Direito Constitucional

A impenhorabilidade da pequena propriedade rural

A Constituição Federal, no seu art. 5º, XXVI regula o regime de impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela família do titular do respectivo domínio.

Não obstante a inexistência de prescrição de condições para o asseguramento de tal garantia, a experiência tem revelado que pululam criações judiciais e doutrinárias apondo requisitos à margem de semelhante previsão.

De fato, percebe-se que, em se tratando de discussão a respeito da impenhorabilidade da pequena propriedade rural, amiúde são praticadas incorreções, via formulação de pensamentos contra, substitutivos da Lei Maior, criando de maneira avulsa imaginados direitos.

Verdade que têm surgido interpretações da norma em evidência de molde a admitir, através de mágicas (manobras intelectuais), “vulneração científica” abusiva da Constituição ou subversão da ordem jurídica, criando exceções imaginárias incomportáveis na sua análise e aplicação.

Da Impenhorabilidade e seus efeitos.

Para o Min. SALOMÃO (STJ), “decisão do TJPR foi acertada, pois a regra é a impenhorabilidade, devendo suas exceções serem interpretadas restritivamente, haja vista que a norma é voltada para a proteção da família e não do patrimônio do devedor. Cabe ao credor provar que a pequena propriedade rural é penhorável” (“in” Direito Agrário).

Essa prova, normalmente não se produz.

Em igual senso decidiu o mesmo STJ, através de exposição autorizada, por notável jurista julgador, como se vê:

“Quanto ao fato de a propriedade ser trabalhada pela família, há que se ressaltar que se trata de presunção juris tantum’, ou seja, admite-se prova em contrário, cujo ônus é do Exeqüente.

O Agravado, no entanto, não se desincumbiu de seu ônus.

Note-se que não se deve confundir pequena propriedade rural com bem de família.

Não há necessidade de o agricultor residir na propriedade rural.

Nesse sentido, tome-se de empréstimo trecho do voto exarado pelo eminente Des. GAMALIEL SEME SCAFF:

“As únicas condições à impenhorabilidade são que [1] a propriedade se veja enquadrada como pequena em conformidade com definição em lei ordinária (até quatro módulos fiscais) e que [2] seja trabalhada pela família.

O fato da propriedade ser trabalhada pela família deve ser tomado como uma presunção juris tantum (admitindo prova em contrário cujo ônus será do credor/exeqüente).

Também não se deve confundir com os requisitos próprios ao bem de família, sobretudo o urbano, e equivocadamente erigir exigência inexistente na lei. Refiro-me ao fato do agricultor eventualmente não residir na propriedade rural. Isto é absolutamente irrelevante para a análise da questão?. (Resp.1.408.152-PR-Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, “web”).

Em plano seguinte tem-se que os exeqüentes ordinariamente sustentam que no caso concreto não teria havido comprovação pelo executado, da sua residência no imóvel penhorado, aspecto não estabelecido como requisito pela CF, mas insistentemente trazido a autos relativos a execuções.

Muitas vezes vêm aos autos, documentos comprobativos do uso do bem por filhos do executado e respectiva família.

Em hipótese dessa natureza igualmente incide a proteção legal da vedação à penhora, vez que evidente, natural e humano o direito de família conforme reconheceu em momento da costumada grandeza o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, como lembra o Prof. PAULO SÉRGIO PEREIRA DA SILVA in JusBrasil:

                                           “A entidade familiar abrange filho casado?

“E quando o devedor desocupa o imóvel e o cede para uso exclusivo de seu filho, já casado e que constitui outra família? Seria possível esse imóvel ser penhorado, já que o devedor ali não mais reside, mas sim seu filho, que faz parte de outra entidade familiar? (…) O art. 226 da Constituição Federal, em §4° dispõe que ‘Entende-se também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

Sobressai em tal hipótese, fato incontroverso (CPC, art. 334, III) sobretudo pela “presunção” da exploração familiar da pequena gleba.

Quanto à forma da comprovação da vivência dos filhos e netos do executado no lugar, há a argüir que, se a violação da impenhorabilidade, no caso sub examine traduz-se em nulidade absoluta, pode o vício ser alegado a qualquer tempo e comprovado por todos os meios admitidos em direito, inclusive “declarações” de terceiros.

