Direito Constitucional

Conflitos relacionados à demarcação de terras indígenas: Uma crítica à inércia estatal face aos procedimentos demarcatórios e análise de casos concretos

Caio Felype Trindade Cruz[1]

Karine Sandes Sousa1

Tassya Jordana Coqueiro Batalha1

Sumário: Introdução. 1 CONCEITO DE ÍNDIO. 1.1 TERRAS INDÍGENAS. 1.3 DIREITO ORIGINÁRIO DOS ÍNDIOS. 1.4 DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. 2 PERSPECTIVA REAL: BREVE ANÁLISE SOBRE OS ENVOLVIDOS E OS CONFLITOS NO CASO CONCRETO. 3 DIFICULDADE NO PROCESSO DE DEMARÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO ENSEJADORA DE CONFLITOS; Considerações Finais; Referências.

RESUMO

O presente artigo versa acerca do direito originário dos índios de acesso as terras, do procedimento de demarcação dessas e das dificuldades enfrentadas em relação alcance desse direito. Além do mais, há a abordagem de tais dificuldades como ensejadoras de conflitos envolvendo a posse de terras.

Palavras-chave: Direito originário; Demarcação; Direito; Conflitos; Terras;

ABSTRACT

This article deals with the Indians’ right of access to land, the demarcation procedure and the difficulties faced in relation to that right. Moreover, there is the approach of such difficulties as the originators of conflicts involving land tenure.

Key words: Right of access; Demarcation; Procedure; Conflicts; Land.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva, inicialmente, uma abordagem conceitual dos elementos que compõe o objeto de estudo. Serão analisados conceitos simples, como: terras indígenas, direito originário, bem como esmiuçar o procedimento de demarcação.

De tal forma, pretende-se compreender os motivos que ensejam os conflitos por terras em face do direito originários dos indígenas da posse de tais. Além do que, analisar-se-á os casos concretos como resultado das dificuldades existentes no trato do referido processamento de demarcação, inclusive à luz da novel Portaria nº 68/2017 do Ministério da Justiça.

Por fim, pretende-se avaliar, criticamente, as dificuldades aqui abordadas e apresentar possíveis soluções na tentativa de conferir celeridade ao processamento. Além de demonstrar a importância da Funai no contexto de demarcação de terras.

1. CONCEITO DE ÍNDIO

A Funai, através do decreto-lei nº 6.001/73 – Estatuto do Índio – condicionou a delimitação do termo “índio” aos conceitos de identidade e pertencimento, em respeito aos termos da Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004.

Na dicção da convenção supramencionada, tem-se a delimitação do conceito de indígena no seu artigo 1º, onde afirma:

O próprio Estatuto do Índio, seguindo o ora insculpido na convenção, traz no art. 3ª, I e II, as seguintes definições:

I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;

II – Comunidade Indígena ou Grupo Tribal – É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados.

Além do mais, classifica os povos indígenas em 3 (três) vertentes (art. 4 do Estatuto do Índio): i) isolados; ii) em vias de integração; e iii) integrados.

Os isolados, nos termos da capitulação referida são os que “vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional”

Os índios em vias de integração são, conforme o art. 4, II, os que:

II – quando em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento.

E, por último, os integrados são, na dicção do art. 4, III, os que “incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura”.

Feitas tais considerações, pode-se perceber que os critérios utilizados para conceituação dos índios giram em torno da autodeclararão, bem como da consciência da identidade indígena que possui e no reconhecimento que o grupo ou tribo que faz parte tem dessa identidade.

1.1 TERRAS INDÍGENAS

As Terras Indígenas (TI) são caracterizadas como extensões de terras existentes no território brasileiro e de propriedade da União (Art. 20, XI, CF88). Referidas terras são de fato pertencentes aos índios, conforme aduz a Carta Magna no art. 231, §1º quando (…) por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. 

Além do mais, criou-se uma situação especial para as terras indígenas, sendo pública, estatal, e posse privada, porém coletiva, não identificável de forma individual (SOUZA FILHO, 1998).

Por se tratarem de bem pertencente à União são, conforme leciona o art. 231, §4º da CF88, inalienáveis, indisponíveis e os direitos decorrentes da posse, imprescritíveis. Por outro lado, são, ainda, destinadas a posse permanente dos indígenas, podendo os mesmos usufruírem, exclusivamente, das riquezas do solo, dos rios e lagos existentes (art. 231, §3º).

Tal direito de propriedade pela União não lhe permite, entretanto, exercer os mandamentos legais do art. 1.228 do Código Civil quanto à propriedade, qual seja: a faculdade de “usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, conforme as vedações asseguradas no art. 231, §§ 2º e 4º da Lei Magna.

