Direito Constitucional

Análise da eficácia da coisa julgada continuativa diante de mudança de jurisprudência constitucional brasileira

Apesar da já muito abordada questão da supremacia constitucional e da enorme influência e afluência de normas que não se harmonizam com os sagrados conteúdos da Carta Magna, a noção de controle de constitucionalidade das leis e de atos normativos feito pelo judiciário, entre os quais as decisões emanadas das instâncias julgadoras, pressupõe a noção antecedente de supremacia constitucional, que por sua vez se apoia no dogma da superioridade das normas e  dos princípios expressos e também os implícitos da Constituição Federal de 1988, toda vez que confrontados com qualquer outra norma posterior, seja geral ou específica, mas que lhe é necessariamente subalterna.

O controle judicial de constitucionalidade das leis e de atos normativos tem sido associado, às vezes, de forma expressa e noutras vezes de modo implícito, às chamadas Constituições rígidas, ou seja, àquelas cujas disposições somente podem ser alteradas mediante processo de emenda que requer o atendimento de requisitos e formalidades especiais ou típicas.

A boa doutrina já alerta que não se deve olvidar, por sua correlação como modelo rígido de Cartas Políticas, que certas matérias constitucionais não são alteráveis nem mesmo pela via de emenda ao seu texto, e são chamadas as cláusulas pétreas da Constituição.

Porém, essa correlação entre o controle de constitucionalidade das leis e das constituições rígidas conforme advertência de Lúcio Bittencourt não encontra eco na realidade, porque em não poucos países de constituições rígidas, inexiste essa forma de controle e, em outros países de constituições flexíveis, esse controle está, no entanto, presente no controle jurisdicional da constitucionalidade das leis.

É sabido que a necessidade do controle da supremacia da Carta Magna encontra suas justificativas ou fundamentos primários em duas circunstâncias historicamente objetivas e  inegáveis.

Primeiramente o reconhecimento desde a Antiguidade, da existência de formas normativas de hierarquia superior, cuja continuidade cumpria preservar, conforme assinala Nelson Saldanha; em segundo lugar, a pluralidade de fontes judiciais normativas e ordenadoras que caracteriza as modernas sociedades complexas.

Como todas tais fontes normativas estão igualmente habilitadas, pela lógica intrassistêmica do ordenamento, a emitir, simultaneamente ou sucessivamente, as regras válidas e imperativas, destinadas ao disciplinar orgânico e ao regular funcionamento da macroestrutura social, é inevitável que entre os disciplinamentos positivos ocorram confrontos e paradoxos, para cuja solução a Ciência do Direito elaborou, no passado, técnicas eficazes para superar o conflito internormativo, como a prevalência da norma de superior hierarquia; a primazia de norma mais recente ou a prioridade da norma de natureza especial.

De fato, a atividade dessas múltiplas fontes normativas se encaminha a todo universos componente da sociedade humana, que se dirige aos padrões obrigatoriamente constitucionais, considerados como grandes linhas estruturantes, não só pelos aspectos jurídicos, mas principalmente, dos aspectos políticos da vida social. Portanto, a Carta Magna funciona como paradigma de validade para todos os atos que lhe são posteriores.

Portanto é fundamental, nesse contexto, que a organização das normas envolva a ocorrência de desníveis normativos, admitindo-se que umas normas são superiores a outras e, que há uma norma pressuposta que é base de todas as demais, não estando esta apoiada em nenhuma outra que lhe seja precedente ou superior, essa norma pressuposta sendo chamada de norma fundamental.

A norma fundamental possui uma conotação contaminante e mágica pois nesta é que o ordenamento jurídico corporifica e unifica, e se identifica e mantém a coerência, sem a qual se esfacelaria inevitavelmente.

No entanto, nos estudos tradicionais do processo, sobretudo do processo civil, na verdade a grande matriz das disciplinas processuais, os autores sempre teorizaram sobre a prevalência da norma fundamental sobre todas as outras.

Mas, o centro das suas preocupações era a produção de leis pelo Legislativo e a atividade administrativa do Executivo.

É verdade que se prestava pouquíssima atenção à coisa julgada inconstitucional, mas já se assinalava que a coisa julgada considerada como coisa sagrada, isto é, uma vez consolidada pelo julgamento judiciário, somente mediante a rescisão em casos específicos e numerus clauses, poderia ser revisitado.

