Direito Constitucional

A pessoa e sua humana dignidade

 

 

A palavra pessoa provém do latim – persona – formada pelo prefixo de superlatividade “per”, ao qual se apensou “sonare”.


Per + sonare significava para ressoar, fazer eco.


Designava uma espécie de máscara que os antigos atores teatrais em Roma utilizavam durante a representação. Na máscara lâminas de metal geravam um efeito acústico que permitia a voz do ator ressoar cristalinamente nos amplos anfiteatros.


É claro que as vozes dos deuses, assim como as dos homens comuns teriam de soar distintas para que pudessem ser reconhecidas. Conseqüentemente, havia a necessidade de uma máscara para cada papel.


Com o passar do tempo, o vocábulo “persona” passou a designar o próprio papel representado pelo ator.


Como o ser humano, como um ator, desempenha vários papéis durante a sua vida, “pessoa” passou a designar o feixe de papéis desempenhados por um indivíduo. Este conjunto de papéis compõe uma unidade, e cada um dos papéis interage e afeta uns aos outros: um mesmo indivíduo desempenha os papéis sociais de pai, filho, pagador de impostos, membro de uma categoria profissional, membro de um clube recreativo etc. E cada um desses papéis é determinado por uma série de qualidades institucionalizadas.


No Direito os papéis institucionalizados adquirem contornos certos e seguros. Quando o indivíduo é capaz de exercer vários desses papéis, o Direito capta-o como um conjunto de papéis institucionalizados que entre si interagem. Surge daí a pessoa física.

 

O Novo Código Civil brasileiro dedica todo um capítulo aos assim chamados direitos da personalidade. Sendo que a essa categoria de direitos o legislador se reporta pela primeira vez, seria isso conseqüência de uma mudança paradigmática do Direito civil – que estaria reconhecendo a proteção da pessoa como valor máximo.

 

 

Dignidade da pessoa humana.


Mas essa pessoa assume a posição central no ordenamento jurídico apenas de forma retórica, pois a tutela que se lhe dá ainda visa protegê-la apenas pelo que ela tem e não pelo que ela é. Ter e ser são verbos que, na perspectiva civilista tradicional não se confundem, pois para que o ser humano tenha relevância ao sistema, para que por este seja considerado sujeito de Direito – urge que tenha patrimônio.

 

Era para, em pleno século XXI, estar-se convicto de que o ser humano, este ser de carne e osso, que pensa, que sofre, que sente, que se emociona, que trabalha, que respira – tem valor por ele mesmo. Em verdade, só o fato de hoje estar-se ainda tentando repersonalizar o Direito mostra como este petrificou-se, atrelado a heranças que, há muito, já deviam ter sido descartadas, ter sido deixadas para trás. O fato de ainda não se ter a vida – em especial a humana – como o bem mais precioso sobre a face da terra; o fato de ainda se escravizar ou exterminar centenas de milhares de seres humanos para se apropriar de “riquezas” como terra, ouro, pedras preciosas – que aí estão há bilhões de anos e por outros bilhões de anos aí permanecerão; o fato de ainda não se perceber que aquelas vidas em relação a estas “riquezas” eram extremamente efêmeras, e que jamais serão repostas; o fato de se eliminar vidas preciosas para se assegurar a continuidade do uso de agentes poluidores, que destroem a vida; o fato de não entendermos que não somos nunca donos de nada – nem do nosso corpo, pois a morte nos aparta de tudo que pensávamos possuir e deter a propriedade; tudo isso nos mostra o quão distante estamos da sabedoria, o quão distante estamos de nos conscientizarmos da realidade, o quão distante estamos de reconhecer o sagrado valor da nossa própria vida – pois quando negamos esse valor à vida de nosso semelhante, negamos a nós mesmos, porque outrem, mais forte, surgirá, inescapavelmente, com o mesmo argumento, para escravizar-nos ou exterminar-nos.


Mas será que jamais a raça humana sairá desse estágio do ter? Será que o homem estará sempre a eleger como seu “deus” um bezerro de ouro – isto a propriedade, o ter? O fato de não se ter feito um deus de argila (que simbolizasse a nossa própria “matéria prima”), ou de pedra (de modo que apenas desse forma a esse “deus” imaginário) é emblemático, pois denuncia a nossa eterna atração pelos falsos valores – pelo que é material e não pelo espírito; pelo que é morto e não pelo que tem vida. Já admoestava Sócrates: “Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos dos vossos corpos e dos vossos bens do que da perfeição das vossas almas, e de vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida privada”.


Infelizmente valorizamos o que nós mesmos convencionamos ter um
altíssimo valor, mas que ou estará sempre aí, ou prejudica o meio ambiente ou, na verdade, só possui um valor virtual, enganoso, ilegítimo, suposto, ilusório.


O que é valioso? Algo que é caro, custoso, dispendioso? E quanto custa uma vida humana? É comum a resposta ser que ela não tem preço. Só que para o pensamento que efetivamente reina há milhares de anos entre os homens, ela nada vale precisamente porque não tem preço. Ou seja, para o pensamento patrimonialista, se não é possível com a vida nada entesourar, se não é possível tão-somente com ela demonstrar poder, então a ela de nada serve, ela de nada vale.


Porém, existiria algo mais insano do que, diante da iminência de uma fortíssima explosão, um homem querer proteger uma valise com milhões de dólares com seu próprio corpo? Mas é desta forma que o homem tem procedido: dando extrema importância ao que nenhum valor tem diante de uma única vida humana.
Dinheiro, ações,? Quando as bolsas caem vertiginosamente constata-se que aquilo era só papel. Metais ditos preciosos têm valor? Só enquanto o próprio homem não for obrigado a desvalorizá-los em virtude de contingências econômicas.