Além do mais, vale ressaltar que a posse exercida pelos índios também não faz jus ao conceito de posse insculpida no Código Civil através do seu art. 1.196. Os mesmos têm a posse permanente (art. 231, §2º), mas não podem aliená-la, bem como não se tornarão proprietários por qualquer modelo de aquisição da propriedade e, ainda, a posse tem caráter coletivo.

Lição importante é a trazida pelo jurista Carlos Frederico Marés Sousa Filho, no livro “O renascer dos povos indígenas para o direito”, onde sintetiza:

“(…) Fica até relativamente fácil de entender a propriedade pública destas terras, mas difícil de aceitar que a posse não individual (…) seja exatamente o fator determinante da propriedade (…) e para afastar a possibilidade de apropriação individual, o sistema atribuiu essa ‘propriedade’ à União, como terras públicas”. (SOUZA FILHO, p. 122-123).

Também o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes se pronunciou quanto ao caráter civilista de posse e propriedade em relação ao conceito de terras indígenas, onde declarou:

“Cumpre notar, outrossim, que a posse a que se refere o preceito constitucional não pode ser reduzida ao conceito da posse do Direito Civil, como pretende autores. A posse dos silvícolas abrange todo o território indígena propriamente dito, isto é, toda área por eles habitada, utilizada para seu sustento e necessária à preservação de sua identidade cultural”

E essa diferenciação se justifica, pois, quaisquer conflitos judiciais envolvendo demandas indígenas não pode utilizar-se do arcabouço do Código Civil de 2002, ainda mais no que se refere aos conceitos de posse e propriedade, como já mencionado, visto que a Carta Magna de 1988 reservou uma categoria especial para solução.

Por fim, as terras de propriedade dos índios não são “criadas” legalmente, mas, por outro lado, reconhecidas a partir de estudos técnicos, antropológicos e legais, conforme será abordado mais adiante em tópico específico. Além do que, não se exige dos indígenas títulos de terra ou que ocupe efetiva e initerruptamente o terreno.

Quanto a classificação dessas terras indígenas, podemos ter: i) terras indígenas tradicionalmente ocupadas; ii) reservas indígenas; iii) terras dominiais; e iv) terras interditas. (Modalidades de terras indígenas. Disponível em <  http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas>).

As terras indígenas tradicionalmente ocupadas são as referenciadas caput do artigo 231 da CF88, como sendo um direito originário dos povos indígenas e cujo processo de demarcação está regulamentando no Decreto-lei nº 1.775/96 e pela novel Portaria nº 68/2017 do Ministério da Justiça. Com relação a essas terras, o decreto-lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio) aduz em seu art. 22:

Art. 22. Cabe aos índios ou silvícolas a posse permanente das terras que habitam e o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes.

As reservas indígenas são terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União em face do interesse dos índios e as quais destinam-se a sua posse permanente. O referido Estatuto do Índio (decreto-lei nº 6.001/73) traz em seu art. 26 com relação a essa classificação, o seguinte:

Art. 26. A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, respeitadas as restrições legais.

As terras dominais são aquelas havidas pelos indígenas por qualquer uma das formas reconhecidas no Código Civil de modelo de aquisição da propriedade. No Estatuto do Índio vem insculpido nos arts. 32 e 33, in verbis:

Art. 32. São de propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil.

Art. 33. O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal.

Por fim, as terras ocupadas são as áreas interditadas pelo órgão competente – Funai – para promover a proteção das tribos isoladas no local, limitando o acesso e trânsito de terceiros no local. No Estatuto do Índio vem regulamentado entre os arts. 34 a 38.

1.2 DIREITO ORIGINÁRIO DOS ÍNDIOS

O próprio artigo 231 da Constituição Federal trouxe em seu bojo o reconhecimento expresso, ao afirmar:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (grifo nosso).

Por outro lado, remontando aos anos posteriores ao descobrimento, tem-se de suma relevância jurídica o que fora insculpido no Alvará Régio de 1680 pela Coroa Portuguesa, onde aduzia:

[…] E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer moléstia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dados em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturais senhores delas.

Isto porque, fora o primeiro reconhecimento oficial por parte de Portugal ao direito de autonomia dos povos indígenas que aqui encontraram. O termo originário traduz uma ideia que precede o próprio estado brasileiro, visto que antes do descobrimento e assentamento do mesmo, os indígenas já eram os proprietários das terras.

Como já mencionado, tal direito dos índios sobre as terras é originário e, dessa forma, também o é congênito, não necessitando de titulação, como seria no caso de registro em cartório imobiliário, bem como não precisa de ratificação do Estado. É um direito de posse que se presume.

Por fim, com a constitucionalização definitiva pós 1988 do direito originário ratificou-se direitos e garantias fundamentais imprescindíveis aos indígenas, principalmente no tocante a preservação física e cultural desses povos, visto que a terra é a principal identidade de povo.