A fora tal hipótese, não haveria força jurídica capaz de desfazer, de alterar ou desconstituir aquela solução.

Na raiz dessa concepção reside a convicção de que a decisão judicial que se consolidou em coisa julgada passou por longo percurso evolutivo desde a discussão e debate, na sua formação, com plúrimas oportunidade de verificar os desvios ou teratologias, por isso mesmo que, vencidas tais etapas, teria mesmo de ficar imune aos questionamentos.

Nesse sentido, não havia a preocupação pelo menos de forma expressa com a correção ou erro, a justiça ou a injustiça da decisão, nem mesmo com a sua adequação ou inadequação aos ditames constitucionais, pois todos esses aspectos se tinham pro superados, precisamente no caminho de sua formação.

Frise-se que não havia maior atenção ao controle de constitucionalidade da decisão que transitou em julgado, pois o controle de constitucionalidade ser exercia quanto aos atos do Parlamento (leis) e aos atos do Executivo (atos administrativos), sendo raríssima a discussão de eventual incompatibilidade existente entre as decisões judiciais consolidadas com a Carta Magna vigente, a não ser, evidentemente, como argumento durante o trâmite das ações, e excepcionalmente, por meio de rescisória. 

Mas a existência de coisas julgadas inconstitucionais é bastante antiga, tanto que o mestre português Paulo Otero já tinha elaborado ciosa monografia, intitulada Ensaio sobre Caso Julgado inconstitucional, publicada em Lisboa, Editora Lex em 1993.

Onde elaborou oportunos questionamentos sobre a prevalência de preceitos constitucionais diante das decisões judiciais transitadas em julgado, apesar em aberto desacordo com as prescrições constitucionais, propugnando pela prevalência dessas prescrições e, anotando que as questões de validade constitucional dos atos do poder judicial foram objeto de um esquecimento quase total.

Impossível ignorar o impacto de uma coisa julgada com as prescrições constitucionais é uma questão que precisa ser encarada com estrita objetividade e recusando-se deixar de discutir, com a superficial alegação de que a coisa julgada faz presto no branco e do círculo um quadrado.

A supremacia da Constituição precisa ser afirmada, mesmo quando a infração a esse superior valor político decorre de um pronunciamento judicial consolidado.

É curial o reexame com maior verticalidade, do problema tormentoso que nesse fenômeno se inscreve, afronta certas noções de ampla aceitação e maior resistência, dado o permanente prestigio da coisa julgada entre os doutrinadores e juristas que o proclamam voltado, em linha de princípio, ao relevante propósito de assegurar para o futuro e mesmo de forma ilimitada no tempo, a força vinculante de uma solução jurisdicional exarada em determinada relação litigiosa concreta, desde que tornada definitiva, ou seja, quando não há possibilidade de revisão através de recurso, consoante assentado em lições doutrinárias que sempre mereceram grande respeito.

Não há exagero em cogitar que o instituto da coisa julgada na doutrina tradicional adquiriu feições de autêntico dogma, isto é, de uma verdade que não se põe em discussão, axioma teológico, tal como diziam os romanos: res judicata sacra est.

A base desse axioma era principalmente a intensa necessidade de estabilização das relações sociais, políticas e econômicas e de pacificação dos conflitos, através da via jurisdicional, assegurando-se ao vitorioso na demanda a certeza da imutabilidade de sua vitória, em todo tempo futuro, assim lhe proporcionando a tão sonhada segurança jurídica que era, e ainda é, o prior pilar de ferro que sustenta o instituto da coisa julgada.

O dinâmico cenário contemporâneo de discussão da coisa julgada e de seus significados remonta aos eruditos estudos do jurista alemão Savigny que no século XIX, que mostrou a exceptio rei judicate do Direito Romano, ao contrário do que até então se chamava, não possuía apenas o efeito negativo de impedir a repropositura de ação idêntica a uma anterior já julgada, mas somava a ficção de verdade jurídica, inerente ao julgamento, por isso, que tutelava nos tempos romanos, o próprio conteúdo do julgado, isto é, valia eficazmente contra todos, ou seja, erga omnes.

