Direito Civil

Contributos marxistas e foucaultianos ao reconhecimento da união homoafetiva

 

RESUMO

Esta pesquisa elege o materialismo histórico-dialético como método de análise de questões contemporâneas da homossexualidade e sua relação com o Judiciário brasileiro. Articula paradigmas marxianos, marxistas e feministas, por meio da interdisciplinaridade do direito, da sociologia, da antropologia, da filosofia e das ciências da linguagem, para compreender o fenômeno LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais) que mobiliza indivíduos na reivindicação por promoção, efetivação e proteção de direitos humanos. Recorre aos conceitos de fetichismo da mercadoria, fetichismo jurídico, forma jurídica, contrato e gênero, na perspectiva da História, para compreender e promover a desnaturalização de processos sociais e situá-los na base econômica da sociedade em face da luta de classes. Posiciona o direito na superestrutura, onde localiza também o direito civil, o direito de família e os direitos humanos, para desnudar seus processos discursivos ideológicos e, logo, práticos. Empreende uma crítica marxista dos direitos humanos ao tomar como objeto decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), respectivamente, sobre o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo e a autorização de conversão em casamento de união estável entre duas lésbicas.

PALAVRAS-CHAVE: MARX, FOUCAULT, UNIÃO HOMOAFETIVA

O objetivo deste texto é reconstruir a lógica do preconceito, da intransigência com a questão social desde a manutenção de retóricas conservadoras e reacionárias, contra o empoderamento social de minorias e marginalizados (como as mulheres), nas primeiras fases da moderna sociedade capitalista, até as novas formas, cada vez mais baseadas na intransigência contra a orientação sexual nos dias atuais. De certa forma, a principal hipótese deste texto, é o reconhecimento de que essas formas preconceituosas contra a nova questão social (novas formas de exclusão social) é fruto (ainda) de retóricas intransigentes que atribuem “ameaça”, tanto no passado, quanto no presente, ao diferente, por mais que isso ocorra no nível do cinismo, da cultura da razão cínica, do que em algo efetivo e real.

O Direito é regido pela causalidade hierárquica. Não se pode escapar disso. Em outros saberes como, por exemplo, a medicina, trata-se de reagir a problemas da physis, trazendo soluções, não normativas, para problemas que a matéria apresenta. No direito, isso não é possível. Estabelecemos nele o dever ser. Com isso, entramos na articulação da linguagem para distinguir o justo do injusto.

Toda e qualquer temática social, nos dias atuais, é mediada pela tensão do “fim dos tempos”, como referencia Zizek (2011a). Ou seja, antigas exclusões sociais, muitas delas não resolvidas até hoje, são sobrepostas por novas formas de exclusão, patrocinadas, muitas vezes, pelos mesmos motivos cínicos que serviram para as exclusões do passado.(FEDRIGO, PIRES LUCAS, RIBEIRO)

Por isso, as antigas teses sobre o desenvolvimento social e humano, que envolviam, entre outros elementos, somente aspectos socioeconômicos (como renda, escolaridade, propriedade, bens de consumo duráveis), atualmente incluem variáveis como gênero etc. Na verdade, as novas formas de exclusão são produzidas pelos principais desdobramentos dos quatro cavaleiros do Apocalipse[1], como afirma Zizek (2011a), logo, mais pelo próprio desenvolvimento deles do que pelas carências e faltas do passado.

Embora o movimento LGBTI seja recente no Brasil, a homossexualidade não é. A articulação dos homossexuais vem, cotidianamente, com acertos e erros, tropeços e vitórias, garantindo a conquista de direitos humanos. Entretanto, a força desse processo histórico-dialético encontra-se na luta, no movimento e na articulação dos sujeitos, e não apenas nas concessões de direitos e do Direito.

Muito além de conquistar direitos humanos, que conquistados ou cedidos podem, na mesma lógica relativista da sociedade democrática ser retirados, confiscados, novamente negados, a importância de reivindicação dos direitos humanos LGBTI sustenta-se na luta, no embate entre sujeitos antagônicos que chegam à porta da Justiça e denunciam contradições.