Com os bens materiais é muito mais fácil e possível comprar o mal do que o bem. O bem, não raro, nos vem de forma gratuita, enquanto o mal é sempre dispendioso. Numa guerra (ou melhor, numa invasão) como a que assistimos no Iraque, compra-se mortes e destruições com bilhões de dólares mensais; enquanto o bem é ofertado – desinteressadamente.


Quanto custavam os ensinamentos de Sócrates? E os ensinamentos e os milagres de Jesus? Quantas barras de ouro foram necessárias para pagá-los. Quantos bilhões, trilhões foram dispendidos, na moeda da época, para comprá-los?


Nos diz Tercio Sampaio Ferraz Jr, em seu livro Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação: “Quando estamos doentes e precisamos ser operados, procuramos um médico e não um enfermeiro (o que é claro, não garante uma boa operação, ao menos confere ao conteúdo da expectativa certa estabilidade: problema da medicina socializada e despersonalizada)”.

 

A expectativa que temos é que com dinheiro podemos pagar o melhor atendimento e a cura. Mas, com os bens materiais não compramos a nossa saúde, não compramos a nossa segurança, não compramos a nossa paz interior, não compramos, para nós mesmos, o saber.


A dificuldade axiológica quanto à vida humana reside no não desenvolvimento do amor no coração do homem. E não há amor no coração do homem porque este é ignorante. Amor e ignorância são adversos: não se coadunam, não se juntam, não se reúnem, não se incorporam. Onde há a ignorância inexiste amor. Pode haver concupiscência, sexo, libidinagem, pornografia – jamais amor.


Amar é sabedoria. E o Sábio dos sábios é o próprio Amor.

 

E para que haja amor é primordial que haja respeito. Quem ama respeita o ser amado. Conseqüentemente, é por estar desprovido de amor que o homem – este ser ignorante – não dá a si mesmo valor, nem valoriza a vida de ninguém; não respeita a quem quer que seja pois a si mesmo não se respeita.


Sem nenhum amor e com inesgotável ignorância o homem só valoriza em sua vida as “suas” posses. É o ter prevalecendo integralmente sobre o ser.


A sua própria vida nada valerá se ele se vir desprovido de tudo que ele (imagina) ter. Por conseguinte, não será à vida de quem quer que seja que ele dará importância. Pois se o que importa é o ter e não o ser, e a vida não tem preço, ela, conseqüentemente, não é importante.


Mesmo quando o ser é vendido o que é axiologicamente mensurado é a sua capacidade de trabalho, ou a sua capacidade de proporcionar prazer pois estas podem reverter em riquezas, em bens. A vida humana, em si, não é digna de nenhum apreço, nenhuma consideração, nenhuma estima.


Mas é a vida o grande milagre, o grande tesouro. É claro que afirmo isso pensando na vida de uma alma preciosa que tive o privilégio de pelo menos vislumbrar. Obviamente, quem vive com sabedoria multiplica o milagre, esplendora o tesouro. Mas de qualquer modo a dignidade da pessoa humana devia ser efetivamente respeitada pelo simples fato de que vive – pois é na vida que reside o grande prodígio, a rara riqueza. É novidade afirmar que cada vida humana é insubstituível, que cada ser humano é único? Não. Mas será que entendemos o que é ser insubstituível, o que é ser único? Significa que eliminando-a não a podemos substituir por outra; significa que outra vida não pode ser reposta no lugar daquela, como num supermercado; que outra vida não preenche o vazio deixado por aquela, significa que nunca jamais a teremos de volta. Mas é claro que o ser ignorante, embrutecido em seus sentidos, não vislumbra diferenças, nuances, singelezas, gradações. Envolto nos véus da ignorância o homem não vislumbra o colorido da vida: só enxerga em preto e branco.


Dignidade da pessoa humana: o que significa esta expressão? O vocábulo pessoa já não recebe uma distinção redundante quando a ele apensamos o humana? Dignidade: se tem ou se é digno? Ser digno é diferente de ter dignidade? Ter dignidade é mais importante do que ser digno?


Ter dignidade parece uma idéia carregada do velho patrimonialismo, que leva o homem a crer que pode comprar quanta dignidade os seus bens materiais permitirem. Ser digno já transmite a idéia de que ou o homem se esmerou para alcançá-la, ou de que ela lhe é inata. É esta dignidade – a inata – que o Direito deve – efetivamente – começar a respeitar, proteger e assegurar a todos os seres humanos. Todos os seres humanos são dignos, independente de sexo, raça, língua, religião, opinião política e condições pessoais e sociais. Independente de ser ou não “rei da criação”, de ser ou não o único ser racional, de ser ou não o único ser autoconsciente, o ser humano é digno tão-somente porque está dotado desse bem fascinante e admirável que é a – vida.

 

 

* Lucília Lopes Silva – Formação acadêmica: Graduada em Direito pela Faculdade Cândido Mendes. Pós-graduada Lato Sensu em Direito Civil, pela ESA/OAB-RJ. Cursos de especialização na FGV Online: Direitos do Consumidor, Direitos Humanos, Direito Societário, Direito Processual Civil – Fundamentos e Teoria Geral e Atualização em Direito Processual Civil. Dados profissionais: Consultora jurídica e parecerista

Como citar e referenciar este artigo:
, Lucília Lopes Silva. A pessoa e sua humana dignidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-pessoa-e-sua-humana-dignidade/ Acesso em: 26 dez. 2024