Embora se deixando suspensa a questão de ser a sentença uma propositura lógica ou um ato de vontade. Tal questão parece continuar em aberto…

Posteriormente a evolução alcançada com as contribuições dos italianos Francesco Carnelutti e Enrico Tullio Liebman sobretudo este derradeiro, que teve forte influência na conformação do sistema processual civil brasileiro, e fez surgir doutrinas reexplicativas da coisa julgada, que foi atuando também na elaboração dos Códigos de Processo, tanto na Itália como no brasil, até o advento de propostas até mais ousadas contra a aludida sacralidade da coisa julgada.

Abalando-se definitivamente a sua intangibilidade e agregando-se certas fragilidades que redundou ao que chamamos de relativização da coisa julgada que galgou ilustres adeptos como Humberto Theodoro Júnior.

Em contraponto, Celso Neves dedicou à res judicata relevante estudo que se tornou referência e no qual explica seus fundamentos históricos e sociológicos, os seus aspectos culturais e a sua premente função estabilizadora do Direito.

Egas Dirceu Moniz de Aragão, igualmente, trouxe preciosa obra jurídica bem como José Ignárcio Botelho de Mesquita que era um incansável defensor das virtudes do processo civil, traçando severas críticas à fase que intitulou de estação de caça à coisa julgada, que para ele, representava o último bastião em defesa das liberdades civis contra as arbitrariedades do Estado no exercício jurisdicional.

Igualmente Teresa Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina nos iluminaram o tema registrando com pertinência que em passado recente a intangibilidade da coisa julgada se revestia de mística auréola de santidade. Enfim, retornava-se à sacralidade romana inicial.

Em aperta síntese pode-se afirmar que o trajeto evolutivo e histórico da coisa julgada desde a sua compreensão absolutista e praticamente sua mitificação, conforme alguns doutrinadores ainda a denominam, de acordo com a sua indiscutibilidade e imutabilidade da res judicata provém em primeiríssimo lugar, na antológica tradição, pois no Direito Romano.

A concepção romanista da coisa julgada passou para os sistemas jurídicos que recepcionaram a herança do jus romanorum, bastante lento e fragmentado e desuniforme processo de formação de ordens legais do Medievo Europeu continental conforme o historiador Johaj Glissen explicou e interpretou a forma completa.

O referido estudioso bem anterior às leis romanas dominarem os extensos territórios na Europa e, nestes implantarem suas instituições militares, administrativas, linguisticas, religiosas e sociais, os povos nativos a quem os romanos chamavam de bárbaros, e que ali se encontravam possuíam naturalmente sua cultura, costumes e cultivavam suas tradições que espelhavam seus modos de organização social e econômica, que foram mais ou menos amalgamados com os dos seus conquistadores, os romanos.

Desta forma, se iniciou a primeira famosa fase de recepção do romanismo que embora fosse acidentada fora em verdade bem constante e duradoura, produzindo certas instituições que absorveram as coisas romanas, e ao mesmo tempo, em certa medida, conservavam e harmonizavam-se com os traços autênticos ou as raízes originais nativas.

Percebe-se, porém, que tais influências vieram atuando desde os primeiros contatos com os romanos com tais povos bárbaros, embora muitos destes, não tivessem nem desenvolvido a escrita, eram agráfos, mas com a adoção da escrita veio a ser o divisor de macroperíodos, tais como pré-história e história. Há de se lembrar que as experiências jurídicas vivenciadas pelos povos que desconheciam a escrita, não foram registradas, o que torna o tema ainda mais interessante.

Também cumpre realizar uma referência breve quanto à influência das instituições romanas em geral, na ilha britânica, onde os formalismos escritos e os solenimos de Roma não foram absorvidos, pelo menos na extensão com que o foram no continente, tanto que ali, na ilha, floresceu uma outra família jurídica que veio a ser denominada common law, conforme explanou René David.

Existiram outras instituições inglesas também restaram de certa forma imunes à influência de invasores romanos e conforme narrou Churchill que fora o primeiro-ministro britânico durante a segunda grande guerra mundial, e também foi um ilustres historiador, mostrando como o sistema de liberdades e direitos se afirmou contra a Coroa ou contra o Estado e, não por concessões ou benesses deste; parece mesmo que as ideias de liberdade fixaram historicamente na ilha, onde madrugaram as estruturais que viriam a gerar, nos séculos seguintes, noções de grande utilidade ao projeto de controle das prepotências dos príncipes e, isso no alvorecer do século 13.