A questão social é a mais problemática, até porque lida com os desafios no âmbito da distinção social. Não que os discursos dominantes, que aceitam formalmente, mas não na prática, as questões do desenvolvimento sustentável, bioética e da propriedade intelectual, não tratem da questão social como um problema, mas eles não reconhecem os elementos equalizantes necessários para o tratamento da exclusão social. E o mais interessante, a justiça no modo de produção capitalista nem deveria ser, conforme o modelo liberal clássico, para a manutenção de preconceitos que viessem a prejudicar o mercado. Dessa forma, todos aqueles que pudessem pagar, trabalhar, ou comprar, deveriam ser aceitos na nova ordem liberal de mercado. Se preconceitos foram e ainda são mantidos, é porque prevalece modelos tradicionais de outros modos de produção na época atual.

Em virtude da recente trajetória política e histórica dos direitos humanos e do movimento LGBTI, Rodrigues (2011), afirma que a relação entre direitos humanos e diversidade sexual é uma agenda ainda em construção. Guris e gurias que ousam confrontar os padrões da heterossexualidade imposta como regra geral, estabelecidos e legitimados nas relações sociais e também no direito, encontram entraves na promoção e na efetivação de direitos humanos

Michel Foucault (1988) escreve que, na hipocrisia de nossas sociedades, frequentemente forçadas a algumas concessões, age-se no sentido de que, se for preciso dar espaço às minorias sexuais e identitárias, que estas se restrinjam a “outro lugar: que incomodem lá onde possam ser reinscritas, senão nos setores da produção [em que não são aceitas], pelo menos nos do lucro”. Nos bordéis e nos hospitais: a prostituta e seu cafetão, o psiquiatra e seu louco. E assim, na lógica da expressão foucaultiana, historicamente, em nosso país, as pessoas transexuais têm sido relegadas à condição de meros objetos de estudo para a medicina ou como protagonistas na prostituição e satisfação da lascívia alheia.

Vivemos em um país majoritariamente[2] branco, heterossexual e cisgênero. A falta de representatividade das pessoas LGBTI na comunidade brasileira, notória em todos os níveis, chama especial atenção na forma pela qual é articulada a composição política da Câmara Federal que é formada, em sua maioria – em torno de 71% – por homens brancos e heterossexuais. Dos 513 (quinhentos e treze) deputados federais e 81 (oitenta e um) senadores que compõem o Congresso Nacional Brasileiro, apenas um deputado se declara, publicamente, homossexual[3]. Já a participação de pessoas transexuais na política a nível nacional é nula ao passo que não existe nenhuma ocupando o cargo de deputado federal ou senador em nosso país.

A ausência de representatividade é também percebida no campo científico: a maioria das pesquisas acadêmicas, artigos e trabalhos que desenvolvem temas envolvendo pessoas trans são conduzidos e firmados por pesquisadores cisgênero. Em 2014, primeiro ano em que o Governo Brasileiro permitiu a utilização do nome social[4] pelas pessoas transexuais no ENEM, foram deferidas 95 (noventa e cinco) solicitações, de um total de 9.519.827 (nove milhões quinhentos e dezenove mil e oitocentos e vinte sete) (OLIVEIRA, 2014) pessoas se inscreveram para a prova do Exame Nacional do Ensino Médio, o que representa pouco mais de 0,001%. .

Na linha da colocação de Foucault inicialmente citada, o campo dos saberes médicos e biológicos se constitui em um sofisticado espaço de desumanização e marginalização das identidades transexuais, que os relega, exclusivamente, às esferas de saúde mental, taxando-os como doentes e anormais. Varella[5] qualifica a transexualidade como um distúrbio de identidade de gênero. Uma doença que acometeria um em casa doze mil homens e uma em cada trinta mil mulheres. E que, quando “instalada” após a adolescência, seria praticamente impossível de cura (VARELLA, 2014). A transexualidade é definida como “transexualismo[6]” pela comunidade médica internacional, e sintetizada como um sentimento intenso de não pertencimento ao sexo anatômico seguido da vontade de modificar e amoldar o próprio corpo ao sexo oposto.