1.3 DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS

Esse instituto é de suma importância para a conservação histórica e cultural das mais variadas tribos indígenas existentes, principalmente com relação aos inúmeros conflitos de terras existentes em zonas mais interioranas dos estados da federação.

Obviamente é um processo que gera muitos conflitos também, ainda mais com a ocupação de terceiros no terreno a ser demarcado e, consequentemente, desalojado. Além do que, duras críticas são feitas aos indígenas beneficiados com o processamento quanto à improdutividade dos mesmos, bem como as áreas reservadas serem de grande extensão.

Contudo, há de se reconhecer a existência no Brasil de inúmeros latifúndios improdutivos, o que enfraquece a crítica retro mencionada. Tratando, pois, muitas vezes, apenas de preconceito com os reais detentores das terras.

Pois bem, feita essa pequena introdução, passa-se a parte do processamento em si e como é realizado, nos moldes do decreto nº 1.775/96 e alterado pela Portaria nº 68/2017 do Ministério da Justiça.

Inicialmente há o processo de identificação e delimitação das terras, conforme aduz o art. 1º do decreto referido, in verbis:

Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.

Essa identificação decorre através do trabalho de um antropólogo que é nomeado pelo Funai para desenvolver um estudo social, ambiental e antropológico e, ao final, confeccionar um relatório que será encaminhado a Funai. Nesse sentido, leciona o art. 2º, in verbis:

Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.

Após confeccionado o relatório circunstanciado, será levado até o Presidente da Funai para avaliação e deliberação, nos termos do §6º, art. 2º, in verbis:

§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.

Em caso de reprovação, terá que fundamentar os motivos para tal, bem como prescrever diligências a serem realizadas em um prazo máximo de 90 (noventa) dias. Caso aprove, iniciará o prazo de 15 (quinze) dias para publicação do resumo no DOU (Diário Oficial da União), no Diário Oficial do Estado em que se encontrar as terras e, por último, afixar um documento na sede da Prefeitura local. Nesse sentido, o § 7º do art. 2º do decreto, in verbis:

§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.

Superada essa fase, é aberto o prazo de mais 90 (noventa) dias após essas publicações para oportunizar quaisquer contestações por parte de qualquer interessado que possa existir, inclusive estados e municípios. Nas razões poderão apresentar quaisquer provas que julgarem pertinentes a demonstração de prejuízo e consequente indenização, além de apontar possíveis vícios existentes no relatório.

Caso alguém conteste o relatório, a Funai terá 60 (sessenta) dias para confecção das “contrarrazões”, elaborando pareceres para refutar o que fora alegado. Feito isso, encaminhará o procedimento ao Ministro da Justiça.

Assim é o prescrito nos §§ 8º e 9º do art. 2º, onde aduzem:

§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.

§ 9° Nos sessenta dias subsequentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas.

Com a novel Portaria nº 68/2017 do Ministério da Justiça, esse criou o GTE (Grupo Técnico Especializado) com o fito de fornecer subsídios para a decisão do Ministro de Estado da Justiça e Cidadania em assuntos que envolvam demarcação de Terra Indígena.

Assim leciona o art. 2º da Portaria, in verbis:

Art. 2º – O GTE avaliará os processos de demarcação de terra indígena submetidos à decisão, subsidiando o Ministro de Estado da Justiça e Cidadania com todos os elementos necessários ao exercício da competência prevista no § 10 do Decreto nº 1.775 de 1996.

Parágrafo único – O GTE poderá recomendar a realização de diligências, a serem cumpridas no prazo de noventa dias.

O antigo prazo de apreciação do Ministro da Justiça era de 30 (trinta) dias, no máximo, conforme o §10 do art. 2º do decreto nº 1.775/96, in verbis:

§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da Justiça decidirá:

I – declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;

II – prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser cumpridas no prazo de noventa dias;

III – desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.

Contudo, com a entrada em vigor da portaria referida, este prazo fora prolongado, bem como observou-se a nítida burocratização do processo em si, sendo essas as principais críticas feitas atualmente.

Outra possibilidade antes da decisão do Ministro da Justiça está insculpida no art. 4 da Portaria, onde diz:

Art. 3º – Antes da tomada de decisão, a juízo do Ministro de Estado da Justiça e Cidadania, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo.

Parágrafo único – Poderão ser estabelecidos outros meios de participação das partes interessadas, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas.

Findada a fase de responsabilidade do GTE, o processamento retoma seu curso normal nos moldes do decreto nº 1.775/96 no caso de declaração dos limites das terras indígenas pelo Ministro da Justiça.

Dessa forma, uma vez publicada a portaria pelo Ministro declarando a área os limites das terras indígenas, será determinado a Funai que promova a demarcação física da área, além do que, verificada a existência de ocupantes não indígenas, o INCRA procederá ao reassentamento, em caráter prioritário dos mesmos.