De toda forma, deve-se anotar que o dogma da supremacia da coisa julgada, de origem sabidamente romana, representa possivelmente o último instituto herdado do Direito pré-moderno a ser tocado pelos ventos da modernidade jurídica, pois já não provoca mais tanto espanto a superação do consensualismo contratual e da autonomia da vontade, considerados por longo tempo, como concepções jurídicas, capazes de promover o bem de todos, ou mesmo realizar a melhor justiça nas relações negociais, por isso que consideradas a pedra fundamental do sistema social que veio a ser reconhecido como liberalismo.

Cogita-se, por outro viés, que a fragilização desses conceitos privatísticos, antes conceitos intocáveis, convém repetir, veio da afirmação das teorias explicativas de obrigações quase-delituais, cujas origens se chama nas elaborações doutrinárias dos juristas mais impressionados com a submissão da pessoa do devedor à tirania do credor.

Essas teorias desmistificaram completamente a suposição do contrato perfeito, fazendo desfilar nua na passarela da verdade a ficção de equidade entre o benefício do contrato e o consentimento do obrigado.

Pode-se até afirmar que evolução similar há de ser encarada na atual concepção de que a coisa julgada, quando formada em adversidade à Constituição, deve ceder-lhe o passo, sob a pena de se ter de afirmar que a Constituição teria perdido o podium e deixado de ser Lex Suprema, mas quem teria tamanha ousadia?

Inegavelmente foram os juristas romanos para grande maioria dos doutrinadores onde a coisa julgada tinha efetivamente enorme significado essencialmente negativo, ou pelo menos, tecnicamente obstativo da possibilidade de reprodução de uma mesma ação. Embora depois se tenha procurado inculcar nesse instituto uma função positiva, atribuindo-se-lhe também a força de proteger o direito que fora reconhecido e provado na decisão.

Afinal, o decisum criava o direito do caso concreto e, tinha, nos limites da lide, portanto, no limite da questão de mérito, a mesma força de uma lei, como veio a ser assentado e positivado posteriormente.

O art. 478 do CPCq1973 é clássico exemplo dessa orientação que preconiza a supremacia da coisa julgada, pautado no fetiche jurídico que a lei representava e ainda representa, torna-se fácil compreender sua mitificação até os píncaros das alturas. Parecendo de fato uma heresia investir-se contrariamente a um dogma, ou mesmo, a mera tentativa de colocá-la sob questionamento.

O superficialismo dessa proposição fica bem visível, quando se examina uma situação concreta em que um contrato, uma lei ou uma decisão judicial transitada em julgado se evidenciam afrontosamente infringentes de certos valores superiores tal como a justiça, a equidade e a Constituição.

O sistema de liberdades não acarreta as prerrogativas e direitos dos indivíduos a uma altitude olímpica, onde não podem ser alcançadas pela realidade da vida social ou onde ficam a salvo de cotejos com outros valores do sistema social.

A descoberta ou melhor ênfase do sentido positivo da res judicata deve-se a Savigny, conforme já destacado, mas não se deve esquecer que tal função positivo era acessória e auxiliar daquela, que era negativa, e que tal positividade sempre fora considerada em menor grau, porquanto do efeito impeditivo de repetição das demandas, foi o que empolgou e ainda empolga os estudos da coisa julgada.

Tal objeto é de merecida importância e se desenvolveu em paralelo aos estudos histórico-jurídicos, que esboçou uma verdadeira teoria para se afirmar a identidade de ações, exigindo-se que tenham as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, sendo certo que a análise de cada um desses elementos tem as suas próprias singularidades.

E, às vezes, os horrendos tormentos. Destaque-se que nas legislações medievais, é ainda Glissen a certeira observação, com o enaltecimento da coisa julgada se fez de maneira soberba e exaltada, procurando-se atribuir-lhe uma força definitiva contra quaisquer inovações posteriores, quaisquer que fossem, mas principalmente a inovação normativa, vista coerentemente com a mais perigosa adversária da res judicata: as Ordenações do Reino de Portugal para citar apenas os grandes monumentos da retórica jurídica, que vigoraram por tanto tempo no Brasil que são o exemplo mais próximo e gritante dessa exaltação.