Biondi, ao tratar dos direitos humanos e sociais, enfatiza seu caráter burguês que reafirma o individualismo de forma jurídica. Para o jurista, falta ainda a compreensão, v.g. de que “até a mais abrangente rede de seguridade social carrega consigo o pecado original da equivalência jurídica, do amesquinhamento das relações sociais à semelhança de forma mercantil.(BIONDI, 2012)

[Os direitos humanos] são lírios colhidos de um pântano enorme […] Os lírios são belos e exuberantes. Mas um lírio não é apenas as pétalas e o caule. Não tem ele uma raiz? E se esta raiz está escondida no lamaçal do pântano, não partilha ela da essência do domínio em que foi fecunda? Esta é a verdade, por mais “dolorosa” que seja. O charme dos lírios não os exime: eles são uma extensão do pântano. Os direitos humanos, em suas diferentes dimensões, são uma extensão do capitalismo (BIONDI, 2012)

Reconhece-se, portanto, uma contradição: Rodrigues argumenta que demandas do movimento LGBTI se vinculam com debates sustentados pelo movimento feminista, precipuamente a partir da segunda metade do século XX, por “igualdade real entre mulheres e homens” (RODRIGUES, 2011). Afirma que a questão LGBTI trata de uma reivindicação de igualdade formal que, em tese, estaria já incorporada desde as primeiras proclamações da Revolução Francesa: todos são iguais perante a lei (RODRIGUES, 2011). É a igualdade formal que, obviamente, não garante a igualdade material.

O art. 3º, inciso IV da Constituição Federal de 1988 é invocado por Rodrigues para sustentar normativamente a força da proibição da discriminação de orientação sexual – uma estrutura de gênero, sexo, prática e desejo. O texto constitucional veda discriminação por raça, cor, sexo, idade, religião, entre quaisquer outras formas de discriminações, sem citar expressamente, contudo, a orientação sexual, o gênero e a identidade de gênero.

A intransigência contra o empoderamento social de setores marginalizados econômica e culturalmente, de outra banda, não é um fenômeno recente, nem dá mostras de acabar. Nos últimos 250 anos tem sido visto um amplo e permanente processo de criminalização e de preconceito contra as ondas democratizantes e de inclusão social, mesmo que em boa parte delas o único grande benefício criado seja o do cidadão consumidor ou trabalhador em situações precárias, insalubres e de forte exploração econômica. Como resultado, autores como Peter Sloterdijk[7] (1997) e Slavoj Zizek (1999) cunharam a tese sobre a cultura da razão cínica, especialmente no ocidente capitalista em tese racionalista e igualitarista. Cultura caracterizada como sendo: “eles sabem o que fazem, e continuam fazendo”, expressão reformulada da bíblica frase de Jesus Cristo: “pai, perdoai porque eles não sabem o que fazem”. Ou seja, os “bons” burgueses manteriam preconceitos históricos contra as minorias políticas para poder pagar menos salário para elas, por mais que o discurso jurídico da modernidade fosse da igualdade e fraternidade.

Esse cinismo não é novidade pois já foi encontrado na luta contra as principais ondas de construção da cidadania nos últimos séculos, representadas na Revolução Francesa, empoderamento democrático no século XIX (e que se estendeu ao longo do século XX) e no Estado de Bem Estar Social no século XX e XXI. Albert Hirschmann (1992), na “A retórica da intransigência”, é um dos que estudaram os 200 anos de retórica reacionária e conservadora contra a afirmação dos direitos civis, políticos e sociais. (FEDRIGO, PIRES LUCAS, RIBEIRO, 2015) 

Ondas patrocinadas por intelectuais oriundos da nobreza, mas também por vários filósofos e economistas burgueses, como Milton Friedmann. Esse autor revelou muito bem os argumentos reacionários sobre a ameaça, futilidade ou perversidade que os novos direitos recebiam, justamente por esses processos terem servido para a incorporação social de amplos segmentos no sistema de direitos e de acesso a bens e serviços. Nesse sentido, na prática, muitos desses direitos acabaram não sendo totalmente afirmados, e um grupo social que sentiu isso na pele foram as mulheres, como bem lembrou a pensadora Carole Patemann (1993) no livro “O contrato sexual”. (FEDRIGO, PIRES LUCAS, RIBEIRO, 2015)

No projeto marxista, porém, de construção de uma sociedade socialista que assegure a felicidade do outro não é um exercício retórico de projeto altruísta, de bondade ou de caridade. Consiste numa ação que deve ultrapassar os limites filosóficos e políticos dos direitos humanos e da tolerância como seu fundamento.