De acordo com o ora exposto os arts. 3 e 4 do decreto, in verbis:

Art. 3° Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste Decreto.

Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.

Por fim, após todo esse trâmite, é encaminhado o procedimento de demarcação ao Presidente da República para que se proceda à homologação do mesmo por meio de um decreto. Após isso, o decreto homologado retorna à Funai, a qual irá atuar nos moldes do art. 6 do decreto nº 1.775/96, in verbis:

Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.

No interregno entre a homologação do Presidente da República e o registro em cartório, é possível a retirada de ocupantes não-índios, com pagamento de benfeitorias consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra.

Encerrando o procedimento, a Funai irá promover a interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados. Nesse sentido o art. 7 que diz:

Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.

2. PERSPECTIVA REAL: BREVE ANÁLISE SOBRE OS ENVOLVIDOS E OS CASOS CONCRETOS

A demarcação das terras indígenas traz benefícios, ainda que de maneira indireta a sociedade, pois efetivar e garantir os direitos territoriais dos povos indígenas colaboram sobremaneira para a estruturação de uma sociedade miscigenada e com várias frentes culturais. Outrossim, auxilia na proteção e conservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro. As terras indígenas são também elementares para a reprodução física e cultural dos diversos povos indígenas, com a preservação de seus modos de vida tradicionais, saberes e expressões culturais únicos, respeitando a diversidade étnica e tornando mais rico o acervo cultural brasileiro.

O Brasil é um território de grandes extensões o qual possui um histórico fundiário deveras perturbado por instabilidades. A doutrina jurídica agrária divide a formação fundiária brasileira em quatro grandes fases: sesmarias, período extralegal, sistematização jurídica e também a consolidação jurídica. Essas fases fundiárias são diretamente responsáveis pela divisão desigual de terras. Extensos latifúndios concentrados nas mãos de poucos e ricos fazendeiros, inúmeros minifúndios, terras devolutas e também terras improdutivas. Tal estruturação fundiária acaba por ocasionar e deflagrar inúmeros conflitos envolvendo a luta pela terra, os quais perpassam por diversos setores da sociedade. Frequentemente os noticiários dão manchetes relacionadas a conflitos tangenciando a disputa pela terra os quais envolvem desde grandes e pequenos produtores, aos movimentos sociais como o Movimento Sem Terra e também os povos indígenas, os quais historicamente possuem direitos e terras originalmente de sua propriedade.

Ainda em relação a estruturação fundiária do Brasil, hoje uma das principais atividades do país gira em torno do Agronegócio e suas adjacências, onde há grandes propriedades, geralmente monocultoras (exemplo:soja) as quais utilizam tecnologias mais avançadas, pouca mão de obra e as produções são voltadas para exportações bem como para as agroindústrias, e, principalmente para obtenção de lucro. Atualmente, o Produto Interno Bruto do agronegócio representa quase um quarto do PIB Nacional e é uma das maiores “esperanças” em meio a profunda recessão econômica a qual o país perpassa. (COSTA, Daiane. Agronegócio deve crescer 2% e responder por metade da expansão do PIB este ano. Disponível < https://oglobo.globo.com/economia/agronegocio-deve-crescer-2-responder-por-metade-da-expansao-do-pib-este-ano-20725521>)

Portanto, uma das principais barreiras enfrentadas em prol da correta e efetiva regularização das terras indígenas reside no fato de a terra ser, historicamente comprovada, e com consequências sentidas até hoje, uma fonte de poderes de cunho econômico, político e também social. O paradigma de desenvolvimento da economia do país, pautado na agricultura, na pecuária extensiva e na exportação de commodities, faz com que a demarcação das terras indígenas seja reprovada por diversas camadas da sociedade, sendo visto como um impasse, uma barreira frente ao progresso, e não como o confirmação e reiteração de direitos originários dos povos indígenas, fato que contribui sobremaneira para a hostilidade as quais estes povos sofrem, e que consequentemente acaba por ocasionar grandes conflitos que são noticiados pela mídia sensacionalista, a qual com seu poder de alienação e influencia pode influenciar seus espectadores na perpetuação desses preconceitos bem como nos conflitos. Nesse sentido, Nascimento (2001):

[…] em muitos conflitos gerados em torno da disputa pelo uso de determinados recursos naturais, ocorre uma trama entre os atores, com dinâmicas que precisam ser contextualizadas, uma vez que envolvem aspectos históricos, culturais e éticos, muitas vezes submersos ou invisíveis. Por exemplo, a fluidez temporal das alianças entre os diferentes atores, gera situações de grande complexidade e volatilidade. Os recortes podem ser surpreendentes dependendo do momento em que se analisam determinadas situações. (NASCIMENTO, 2001, p. 12).