Cumpre ainda destacar que ainda nos dias de hoje, há previsão constitucional vigente que dispõe que nem a lei poderá desconstituir a coisa julgada. Mas, o CPC/2015 prevê expressamente a modulação dos efeitos da decisão de controle de constitucionalidade.

A ideologia de enaltecimento da coisa julgada que fora francamente assumida pelo Código Buzaid, trazendo as notas de imutabilidade e indiscutibilidade que lhe são peculiar e positivas no artigo 467, em harmonia, aliás, com a doutrina consagrada, dando-lhe espécie de supremacia ou imunidade quanto ao tempo e aos eventos posteriores.

Aliás, noção que apesar de muito acalentada é contrária à realidade social e a natureza das coisas materiais e incorpóreas que nesta se produzem.

Na acepção absolutista de coisa julgada somente seria aceitável, pelo menos em tese, nos casos tópicos e singulares em que sua eficácia se esgotasse instantaneamente, mediante a prática de um só ato, pelo sujeito passivo da obrigação jurídica e acertada sob o seu comando.

A metatemporalidade da coisa julgada bem como sua força e eficácia no tempo indefinido no futuro, nutre ainda mais a controvérsia, quando a declaração de certeza jurídica é produzida no julgamento em que se formou, e se prolonga na sua posteridade, ou seja, quando a relação jurídica é do tipo continuativo cujo cumprimento somente se exaure na sequência do tempo.

Realmente não se pode ocultar que quando a solução final judicial incide sobre a relação jurídica processual cujo cumprimento se prolonga no tempo, ou seja, quando estabelece uma obrigação continuativa ou de trato sucessivo, fatalmente cairá a dita res judicata em inumeráveis e imprevisíveis alterações que pode abalar duramente seus fundamentos e suas bases fáticas e jurídicas.

Como é sabido, o tempo não para apesar de nunca envelhecer, o tempo só faz zombar das astúcias humanas que tentam aprisioná-lo em casamatas blindadas que os ingênuos constroem, na vã tentativa de esconder-se do tempo.

O tempo, conforme já disse Jorge Luís Borges é o único problema metafísico do homem. Diante dele, surge a questão de como essas alterações históricas inevitáveis atuam sobre a coisa julgada anterior a estas, ou se a res judicata era inexpugnável, pairando acima e além dos efeitos dessas mudanças, sendo refratária à sua força e indiferente ao poder modificativo e sublime diante da voragem do tempo.

São conhecidos dois modelos clássicos de controle de constitucionalidade das leis e de atos normativos do Poder Público e geralmente são analisados com precisão e grandes detalhes pela doutrina.

O primeiro modelo é o político que é exercido pelo Legislativo ou órgão específico escolhido e destinado pelo Parlamento em colaboração com o poder Executivo e, o segundo modelo judicial, nos moldes difuso e concentrado, o exercido por órgãos do Judiciário ou por Cortes especiais, geralmente de composição mista, integradas por magistrados de carreira e juristas notórios, quase sempre com investiduras limitadas no tempo.

Em nosso país, o controle adotado jurisdicional de constitucionalidade de leis e de atos da Administração Pública, se exerce tanto por via de exceção, que é o difuso, diante de qualquer órgão do Judiciário, como também, por via de ação, que é o controle concentrado, exclusivamente perante o STF através de ação especial, prevista diretamente no texto constitucional, art. 102, II, por isso que se afirma que se trata de sistema complexo, peculiar ou cumulativo que consorcia os dois métodos de procedimento.

O controle de constitucionalidade das decisões judiciais possuem a mesma natureza e a mesma lógica além da mesma finalidade que é o fiel controle sobre quem exerce os poderes estatais, já que estão consagradas como características do Estado Democrático de Direito, garantir a prevalência da Constituição Federal, e promover a supremacia diante de quaisquer outras normas jurídicas e ainda estabelecer a coerência interna do sistema jurídico.

Através do controle difuso, deverá o órgão jurisdicional no exame objetivo de cada caso concreto uma vez o processo regularmente instaurado, onde há o direito da parte relacionado com a aplicação de dispositivo constitucional, negar a aplicação imediata da norma jurídica reconhecida por ser inconstitucional.