Os direitos humanos apresentam paradoxos e contradições, cujas investidas de bondade e de caridade são incapazes de suplantá-los. Os direitos humanos e seu projeto pluralista e tolerante, segundo Wolff, “constitui a etapa mais alta do desenvolvimento político do capitalismo industrial” E o capitalismo é opressão e, contra ele “há a necessidade de uma nova filosofia da comunidade, além de pluralismo e além de tolerância” (WOLF, 1970, p. 37)

A crítica aos direitos humanos estruturada por Zizek (2010) também debate nesse bojo, os descaminhos da tolerância na contemporaneidade, em que seu sentido é invertido porque o respeito à alteridade está pareado ao “medo obsessivo do assédio”, do contato real com o outro.

Meu dever de ser tolerante para com os outros significa, na verdade, que não devo chegar muito próximo a ele ou a ela (…) Isto está emergindo cada vez mais como direito humano central da sociedade capitalista avançada (ZIZEK, 2010, p. 17)

Significa dizer que as lutas por direitos humanos estão cada vez mais baseadas no reconhecimento das diferenças e ao respeito multicultural. Esse processo resulta, porém, na fragmentação do corpo social que reivindica de forma pulverizada, logo enfraquecida, (novos) velhos dilemas.

O multiculturalismo defendido pelos liberais radicais, em oposição aos conservadores radicais, segundo Zizek (1998), esvazia o conteúdo político dos direitos humanos quando propaga a intolerância. Existe uma manipulação em torno do discurso de legitimação dos direitos humanos que coloca todo esse instrumental no escopo de uma isenta politização que atende a interesses político-econômicos específicos. A lógica pretensamente apolítica, segundo o autor, perpassa todos os direitos humanos humanitários, feministas, sexuais, raciais etc. Ao tratar do prazer e da felicidade, Zizek conceitua a jouissance, ou gozo, para explicitar que existe, sim, uma política por detrás dos direitos humanos, no sentido estrito do termo, que está preocupada com as formas de aliciar, ou controlar e regular.(ZIZEK, 1998) Esse controle político dialoga com capturas jurídicas apaziguadoras de conflitos e tensões, como exemplo bastam ser citados a união estável e o casamento civil e as respectivas decisões do STJ e do STF.

Existe um paradoxo, assim, na fundamentação filosófica dos direitos humanos, que lhe é intrínseco, inerente, intransponível.

O que acontece com os Direitos Humanos quando se reduzem aos direitos do Homo sacer dos excluídos da comunidade política, dos reduzidos à “vida nua” – ou seja, quando se tornam inúteis, já que são os direitos dos que, exatamente, não tem direitos, dos que são tratados como inumanos? (ZIZEK, 1998, p. 408)        

Os direitos humanos brotam de uma concepção idealista supostamente capaz de solucionar, sem ir à raiz do problema, a falta de direitos daqueles que não têm direitos, como por exemplo, os LGBTI. No entanto, Zizek opera uma análise que resgata a luta de classes ao campo dos direitos humanos e das outras lutas identitárias ou pós-identitárias, porque revela os elementos da luta de classes ocultadas no discurso dos direitos humanos, tanto quando apropriado pelos liberais como pelos conservadores.

O que se pode verificar, é que a afirmação da democracia e do igualitarismo contratualista no Ocidente foi marcado por falhas gigantescas na pouca afirmação dos direitos das minorias políticas, que, na verdade, sempre foram maiorias sociais. O que se pode verificar, é que a afirmação da democracia e do igualitarismo contratualista no Ocidente foi marcado por falhas gigantescas na pouca afirmação dos direitos das minorias políticas, que, na verdade, sempre foram maiorias sociais. E um ponto pouco discutido nessa manutenção dos preconceitos sempre ficou a cargo da questão sexual. Ela parecia apenas uma questão de exploração das mulheres, mas com o passar do tempo, manifestou-se cada vez mais como um elemento além da mera questão da economia, mas uma questão ideológica, na ideologia da razão cínica contra todos aqueles que afirmam uma sexualidade diferente dos padrões machistas e homofóbicos dominantes.