De maneira mais geral, quanto os imbróglios enfrentados para regularização que acabam por deflagrar conflitos, ou as terras que já estão ocupadas por índios são alvo do interesse de terceiros (latifundiários, extrativistas, mineradores, responsáveis por grandes empreendimentos como a construção de hidrelétricas, etc.), ou aquelas reivindicadas pelos índios já estão em posse de não índios. Casos como a Construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte foram diretamente de encontro à essa política de demarcação, além da preservação ambiental. Ademais, pode ser apontada como causadora de conflitos, a “declaração” do Ministro da Justiça na qual o título da propriedade é considerado nulo, e acaba que o proprietário perde o direito à terra e ocasiona muitas vezes lutas armadas que podem acabar em mortes. (Sobre a Demarcação de Terras Indígenas no Território Brasileiro e a Capacidade Civil dos Indígenas. Disponível < http://www.indigena.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=93> ).

Nesse sentido, Rodolfo Pena:

Em alguns casos, grupos de posseiros, grileiros e fazendeiros entram em conflitos com os indígenas em torno da disputa territorial. Muitas vezes, os limites impostos pela demarcação não são respeitados, o que se configura como um grave crime, pois há invasão de uma área de proteção patrimonial. (PENA, Rodolfo F. Alves. “Demarcação de Terras Indígenas no Brasil”;Brasil Escola.)

É um fato notório a deflagração de inúmeros conflitos tangenciados pela disputa de terra originariamente dos povos indígenas. A primeira terra indígena reconhecida legalmente no Brasil foi o Parque do Xingu, em 1961. Nas décadas seguintes, entre 1970 e 1980, houve uma grande mobilização em torno da defesa dos índios, que originou os direitos guarnecidos naConstituição promulgada no ano de 1988. Entre um dos mais conhecidos casos de demarcação, está o caso da Tribo Indígena Yanomani, com mais de 9 milhões de hectares, situada entre os Estados do Roraima e o Amazonas, que fora demarcada em 1992 após um genocídio praticado por garimpeiros ter mobilizado a sociedade. (SUED, Lucas. Os Conflitos Acerca da Demarcação de Terras Indígenas. Disponível < https://suedlucas.jusbrasil.com.br/artigos/203413790/os-conflitos-acerca-da-demarcacao-de-terras-indigenas >)

Em publicação sobre as dificuldades do processo de regularização de terras indígenas, o Ministério Público Federal aborda também o caso da terra indígena Marãiwatsédé da Tribo Xavante, localizada no nordeste do Mato Grosso. Tendo levado quase 20 anos, o processo foi concluído com um final feliz para os índios no começo do ano de 2013. Nesse sentido:

Maraiwãtsédé foi declarada de ocupação tradicional indígena em 1993, por meio de uma portaria do Ministério da Justiça. Em 1995, uma ação civil pública para retirada dos não índios da área foi proposta pelo MPF. O pedido liminar foi deferido, sob a condição de que a desocupação fosse realizada depois da demarcação. Vários recursos foram propostos pelos fazendeiros e ocupantes para protelar a saída da área. Em 1998, a terra indígena foi homologada, por decreto do presidente da República, com extensão de 165.241 hectares.Dois anos depois, em 2000, a Justiça Federal de Mato Grosso decidiu pelo retorno da comunidade indígena Xavante ao local, mas sem determinar a retirada dos posseiros. Esta decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2004. Em 2007, a Justiça Federal sentenciou a ação e determinou a retirada de todos os não índios. No entanto, apenas em janeiro deste ano, após uma série de novos recursos judiciais, a Fundação Nacional do Índio (Funai) noticiou a completa desintrusão de Marãiwatsédé. Segundo a procuradora da República Marcia Zollinger, encerrou-se uma etapa de grave violação aos direitos humanos do povo Xavante”.( MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Especial Demarcação)

Em breve pesquisa seja via internet ou em bibliotecas, é possível encontrar uma infinidade de terras indígenas que não se encontram na posse dos índios e que prosseguem na mora do processo demarcatório, deixando esses povos sem suas terras de direito e aumentando tensões entre os envolvidos na disputa territorial. De acordo com notícias veiculadas no sítio eletrônico, A violência no campo atingiu em 2016 seu pior nível nos últimos 13 anos, com 61 mortes em 1.536 conflitos por terra, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra. Das 61 vítimas, 13 eram índios, quatro eram quilombolas, seis eram mulheres e 16 tratavam-se de pessoas com menos de 29 anos. (SANTADREU, Alba. Ataque aos índios Gamela, um reflexo do conflito de terras no Brasil. Disponível < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2017/05/06/ataque-aos-indios-gamela-um-reflexo-do-conflito-de-terras-no-brasil.htm >)

O caso mais recente e que teve repercussões nacionais, ocorreu no interior do Estado do Maranhão envolvendo os índios da etnia Gamela e os fazendeiros e agricultores da região. Os indícios do conflito perduram desde o ano de 2015, quando os índios gamela decidiram iniciar no município de Viana uma série de “retomadas”, expressão usada pelos indígenas para definir a ocupação de um território ancestral que fora tomado de seus parentes no passado. E, desde esse momento, até então, já ocuparam oito áreas onde antes existiam habitações de etnias não-indígenas. (BEDINELLI, Talita. A luta por terras e pelo resgate da memória dos gamelas, apagada desde o Brasil colônia.)

