer é i) estabelecer com clareza quem afinal possui a competência para realizar essa escolha política do cargo de gestor; e ii) estabelecer mecanismos para controle político e jurídico do desempenho dos gestores, inclusive para apuração e punição de eventuais ilegalidades que venham a cometer no desempenho de suas funções.
No caso brasileiro, a responsabilidade pela indicação desses cargos é do chefe do Poder Executivo, diretamente eleito pelo povo. Compete a ele escolher o perfil adequado para os cargos, de acordo com critérios inevitavelmente políticos. Afinal, qual dos eventuais candidatos é o mais apto a coordenar políticas públicas de forma articulada com outros ministérios?
Por outro lado, dada a natureza essencialmente política da escolha, a Constituição prevê também mecanismos de controle político pelo Poder Legislativo. O Congresso Nacional pode “convocar Ministros de Estado para prestar informações sobre assuntos inerentes a suas atribuições” (CF/88, art. 58, III); pode instaurar as chamadas comissões parlamentares de inquérito, as quais possuem “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (CF/88, art. 58, § 3°); e pode também “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (CF/88, art. 49, V).
Além disso, por óbvio, no desempenho de suas atividades, os membros da Administração Pública estão subordinados ao dever de legalidade de seus atos, existindo diversos mecanismos de controle judicial dos mesmos.
Infelizmente, sempre haverá a possibilidade de que ocupantes de cargos públicos como os de Ministro de Estado ou diretor da Polícia Federal tentem utilizar a máquina burocrática que comandam para promover eventuais arbitrariedades. E essa possibilidade precisa ser enfrentada, pois afinal, nas palavras do jurista Roscoe Pound, citadas pelo ministro Alexandre de Moraes em sua decisão liminar, “a democracia não permite que seus agentes disponham de poder absoluto.”[6] Daí a existência dos mecanismos políticos e judiciais típicos de democracias constitucionais, os chamados de “freios e contrapesos” que caracterizam os Estados de Direito.
No entanto, o problema é que o risco de arbitrariedade é inerente à existência de instituições políticas, e atinge todas as instituições, inclusive o Poder Judiciário. E esse risco não desaparecerá se for retirado do Presidente da República a autonomia para indicação mediante critérios políticos. Pelo contrário: por paradoxal que possa parecer, o risco de arbitrariedade pode ser ampliado[7].
A escolha do ocupante do cargo seguiria sendo política, mas agora disfarçada sob a retórica jurídica, uma opção sobre a qual o conjunto de cidadãos não poderia desempenhar um papel relevante de controle. Afinal, a roupagem “judicial” da escolha não torna o processo menos político, apenas há uma mudança da instituição potencialmente arbitrária responsável pela escolha política: antes o presidente da República, responsável politicamente perante os eleitores, o Congresso e a opinião pública; agora órgãos judiciais – sobre os quais os cidadãos possuem poucas formas de controle.
Na verdade, a transferência, pode ser um estímulo para que, cada vez mais, membros da Magistratura e Ministério Público interfiram em assuntos essencialmente políticos, para impor políticas públicas ou candidatos a cargos de chefia de sua preferência, protegidos sob disfarces retóricos “legalistas” e “principiológicos”. E com o tempo, os membros dessas instituições tendem a ser vistos publicamente como agentes políticos não eleitos, corroendo assim a imagem de imparcialidade da qual o Poder Judiciário retira parte importante de sua legitimidade pública, da qual precisa para exercer o controle da Administração Pública nas hipóteses para as quais realmente lhes é atribuída competência.
Note-se que não estamos a defender uma ausência completa de controle judicial. Nosso ponto é que, salvo casos de manifesta ilegalidade, o controle não deve ser exercido apriosticamente, a partir de presunções questionáveis (afinal os indícios foram dados por um dissidente do governo) combinadas com a invocação de valores dotados de abertura semântica (princípios) – que, convenhamos, ao fim e ao cabo revelam mais uma preferência política do Poder Judiciário do que uma aplicação rigorosa do direito cabível. Em vez de entrar na trincheira política, o Poder Judiciário deveria se resguardar para julgar com rigor eventuais irregularidades cometidas pelos agentes públicos, em sede de ações criminais, de improbidade administrativa e afins.
Ao invés de politizar ainda mais um órgão idealizado como técnico e sobre o qual não se possui efetivo controle, o caminho mais adequado é respeitar as atribuições de cada Instituição e fazer uso das ferramentas adequadas para controle dos atos do Poder Executivo – inclusive o voto sério e bem pensado nos pleitos eleitorais. A valoração política das nomeações de ministros e do Diretor-Geral da Polícia Federal, por sua vez, cabe aos comentaristas e à população brasileira.
Cláudio Ladeira de Oliveira é Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação na UFSC. Doutor em Direito pela UFSC. Coordenador do GConst – Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina.
claudioladeiradeoliveira@gmail.com
Isaac Kofi Medeiros é advogado, mestre em Direito Constitucional pela UFSC e membro do GConst – Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina.
Vanessa Bussolo Brand é advogada, mestranda em Direito Constitucional pela UFSC e membro do GConst – Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] Mandado de Segurança 37.097/DF.
[2] Inserido pela Lei nº 13.047/2014.
[3] SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, A. Interpretation and institutions. Chicago Public Law Research Paper, Chicago, n. 156, p. 1-55, 2002.
[4] SUNSTEIN, Cass. One Case at a Time: judicial minimalism on the supreme court. Cambridge: Harvard University Press, 1999.
[5] Neste particular, Eduardo Jordão fala sobre o efeito de dispersão de responsabilidade política causado pelo controle excessivo dos atos administrativos. O gestor, ao invés de se responsabilizar politicamente por suas decisões perante a população, invoca o discurso de imposição de uma única solução juridicamente válida imposta pelo ordenamento jurídico e os órgãos de controle (JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma administração pública complexa: a experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 106), em sentido similar à tese de Ran Hirschl de transferência de temas espinhosos do Poder Legislativo para o Poder Judiciário, o que ele chama estratégia de “desvio de culpas” ou “transferência de batatas quentes”, livrando parlamentares das perdas eleitorais ao abrir mão de debates como aborto, financiamento eleitoral, união homoafetiva, etc. (HIRSCHL, R. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 251, mai. 2009. p. 165.)
[6]POUND, Roscoe. Liberdade e garantias constitucionais. Ibrasa: Sao Paulo, 1976, p. 83.
[7] Cf. VERMEULE, Adrian. The Constitution of Risk. New York: Cambridge University Press, 2014