De certa maneira, a questão sexual ser tão importante como elemento de exclusão social advém do peso social que a estrutura psicossocial tem na socialização das pessoas. A tentativa que Zizek comenta (1999), da cultura ocidental tentar opor Kant contra Sade, ou seja, de um imperativo categórico pouco flexível à aceitação do outro. diferente da “oficial”, especialmente num contexto que a própria sociedade de mercado apela para os sentimentos mais intensos de compra e venda do corpo e da alma (Sade). A erotização da vida como mercadoria acabou confrontando-se com a rigidez cínica do padrão oficial heterossexual e homofóbico.

A grande contradição cultural e econômica presente na ideologia da razão cínica é a busca e esquecimento, ao mesmo tempo, do desejo como principal motivador para a construção de um cidadão consumista, e de um cidadão sem sexo (desde que fosse homem e branco) como padrão oficial de indivíduo perfeito. Como a lógica de mercado é mais forte, esse argumento preconceituoso não sobreviveu sem traumas. E a tecnologia foi uma das principais áreas em que essas contradições explodiram da mera questão da economia, mas uma questão ideológica, na ideologia da razão cínica contra todos aqueles que afirmam uma sexualidade diferente dos padrões machistas e homofóbicos dominantes.

Com muita frequência, a luta pela tolerância multicultural e pelos direitos da mulher, empreendida pelos liberais, marca a contraposição à intolerância, ao fundamentalismo e ao extremo patriarcal supostamente das classes inferiores.(ZIZEK, 1998, p. 470)

Para Zizek, existe um antagonismo concreto – luta de classes – que deve ser articulado com outras lutas e outras diferenças – abstratas -, uma vez que o concreto sobredetermina as outras disputas ao projetar-se na realidade social como o universal concreto.

A luta feminista, e todas as outras lutas, portanto, pode ser articulada num encadeamento com a luta progressista pela emancipação, ou pode servir – e de fato serve – de ferramenta ideológica usada pela classe média alta para afirmar sua superioridade sobre as classes inferiores, patriarcais intolerantes.(ZIZEK, 1998)

As lutas baseadas no antagonismo da diferença possuem consistem em assegurar um reconhecimento indiscriminado por todos. Por outro lado, a luta de classes visa a agravar as diferenças entre as classes para transformá-la no antagonismo.

Assim, o que a série raça-sexo-classe esconde é alógica diferente do espaço político no caso das classes, enquanto as lutas antirraciais e antissexistas são guiadas pelo esforço para obter o reconhecimento, a luta de classes visa superar e subjugar, e até aniquilar o outro.(ZIZEK, 1998, p. 471-472)

A interpretação marxista de Zizek revela o giro ideológico burguês dos direitos humanos:

Os direitos humanos universais são, com efeito, os direitos dos homens brancos proprietários de trocar livremente no mercado, explorar trabalhadores e mulheres e exercer dominação política. (ZIZEK, 2010, p. 27)

Por outro lado, os direitos humanos universais subsistem paradoxalmente como direitos humanos de todos os inumanos, no exato momento em que tentamos conceber os direitos políticos dos cidadãos sem fazer referência aos direitos humano universais “metapolíticos”, perdemos a própria política, isto é, reduzimos a política a um jogo pós-político de negociação dos interesses particulares, logo, interesses fragmentados.