A propósito, o Egr. STJ, proclamou:

 “a alegação de que determinado bem é absolutamente impenhorável pode ser feita a todo tempo, mediante simples petição e independentemente de embargos à execução, (R. Esp.444.131-PR, 4ª T. Rel. Min. RUY ROSADO, j. 13/5/03- DJU 4/08/03 p. 311).

          

A propósito anota THEOTÔNIO NEGRÃO, ao comentar o art. 649, do Código de Processo Civil/73, correspondente ao art. 833 – I do novo CPC:

Art. 649:3 – “Em se tratando de nulidade absoluta, a exemplo do que se dá com os bens absolutamente impenhoráveis (CPC, art. 649), prevalece o interesse de ordem pública, podendo ser argüida em qualquer fase ou momento, devendo inclusive ser apreciada de ofício? (in Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, São Paulo, ed. Saraiva, 37ª ed., 2005, p. 743).

E, se o bem é impenhorável, ipso facto é inalienável através de leilão judicial, vez que, o acessório segue o principal, neste caso, a nulidade da penhora.

Ao longo de curso de procedimentos, reiteradamente são insinuadas hipóteses relativas a: primeiro, efeitos de eventual contratação de hipoteca sobre o imóvel; segundo, o fato de o executado ser proprietário de outro imóvel.

De fato, cuida-se nas hipóteses referidas, muitas vezes de execução de cédula relativa a empréstimo pessoal de molde a revelar o subterfúgio pungente a decorrer de pressuposição inadequada, a revelar insensatez.

Lembra-se, em tese, que eventual gravação do bem em hipoteca não produz efeitos frente à sua impenhorabilidade, sobretudo porque suposta inclusão da propriedade em pacto de hipoteca, ao contrário do que se alega amiudamente contra o executado, não implica renúncia à garantia constitucional (de voto a propósito, do Min. FACHIN, acompanhado pelos Ministros DIAS TOFFOLI, CARMEN LÚCIA, MARCO AURÉLIO, RICARDO LEWANDOWSKI e ROSA WEBER).

Enfim, se há alguém que atente em caso assim, contra o seu próprio direito seria o exeqüente, que atua, naturalmente, de molde a fazer presumir que não é razoável aceitar constrição (penhora) a envolver coisa impenhorável.

Em conclusão tem-se que resta destacar o tema relativo à comezinha presença nos debates, de exigência de propriedade única para ser garantida pela impenhorabilidade.

Existem decisões judiciais contraditando toda a jurisprudência, toda a doutrina, e deformando a Ordem Constitucional, assim por exemplo:

“(…) ponderando ademais a inexistência de documentos aptos a comprovar que o imóvel constrito esteja acobertado pelo manto da impenhorabilidade.”

Não padece dúvida de que tal proclamação in casu, isto é, empós da apresentação dos documentos relativos a dois imóveis do executado, refoge ao contexto processual, causando espécie a concessão em benefício dos exeqüentes, de semelhante argumento.

Segundo decidiu o Egr. Supremo Tribunal Federal – RE 86.161/1 – GO, de 24/4/79, Rel. Min. SOARES MUÑOZ, Jurispr. Brasileira, 29/92:

“A doutrina e a jurisprudência já estabeleceram que, em qualquer processo, por mais célere que seja, ainda que preparatório ou limitado a cognição incompleta, ordinário, executivo ou sumaríssimo, qualquer juiz, em qualquer instância, enquanto já sob juízo qualquer demanda ou recurso, deve decretar a inconstitucionalidade (a qual sobreleva a quaisquer questões), ainda que não alegada (16), resolvendo o conflito em favor da norma hierarquicamente superior, principalmente quando esta se encontra na própria Constituição, que é a fonte de todos os poderes constituídos (17).

“O juiz não tem o arbítrio de deixar de lado a questão constitucional, ou as questões constitucionais, que as partes ou membros do Ministério Público levantarem. É missão sua. É dever seu. Ele mesmo as pode suscitar e resolver. Rigorosamente, é obrigado a isso. A Constituição é lei, e não lhe é dado desconhecer a lei (18)”

Impende lembrar, que o tema em evidência envolve o instituto da pequena propriedade rural, e não, o da proteção à residência do executado.