O caso dos Índios Gamela é um dos exemplos mais eloquentes que demonstram o descaso das autoridades responsáveis para com o processo demarcatório e que poderia facilmente evitar o tipo de violência ocorrido no interior maranhense que fora ocasionado por uma disputa de terras, onde 13 índios ficaram feridos de maneira irracional e covarde. Neste sentido, Cléber Buzatto:

“A crueldade dos atos reflete a gravidade do conflito e a “inoperância” do governo na batalha indígena pela demarcação de terras. Essa “inoperância” levou os índios a empreenderem ações diretas para retomar o território que atualmente está nas mãos de grandes fazendeiros, que têm forte apoio na Câmara dos Deputados”. ( Buzzato Cleber, em entrevista)

Anteriormente ao conflito deflagrado, o Ministério Público Federal já havia instaurado uma Ação Civil Pública com o fulcro de efetivar a demarcação de terras pertencentes ao povo Gamela, a qual tramita na Seção Judiciária do Maranhão na 13ª Vara Cível da Justiça Federal, demonstrando que se tivesse ocorrido uma efetividade do processo demarcatório, provavelmente tal conflito não teria chegado a tal nível de violência.

3. DIFICULDADES NO PROCESSO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO ENSEJADRA DE CONFLITOS

Diante da importância dos temas abordados, é possível perceber a necessidade de analisar com criticidade as dificuldades na demarcação das terras indígenas. Como se viu, estas consistem num tipo específico de posse, têm natureza originária e são coletivas. Por terem essa natureza originária, o procedimento utilizado para demarcação é meramente declaratório, todavia, isso não diminui a sua importância e capacidade para ser a motivação de diversos conflitos aqui elencados.

O grande desafio do Estado diante dos conflitos envolvendo a demarcação das terras indígenas se encontra, então, em promover essa demarcação sem que se desconsidere todo o processo de colonização ocorrido no nosso país, a ocupação das terras e titulação destas. Logo, tem-se nesse procedimento uma das chaves para a redução dos conflitos.

Todavia, vale ressaltar os inúmeros problemas em torno do processo de delimitação. Por exemplo, entre as terras indígenas tradicionalmente ocupadas existem parcelas que ainda não se encontram em posse plena das comunidades indígenas (fonte: FUNAI). Isso constitui um sério problema para a efetivação dos direitos territoriais indígenas e para a ocorrência e manutenção dos conflitos.

Um dos motivos que tanto dificultam esse processo de demarcação encontra-se fundado no fato de que a terras, historicamente, tem um caráter econômico e é sinônimo de poderio. O desenvolvimento econômico do país se pautou na propriedade das terras e na produção e colonização delas, por conta disso, hoje vivemos em um país de forte agricultura e pecuária. Aqui encontra-se a principal fonte dos conflitos relacionados à propriedade da terra, seja envolvendo indígenas, seja envolvendo o Movimento Sem Terra. A repercussão disso em relação ao tema abordado, é que, no lugar de ser considerada como reconhecimento de um direito originário, a demarcação é tida como um obstáculo ao desenvolvimento.

Outra dificuldade enfrentada por essa problemática são os entraves jurídicos existentes em torno das terras. No ano de 2009, o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul realizou um levantamento constatando que haviam, na época, 87 processos envolvendo disputa de terras indígenas tramitando no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (fonte: MPF em Defesa das Terras Indígenas). Tratavam-se de mandados de segurança e ações declaratórias movidas pelos proprietários de terras que tentavam impedir judicialmente os procedimentos iniciados pela Funai ou pelo Ministério Público para a demarcação desses territórios. Logo, como já visto no momento em que comentamos a respeito dos conflitos, os diversos problemas acerca dessa demarcação são a principal motivação de tais conflitos.

