Algemas, STF e “Varas especiais para abuso de autoridade”
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
O Min.Gilmar Mendes, em um debate promovido pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, sugeriu a intimidante idéia de se criar varas especializadas, na Justiça, para combater abusos de autoridade em investigações policiais. A afiada espada penderia, ameaçadora, sobre a cabeça de qualquer autoridade policial e seus subordinados, na hora de cumprir um mandado ou simplesmente remover um preso, tendo em vista a elasticidade do termo “abuso”. Como tem havido, realmente, algum excesso nessa “novidade” de, pela primeira vez no país, a justiça criminal pelo menos “ameaçar” os poderosos — é mais ameaça do que outra coisa —, alguns profissionais do direito aplaudiram a idéia. Juízes e promotores “abusadores”, presumo, teriam que ser julgados pelo Tribunal de Justiça.
O que o país tem que fazer, singelamente — e isso o STF, em feliz improvisação, fez, em decisão de 7-8-08 — é corrigir os excessos. Como, por exemplo, o uso de algemas quando o suspeito, indiciado ou acusado não oferece nenhum perigo de fugir ou atacar pessoas ao seu redor. Outro excesso — não consciente, tenho a certeza — está na alegada autorização judicial genérica, em bloco, para invasão da privacidade alheia, sem que a polícia fundamente, convincentemente, porque pede a escuta telefônica ou acesso às contas bancárias de alguém, em particular, ou de grande número de pessoas. Mesmo que isso implique em um bom gasto de tempo do magistrado, já assoberbado com sua rotina profissional, é preciso que tais solicitações sejam bem examinadas pelo juiz. Isso porque o policial que pede autorização para “grampo” pode não ser um santo, com a presunção de que vai mergulhar nos segredos da vida alheia apenas com a idéia nobre de instalar na terra uma justiça perfeita. Ele até pode ser um santo, mas há que pensar, também, na hipótese, mesmo longínqua, de que um seu subordinado possa fazer mau uso desse grande poder de conhecer a vida íntima das pessoas. Permitir quase livre acesso à privacidade de alguém abre as portas para delitos vários, inclusive a chantagem. Não sei se houve, concretamente, autorizações imprudentes, mas, de qualquer forma, foi oportuna a lembrança do STF de, em um caso de júri, definir seu entendimento sobre o uso de algemas — uma das formas de abuso —, transformando a decisão em súmula vinculante.
Biógrafos de J. Edgar Hoover explicam sua longa permanência na chefia do FBI — 48 anos! — não apenas pela sua inegável eficiência no cargo, mas porque sabia guardar muito bem, com discrição, os segredos documentados de políticos importantes. Se ameaçado de destituição do cargo, poderia revelar fatos capazes de derrubar chefes de estado. Daí a sua condição de intocável. Somente a morte poderia arrancá-lo do poder. Como sua longevidade foi um tanto generosa demais — morreu com 77 anos — para uma pessoa muito tendenciosa, será o caso de se desconfiar que até a Senhora Morte tinha seus segredos inconfessáveis, bem guardados nos arquivos de Hoover. A política, talvez mais que qualquer outra atividade lícita — hum… — dificilmente pode ser exercida em plenitude de santidade.
O uso de algemas tem sido objeto de controvérsias nos EUA. Alguns tribunais entendem que o uso delas, em pessoas que não oferecem perigo físico, se justifica pelo efeito educativo. Transmitiria ao povo a idéia de transparência, da igualdade de ricos e pobres perante a lei e a noção de que o crime não compensa. John Rigas, um sexagenário de cabelos totalmente brancos, e seus dois filhos, os três condenados por pesadas fraudes empresariais — Adelphia Communications — foram fotografados e filmados na rua com algemas. Os americanos chamam isso de “perp walks” — abreviatura de “perpetrator walks”, caminhadas de criminoso. Essa informação eu obtive no excelente site de Luiz Carlos Azenha, “vi o mundo”, que recomendo como boa fonte de informações.
Timothy McVeigh, que explodiu um edifício na cidade de Oklahoma, também foi filmado usando algemas quando, no momento, não oferecia perigo de reação. Seriam elas uma espécie de satisfação à opinião pública. Se, por remota hipótese, Osama Bin Laden fosse um dia preso e levado aos EUA, certamente apareceria algemado, mesmo desnecessariamente, rodeado que estaria por duzentos policiais. Sem elas, pareceria um “personagem importante”. Com as argolas, a imagem seria própria de um criminoso. Explica-se: o que entra pelos olhos pesa mais que o que entra pelos ouvidos.