Evocam-se, então, alegações encontradiças quanto ao fato de o executado ter domínio sobre imóvel que não o penhorado.

Todavia, como já foi referido, a tese entra em conflito com a Constituição, com toda a doutrina e com a jurisprudência mais atual dos Egrs. STF, STJ, e de todos os demais sodalícios, principalmente no caso concreto em destaque, em que a soma das áreas contíguas referidas (16,94,00 ha mais 19,92,30 ha) não atinge sequer os 4 (quatro) módulos assegurados constitucionalmente e pela Lei 11.326/2006 que no Município, correspondem a 120 ha.

Inicia-se a demonstração pela posição do Egrégio Supremo Tribunal Federal:

“Ante o exposto, pode-se concluir que a pequena propriedade rural consubstancia-se no imóvel com área entre 01 (um) e 04 (quatro) módulos fiscais, ainda que constituída de mais de 01 (um) imóvel, e que não pode ser objeto de penhora. A garantia da impenhorabilidade é indisponível, assegurada como direito fundamental do grupo familiar, e não cede ante gravação do bem com hipoteca.

“Objetiva-se, assim, assentar que é impenhorável a pequena propriedade rural familiar, desde que, mesmo não sendo a única propriedade da família, constitua-se de terrenos contínuos com área total inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município de localização.

“Essa conclusão está em todo harmônica com as premissas que orientam este julgado, no sentido de que as regras de impenhorabilidade do bem de família, assim como da propriedade rural, amparam-se no princípio da dignidade humana e visam a garantir a preservação de um patrimônio mínimo.

“Nessa linha, sendo a impenhorabilidade a regra e voltando-se a norma para a proteção da família, eventuais exceções devem ser interpretadas restritivamente, como também apontou a d. PGR em parecer.” (Ac. STF, REstr. Com Agravo 1.038.507, Rel. Min. EDSON FACHIN, web).

              

Assim os demais Tribunais:

“Existência de outros imóveis em nome dos devedores. Hipótese que não afasta a impenhorabilidade reconhecida. Garantia conferida à pequena propriedade rural que não se confunde com proteção do único bem de família. Alegações afastadas..” (Agravo de Instrumento n. 4002464-85.2020.8.24.0000 Relator: LUIZ ZANELATO [TJSC]).

“Ser proprietário de um único imóvel rural não é pressuposto para o reconhecimento da impenhorabilidade com base na previsão do art. 833, VIII, do CPC. 2. Se os terrenos forem contínuos e a soma de suas áreas não ultrapassar quatro módulos fiscais, a pequena propriedade rural será impenhorável. 3. Verificado que o imóvel rural objeto de penhora tem área inferior a 4 (quatro) módulos fiscais, aliado à inexistência de prova incontroversa de que os agravantes e sua família não dependem do imóvel rural para a subsistência e, diversamente, havendo indícios da atividade produtiva exercida no imóvel, cumpridos estão os requisitos para a garantia constitucional de impenhorabilidade do bem. Agravo de Instrumento conhecido e provido.”(Ac.TJGO, Agr. Instr. 5434013.48.2020.8.09.0000, Relª. Desembargadora NORMA BRANCO FERREIRA PERILO, in web.).

“Alegação de ausência de comprovação de que os devedores não possuem outras propriedades. Irrelevância. Texto legal que não exige a existência de uma única propriedade em nome do devedor. Discussão acerca de os imóveis serem ou não contíguos. Desnecessidade.” (TJPR, Ac. 20/03/2019, Relª. Juíza Substituta DENISE ANTUNES, n. 0045087-31.2018.8.16.0000, in web).

Como observado, assim é a doutrina:

“Considerando esses conceitos e o preenchimento dos mencionados requisitos, é que a decisão do Recurso relatado manteve a impenhorabilidade do imóvel rural, asseverando que: mesmo que o grupo familiar seja proprietário de mais de um imóvel, para fins de impenhorabilidade é suficiente que a soma das áreas não ultrapasse o limite de extensão de 4 (quatro) módulos fiscais.”(TÂMARA PECINATO, A pequena propriedade rural é impenhorável mesmo que o seu proprietário tenha outros imóveis rurais? –Site MARIANA GONÇALVES, 12/6/21, Google, Microsoft).