Relembrando o exposto anteriormente, as fases do processo demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são as seguintes: em estudo (quando se realiza estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais com a finalidade de identificar a terra); delimitadas (terras que tiveram o estudo aprovado pelo Presidente da Funai, estão em fase de contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça, na espera de serem declaradas de posse tradicional indígena); declaradas (nessa fase, aguarda-se a expedição de portaria pelo Ministro da Justiça, mas as terras já estão autorizadas para serem demarcadas fisicamente); homologadas (terras com limites definidos e homologados por decreto Presidencial); regularizadas (após o decreto anterior, essas terras serão registradas em Cartório no nome da União, mais especificamente da Secretaria do Patrimônio da União); e interditadas (com restrições de uso e ingresso de terceiros, são destinadas para a proteção de indígenas isolados).

Diante de todas essas fases, temos o procedimento de demarcação de terras com um processo moroso. Motivo este que contribui também para a manutenção dos conflitos, como é o caso dos índios Gamela, no Maranhão, abordado anteriormente. Esse conflito permanece em litígio na fase de estudos antropológicos, que devem ser feitos por membros da Funai, o que configura uma dificuldade neste caso concreto, em vista da escassez de pessoal nesse órgão para realizar esta fase do procedimento.

Em vista dessa morosidade e de toda a cobiça por terras, há quem acuse os poderes Executivo e Legislativo de contribuir com a paralisação dos processos de demarcação no Brasil, além de fundar isso nas diversas tentativas desses poderes de alterar esse procedimento. Em favor disso, temos a antropóloga e professora titular da Universidade de São Paulo, Manuela Carneiro da Cunha:

“Estamos em um cenário de cobiça às terras que estão fora do mercado, as áreas de conservação e as terras indígenas. O governo, que está refém de uma poderosa bancada no Congresso, que alia ruralistas e evangélicos, sacrifica então o que lhe parece ter importância secundária. É uma questão de prioridades quando deveria ser uma questão de princípios” (CUNHA, Manuela Carneiro da).

Também com uma posição crítica, temos o jurista Dalmo de Abreu Dallari:

“Ninguém pode ter dúvida de que os direitos dos índios são direitos humanos. Infelizmente, ainda há muita resistência a efetivação desse direito. O que se tem visto é uma pressão muito forte, partida do agronegócio, no sentido de dificultar a sua efetivação. No Congresso têm sido apresentadas propostas que visam claramente à redução dos direitos indígenas, como transferir a competência da demarcação das terras indígenas para o Legislativo” (DALLARI, Dalmo de Abreu).

O procedimento de demarcação de terras indígenas que já tinha como característica a morosidade, como vimos, passou recentemente por uma mudança significativa. Mediante portaria, em janeiro de 2017, o Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, autorizou a criação do Grupo Técnico Especializado (GTE) com o propósito de fornecer subsídios em assuntos que envolvam a demarcação de terra indígena. Todavia, a criação desse grupo configura apenas mais um agente administrativo entre a Funai e o MP nesse processo.

Em conformidade com essa ideia, está Carlos Frederico Marés, ex-presidente da Funai:

“O que está se criando é um nível intermediário entre o nível técnico e político. Trata-se de criar uma comissão para agir politicamente e burocratizar a demarcação. É um passo a mais para travar o processo” (MARÉS, Carlos Federico. 2017)

Travando o procedimento de demarcação, a situação que fica é a manutenção dos conflitos já existentes, em vista que só demora mais para que as autoridades judiciais cheguem a uma justa decisão.

A criação desse Grupo não se limita apenas a deixar o processo mais burocrático, ela representa também o enfraquecimento da Funai. O Decreto presidencial 1775/1996, em concordância com a Constituição da República, determinou que compete à Funai a atribuição técnica de identificar e delimitar as terras indígenas do país. A Portaria que criou o GTE vai de encontro com esses preceitos.

A criação do GTE, dessa forma, leva à análise e à elaboração de pareceres feita por consultores jurídicos que não atuam na carreira indigenista especializada da Funai. Isso faz com que sejam inseridos os interesses privados nesses pareceres, enfraquecendo o papel da Funai nesse processo e apresentando-se como um problema do ponto de vista garantista aos indígenas.

Uma dificuldade também presente no procedimento de acesso às terras por partes dos indígenas é a presença da bancada ruralista no Senado Federal. Essa bancada defende a tese de que os povos indígenas só teriam direito à terras que foram ocupadas até o dia 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição da República, já que essa carta que garantiu esse direito à eles. Essa tese não leva em conta o fato de que os indígenas diversas vezes foram expulsos de suas terras sem ter a chance de se defender, além de desconsiderar o caráter histórico e cultural que a presença dos índios traz para o nosso país.

Diante das dificuldades enfrentadas no processo de demarcação das terras indígenas mesmo inexistindo controvérsias a respeito do direito originário destes, é importante pensar em propostas para minimizar os danos que esses obstáculos trazem.