O fato é que o reconhecimento da união estável e a autorização do casamento civil, com base nas ideias de Zizek, não passam de confirmação dos direitos humanos como pressupostos burgueses. Trata-se da reafirmação do paradoxo da concessão de direitos àqueles que não têm direitos, como os LGBTIs, negros, mulheres, entre outros grupos que lutam por reconhecimento. Por isso que, quando novas formas de agregação humana surgem estruturadas no afeto, logo trata o direito de capturá-las à sua forma jurídica. Quando estendidos esses direitos a homossexuais, pode se observar um evidente processo reacionário de aprisionamento e de cooptação pelo direito de indivíduos que poderiam vivenciar e instituir novas formas de famílias.  São os exuberantes lírios de Biondi, mas que perdem o bom perfume e revelam-se fétidos, como o pântano de onde brotam.

Enquanto as novas formas de famílias são tolhidas e os direitos materiais básicos negados, outras estratégias mostram-se pertinentes. De fato, perante o cenário negativo de limitações do Executivo, de negligência do Legislativo e de permanente discriminação da sociedade, torna-se eficiente ao movimento LGBTI e a qualquer minoria, como preconiza Biondi, o bombardeamento do Judiciário por demandas de direito que torne a vida material menos inumana.

É uma estratégia política legítima para a desestabilização dos poderes fortificados, e uma estratégia possível na própria concepção marxista.

Com base na retórica de interpretação segundo a Constituição do artigo 1723 do Código Civil, que tem a mesma redação do texto constitucional, ministros recorreram aos princípios constitucionais para dar legitimidade à decisão de conferir à união estável de meninas e meninas e meninos e meninos entre pessoas do mesmo sexo, o mesmo tratamento jurídico e os mesmos efeitos reservados aos casais heterossexuais. Gilmar Mendes, ao propor a técnica da analogia, escreve que justificada estará a “proteção jurídica para essas relações existentes, com base no princípio da igualdade, no princípio da liberdade, de autodesenvolvimento, e no princípio da não-discriminação”[8] em virtude da orientação sexual, como também preceituam seus pares, a fim de promover, de fundo e principalmente, a segurança jurídica.

Do ponto de vista materialista histórico-dialético, como método de análise de fenômenos sociais, o posicionamento dos ministros constitui-se uma construção idealista e os processos discursivos revelam-se, inevitavelmente, uma construção ideológica, que no caso é empreendida como escolha de princípios.

Por mais coerência que os ministros tentem alegar dentro do discurso do direito para sanar uma incoerência do próprio direito – a falta de regulação das uniões homossexuais – e também tentem alegar aparente lógica interna capaz de supri-la, é inevitável o processo de reflexo e refração de seu discurso limitados de reconhecimento para fora de si mesmo. Ao sustentar o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo meninas que amam meninas e meninos que amam meninos, os ministros cometem o deslize de ignorar que, para além dos princípios da dignidade humana, da igualdade e da liberdade, do autodesenvolvimento e da não-discriminação, o resultado do julgamento dar-se-á a partir da vida, e não do direito. No jogo dialético, as transformações são tão-somente materiais, interpelados pela base material e pelas contingências históricas daqueles que lutam pelo reconhecimento de união estável de pessoas do mesmo sexo, os ministros não tiveram alternativa senão se posicionarem.

O acórdão da ADPF  132/RJ opera palavras, difunde ideias e interpela a realidade. Existe, indubitavelmente, por trás das expressões “erga omnes e efeito vinculante” proferidas pelo relator na ementa do julgado[9], um impacto na base natural, um efeito prático.

O Direito, em sua unidade regula o mundo das mercadorias da sociedade capitalista e, desses processos regulatórios estabelecidos pelo direito civil não escapa o direito de família. Colocam-se ao lado, portanto, princípios constitucionais – dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade, além de autodesenvolvimento, não-discriminação – e a afetividade apresentada como superiores na argumentação idealista dos membros do STF quando do julgamento da ADPF 132/RJ.

Nesse bojo da totalidade das relações submetidas à forma jurídica do contrato, a decisão proferida pelo STJ no RE 118337/RS, sobre a autorização para a habilitação para o casamento civil entre duas lésbicas, revela-se exemplar no sentido de reiterar a autonomia da vontade e a segurança jurídica.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 14ª Edição. São Paulo: Hucitec, 2010

BIONDI, P. Os Direitos Humanos e Sociais e o Capitalismo: elementos para uma crítica. (Dissertação de Mestrado) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2012

FEDRIGO, Camila Paese; LUCAS, João Ignacio Pires; RIBEIRO, Teresa Leopoldina dos Santos. A questão LGBTI e o “fim dos tempos” In DIAS, Maria Berenice; FEDRIGO, Camila Paese; NOVAES, Rosangela (Coord.) Multiplicidade e Direito: as novas cores do ordenamento jurídico brasileiro. Bento Gonçalves: Associação Refletindo o Direito, 2015

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. 21ª edição.