A doutrina constitucionalista seguida no direito pátrio devido à influência de Rui Barbosa, acolheu as diretrizes essenciais que foram desenvolvidas no EUA e, no que respeita diretamente ao controle da constitucionalidade das leis, a construção devida ao Juiz John Marsall, da Suprema corte daquele país, que dizia enfaticamente que o papel do Judiciário no exercício de tal missão; Seria negar aplicação de leis inconstitucionais e consequentemente confirmar a supremacia da Constituição dentro da ordem jurídica.

Cabe registrar, no entanto, que as constituições brasileiras antes de 1988 nunca atribuíram, em termos expressos e inequívocos, o exercício do controle difuso da compatibilidade constitucional das leis aos órgãos jurisdicionais de primeiro grau, mas apenas e somente aos tribunais, tendo-se alvitrado, durante a vigência da Carta Constitucional de 1891, que somente às Cortes de Justiça se reconhecia esse poder.

Porém, tal observação não deve ser acatada sem algumas reflexões, tendo-se em vista o art. 60, III da primeira carta constitucional republicana.

Nem se exigia, nessa ocasião o quórum especial para a declaração de inconstitucionalidade de lei, entendendo-se que esse  aspecto é somente uma técnica de julgamento. Mas os doutrinadores já não aceitavam sem oposição que a decisão do Tribunal, para declarar a inconstitucionalidade de uma lei pudesse ser adotada por maioria simples.

E, assim veio o Decreto 958 de 1902 depois renovado pelo Decreto 1939 de 1909 passou a exigir para o pronunciamento de inconstitucionalidade o chamado quorum qualificado de dois terços dos juízes das Cortes, o que permaneceu até a Carta Política de 1934, que, em seu artigo 179, instituiu finalmente o quorum da maioria absoluta conforme consta atualmente no artigo 97 da CF/1988

Ainda sobre o controle difuso da constitucionalidade, o Ministro Célio Borja observara que as Constituições brasileiras não contêm disposição outorgante de tal função aos órgãos inferiores da jurisdição. Mas, tal observação deve ser lida com cautela, pois o art. 60, III, a da CF de 1891 dispunha competir aos Juízes e aos Tribunais federais processar e julgar as causas em que algumas das partes fundar a ação ou a defesa, em disposição da Constituição Federal.

Realmente existe uma explicação histórica para o motivo da Carta Constitucional de 1891 ter sido assim, principalmente em razão ser inspirada diretamente na Constituição Norte-americana, não se tenha incluído expressamente um dispositivo que autorizasse a todos os órgãos da jurisdição a inaplicação da lei considerada incidentalmente inconstitucional, reproduzindo a norma do VI, segundo parágrafo, da Constituição Americana que lhe serviu de modelo e que assim enuncia;

Esta Constituição e as Leis dos Estados Unidos que, na sua conformidade, vierem a ser feitas, bem como os tratados feitos ou que se vierem a fazer; sob a autoridade dos Estados Unidos, serão a suprema lei territorial e os Juízes em todos os Estados lhes estarão submetidos, ainda que a Constituição e as Leis de qualquer Estado disponha em contrário.

Por conseguinte, entre nós, o controle difuso da constitucionalidade, exercido pelos órgãos jurisdicionais de todos os graus, não resulta de uma norma jurídica constitucional positiva, qual se dá com esse mesmo controle pela Cortes de Justiça, mas sim do princípio lógico- jurídico que afirma a supremacia da Lei Fundamental.

Mas, além desse fundamento essencialmente doutrinário e histórico, de si já bastante para justificar o controle difuso da constitucionalidade das leis, outros podem ser igualmente considerados, como o da amplitude da jurisdição e o de que a Carta Magna, do mesmo modo que as leis que lhe são inferiores e posteriores, editadas em conformidade dos seus ditames, reconhece direitos, assegura garantias e integra a ordem normativa positiva, daí a sua invocabilidade imediata para reger situações concretas de conflitos jurídicos.

Referências

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Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Análise da eficácia da coisa julgada continuativa diante de mudança de jurisprudência constitucional brasileira. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/analise-da-eficacia-da-coisa-julgada-continuativa-diante-de-mudanca-de-jurisprudencia-constitucional-brasileira/ Acesso em: 22 nov. 2024