A primeira solução que se pode pensar é a alteração no procedimento em questão, visando torna-lo mais célere. Devem ser feitos investimentos em função da Funai, para que esta possa ter os recursos necessários para alcançar um processamento célere e para evitar casos como os dos índios Gamela, no Maranhão, aqui abordado anteriormente. Em vista disso, é importante concentrar essa competência nas mãos da Funai, que é órgão indigenista oficial do Brasil e é vinculado ao Ministério da Justiça. Logo, torna-se importante proporcionar à Funai acesso à instrumentos para desapropriar e indenizar de forma justa mediante títulos valoráveis, tal qual os títulos da dívida agrária.

Como exemplo de um procedimento mais célere, temos a forma de demarcação da Reserva Indígena, que é um tipo de terra indígena. Em casos específicos como conflitos internos irreversíveis, impactos de grandes empreendimentos ou a impossibilidade técnica de reconhecimento de terra de ocupação tradicional, a Funai promove o reconhecimento do direito territorial das comunidades indígenas numa modalidade diferenciada, que é a Reserva em questão. Nesses casos, a União pode promover a compra direta, a desapropriação ou receber doações de imóveis que serão destinados à constituição dessas reservas.

A possibilidade de tornar célere esse procedimento se funda juridicamente no que fez o Ministro da Justiça Nelson Jobim, em 1996, que saneou o procedimento administrativo que é a demarcação das terras indígenascom a finalidade de deixa-lo mais rápido e simples. Dessa forma, é perceptível que cabe ao Ministro da Justiça transformar o processo demarcatório em algo válido, justo e acelerado, tendo a finalidade de proporcionar à União os instrumentos para que conclua de forma ágil e justa o alcance de direitos.

Existem também algumas políticas específicas que podem ser utilizadas na arrecadação de dinheiro, que deve ser destinado à gestão territorial e ambiental de terras indígenas, à educação escolar indígena, à políticas habitacionais e ao etnodesenvolvimento. Seriam então incentivos fiscais, com repasse de recursos federais exclusivamente destinados às terras indígenas e às políticas indigenistas.

Como exemplos desta, temos o ICMS ecológico, que consiste em um mecanismo tributário que permite aos municípios o acesso à mais recursos financeiros arrecadados através do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). O direito a esse acesso se dá em função do atendimento a determinados critérios ambientais que são estabelecidos por leis estaduais, logo, não se trata de um novo imposto, mas de um novo critério para distribuição de recursos.

Diante do exposto e do cenário com crescente visibilidade à importância econômica é possível perceber os riscos que o procedimento de demarcação de terras indígenas pode e vem acarretando ao alcance do direito originários dos índios. Fato este que leva à necessidade de alterações significativas, seja no âmbito legislativo, seja no âmbito cultural de dar a devida importância à população indígena e proporcionar o seu bem-estar e alcance de direitos.

CONSIDERACÕES FINAIS

A análise conceitual primeira é de suma importância para se compreender certos aspectos que compõe a gênese de toda a problemática abordada através da análise acerca do conceito de terras indígenas, o direito originário e congênito dos quais são possuidores e, como resultado disso, o procedimento adotado para demarcação das terras.

O procedimento de demarcação de terras indígenas é acometido por diversas dificuldades, uma delas é a morosidade, o que contribui para a manutenção dos conflitos. Recentemente, esse processo, já moroso, passou por alterações, ocorrendo a criação do Grupo Técnico Especializado (GTE), recebido pelas críticas como representação de mais uma burocracia nesse procedimento, além de consistir na possibilidade de uma visão privada dos conflitos e de um possível enfraquecimento da Funai.

Dentre essas e outras dificuldades torna-se necessário repensar esse procedimento, dando celeridade à ele e possibilitando à Funai exercer sua competência na demarcação de terras indígenas. Há também a possibilidade de aplicar políticas específicas, a exemplo do ICMS ecológico, que consiste num critério diferenciado de distribuição de recursos.

REFERÊNCIAS

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RIBEIRO, Mônica Ribeiro e. Cenário nacional é de paralisação das demarcações de terras indígenas. Comissão Pró-índio de São Paulo. Disponível em: < http://www.cpisp.org.br/indios/upload/editor/files/MateriaOcenariodeparalisacao.pdf>. Acesso em: 14/06/2017.

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SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 1999.



[1] Discentes do Curso de Direito Bacharelado da Universidade Estadual do Maranhão

Como citar e referenciar este artigo:
CRUZ, Caio Felype Trindade; SOUSA, Karine Sandes; BATALHA, Tassya Jordana Coqueiro. Conflitos relacionados à demarcação de terras indígenas: Uma crítica à inércia estatal face aos procedimentos demarcatórios e análise de casos concretos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/conflitos-relacionados-a-demarcacao-de-terras-indigenas-uma-critica-a-inercia-estatal-face-aos-procedimentos-demarcatorios-e-analise-de-casos-concretos/ Acesso em: 03 jul. 2025