Advogados de júri, no Brasil — instintivamente bons psicólogos, e também espertos defensores… — compreendendo o grande efeito das imagens, lutaram persistentemente para que, durante o julgamento o réu não ficasse algemado, como que reforçando, subliminarmente, a idéia de “criminoso”. E, como disse de início, o STF no julgamento de ontem posicionou-se contra o uso indiscriminado de algemas. Anulou um julgamento do tribunal popular só pela permanência das algemas, rejeitando a justificação da juíza que presidiu os trabalhos. A juíza justificou o uso delas alegando que só havia dois policiais no tribunal para manutenção da ordem. Com a anulação do julgamento, um pedreiro, acusado de homicídio qualificado, condenado a 13 anos e prisão, será submetido a novo julgamento.
Prima facie, pode-se considerar um exagero a decisão da nossa alta Corte de Justiça. Anular todo um julgamento só porque o réu estava algemado? Isso influiria tanto nos jurados, a ponto de obliterar o senso de justiça dos juízes de fato? Os jurados seriam tão levianos, tão pouco inteligentes, a ponto de desconsiderar toda a prova dos autos só por causa do detalhe? Um acusador poderia argumentar, em sentido inverso, alegando que a presença de algemas pode até favorecer o réu. A cena poderia, em tese, inspirar nos jurados sentimento de dó, de pena de um homem cabisbaixo, indefeso, algemado, simples pedreiro sendo acusado por um promotor que certamente teve uma vida muito mais fácil que a dele. A acusação ficaria prejudicada com tais sentimentos dos jurados em favor do réu.
Visto o caso em si, isoladamente, poder-se-ia dizer que a alta corte exagerou ao anular o julgamento pelo mero detalhe das algemas. Mas, em uma visão mais ampla e prática, foi útil a referida decisão, em sentido geral, porque, transformada em “súmula vinculante”,serviu para comprovar que decisões judiciais, no Brasil, podem modificar procedimentos sem os demorados debates, necessários para aprovação de uma lei sobre tema controverso. Com uma simples “penada” — a súmula vinculante — o mundo jurídico ficou sabendo que o Judiciário brasileiro não admite o uso de algemas sem necessidade. Também nos EUA o entendimento majoritário é no sentido de que não pode, a polícia, avisar a imprensa que o réu Fulano de Tal vai estar algemado na rua, podendo a mídia aproveitar a oportunidade para aumentar a vendagem de jornais e revistas, ou nível de audiência de canal de televisão. Se a imprensa, por conta própria, conseguiu saber da remoção, aí nada se pode fazer porque a imprensa é livre.
Quanto à inoportuna idéia da criação de “varas especializadas para punição de abusos”, faço votos que não prevaleça. Basta a direção da Polícia Federal, ou o Ministério de Justiça, dosar o uso da restrição, porque cada caso é um caso. Não convém criar uma “vara especializada” que, só pelo nome, inibirá demais a atividade policial no combate à criminalidade. Ontem, dia 7-8-
Se prevalecer a má-idéia da ‘vara especializada”, o resultado será uma progressiva intimidação dos policiais em tomar medidas de segurança, ou meramente investigativas. Sempre haverá um risco de sua atuação vir a ser considerada “abusiva”, tendo que se defender em um inquietante processo criminal. E se não algemar e o réu fugir ou matar com a arma de um policial haverá alguém censurando o “descuido” do policial. Punido por agir ou não agir.
A criação de uma “vara especializada em punir abuso de autoridade” é prejudicial pela própria denominação. Favorece, indiretamente, o lado mais criminoso da sociedade porque inibe os encarregados da repressão penal. Se algum parlamentar propusesse uma “vara especializada para abuso de advogados”, ou “de erros médicos”, por exemplo, os órgãos de classe dessas profissões se ergueriam indignados frisando a desnecessidade desse chamativo “destaque” profissional. Diriam que não seria preciso criar varas especializadas, bastando as já existentes. Tal “especialização” transmitiria a falsa idéia de que advogados e médicos são especialmente temíveis e suspeitos de abusos; “tanto assim que foram criadas varas só para eles”.
A coletividade aguarda, confiante, que o criador dessa idéia má-idéia apresente outras, bem mais necessárias e de sentido contrário. Aquelas que apressem a solução dos processos criminais contra os grandes figurões que sabem se apropriar de grandes massas de dinheiro público e só são punidos pelas notícias da mídia. Para eles o Código Penal é algo próximo da ficção.
(8-8-08)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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