Para encerrar, evocam-se as mais preciosas considerações científicas sobre nulidades em sentido amplo, cuja aceitação presume-se, por quem lida com atividades ligadas à Justiça.

FERRARA já dizia, em clássica lição, que o sistema jurídico não é um aglomerado caótico de regras, e acrescenta-se aqui, a tão lapidar parêmia, a de que a exegese judicial, conforme explicação do extraordinário ROBERTO LYRA (Guia de Ensino e do Estudo de Direito Penal, Rio, Ed. Forense, 1956, pgs. 43 e segs.), é um dos indispensáveis sustentáculos da ciência jurídica, incapaz, dizemos, por vocação, de revogar a ordem natural das coisas e mesmo de atentar contra o equilíbrio social através de violações da Lei.

“Nulidade é o vício que impede um ato ou convenção de ter existência legal e produzir efeito. A nulidade de pleno direito é imediata; ela golpeia mortalmente o ato logo que ele é praticado e não permite em momento algum os seus efeitos. […] A nulidade pode ser alegada independentemente da prova do prejuízo. O ato é nulo para todos. A nulidade não pode ser relevada pelo juiz que a deve pronunciar se ela consta do instrumento ou de prova literal, ainda que trate de escritura de hipoteca ou de escritura de compra e venda de bens de raiz; porque é a lei que se encarrega de todo trabalho, declarando o ato nulo.O papel do juiz é passivo, limita-se a ver a prova e declarar ou constatar a nulidade. A nulidade pode ser alegada e pronunciada tanto por meio de ação como por meio de defesa. A nulidade pode ser alegada por todos que provarem interesse na sua declaração. É por isso que a nulidade é absoluta; porque pode ser invocada por todos os interessados. O ato é nulo para todo o mundo, porque a sua nulidade é produzida por uma consideração de interesse geral.” (MARTINHO GARCEZ, Nullidade dos Actos Jurídicos, Rio, Ed. Jacintho, 1910, 1º v., 2ª ed., pg. 21).

E, a invalidez absoluta do processo pode ser alegada e reiteradamente indicada, vez que se trata de caso em que a questão apropositada pode ser decidida e “redecidida”.

Isto, aliás, é o que aprendemos através de ensinamentos proclamados pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ut se vê:

“Essa proibição de redecidir, todavia, não abrange questões de ordem pública (pressupostos processuais, condições da ação et caetera).” (Curso Avançado de Processo Civil, 15ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, vol. I, p. 312 – 313 apud Ac. TJMG, Agr. Instr. 1.0024.09.645942-5/002, Belo Horizonte, Rel. Des. JOSÉ FLÁVIO DE ALMEIDA)

Do Contraditório e da Igualdade das Partes

Ao que se vê de excerto de lúcida preleção expendida por membro do judiciário, há, de outro lado, ingente preocupação em dar cumprimento a tais princípios ao longo do curso do procedimento executório:

“O Juiz deve averiguar qual norma aplicável ao caso particular submetido à sua jurisdição, não deve deixar-se levar por meros nomes, por etiquetas ou conceitos classificatórios, mas pelo contrário, tem que ver quais são as normas pertencentes ao ordenamento jurídico positivo a ser aplicado no caso concreto, que ao dirimir o conflito estejam em consonância com os valores albergados e priorizados por este mesmo ordenamento. (Juíza ORIANA PISKE, in web).

Conclusão

Arrematando estas ponderações, avaliamos que no caso de as penhoras realizadas incidirem sobre um ou dois imóveis contíguos, ambos com área total inferior a 4 (quatro) módulos fiscais, que no município é de 30 ha cada, são elas impenhoráveis, para cuja constatação bastam atenção à ordem jurídica e prudência na classificação do fenômeno legal daí decorrente.

Eulâmpio Rodrigues Filho

Advogado em Minas Gerais

Professor Titulado de Direito Processual Civil

Doutor e Pós-Doutor em Direito

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Eulâmpio Rodrigues. A impenhorabilidade da pequena propriedade rural. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-impenhorabilidade-da-pequena-propriedade-rural/ Acesso em: 27 jul. 2024