OLIVEIRA, Kelly. Inscrições do Enem chegam ao recorde de 9,5 milhões, crescimento de 21,8%. EBC – Agência Brasil. Brasília, 24 maio de 2014. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-05/inscricoes-para-enem-chegam-ao-recorde-de-95-milhoes-com-crescimento-de-218>. Acesso em 17 jan. 2015.

RIOS, R. R. Homossexualidade e Discriminação por Orientação no Direito Brasileiro In: Direitos Humanos – diálogos interdisciplinares. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004

RODRIGUES, J. Direitos humanos e Diversidade sexual: uma agenda em construção. In: VENTURI, G. BOKANY, V. (org). Diversidade sexual e homoafetiva no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abarmo, 2011

VARELLA, Drauzio. Transexualidade. [S.l], 2014? Disponível em: <http://drauziovarella.com.br/sexualidade/transexuais/>. Acesso em: 21 jan. 2015.

WOLF, R. P. Além da Tolerância. In: WOLFE, R. P (Org.). Crítica da Tolerância Pura. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1970,

ZIZEK, S. A visão em Parolaxe. Tradução: Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998

ZIZEK, S. Contra os Direitos Humanos. In: Mediações Dossiê Direitos Humanos – Diversos Olhares, v. 15. Versão original publicada na New Left Review n. 14. Julho-agosto de 2005, sob o título Human Rights. Tradução Sergio Cavalcante. Revisão Marilia Ramirez Galvez e Silvana Mariano. Londrina:UEL, 2010

ZIZEK, Slavoj. Viver no fim dos tempos. Lisboa: Relógio D’Água, 2011a

 

Camila Paese Fedrigo – Advogada Militante. Membro do IBDFAM. Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB de Bento Gonçalves/RS

 



[1] Slavoj Zizek, no livro “Vivendo no Fim dos Tempos” identifica os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais.

[2] A utilização do termo majoritariamente, não se trata da identificação de uma maioria quantitativa, mas sim da maioria em termos de representação política, que é condição para fazer valer os direitos de cada um dos grupos sociais.

[3] Jean Wyllys de Matos Santos, deputado federal pelo PSOL do Estado do Rio de Janeiro, atualmente, em seu segundo mandato, é o único, dos 513 deputados, que se assume publicamente como homossexual.

[4] Desde a criação do ENEM – exame que avalia a qualidade do ensino médio no país e é utilizado como forma de ingresso em instituições de ensino públicas e privadas – em 1998, esta foi a primeira vez em que o formulário de inscrição oportunizou o cadastro e a utilização do nome social pelas pessoas transexuais.

[5] Drauzio Varella é um médico brasileiro popularmente conhecido em função de suas aparições em quadros televisivos voltados à exposição dos saberes médicos de forma acessível ao público leigo e, por esta razão, utilizado como referência.

[6] O uso do sufixo “ismo” é rechaçado pela militância, pois remete à condição de anomalia. Todavia, por ainda ser classificada como doença pela medicina, a transexualidade é assim designada no meio médico e também na área jurídica.

[7] Enquanto celebra Immanuel Kant (Crítica da Razão Pura), o autor descortina, com um olhar filosófico, penetrantemente humano, os diversos cinismos da vida moderna, a partir de uma releitura de Nietzsche e Marx, entre outros. Expoente da filosofia contemporânea, Sloterdijk nasceu em Kalsruhe (Alemanha), em 1947. Lecionou em Frankfurt e Viena e, desde 2001, é reitor da Escola Superior de Artes Aplicadas de Kalsruhe. O mal-estar na cultura de nosso tempo está a exigir uma crítica racional. Todavia, para Sloterdijk, tamanho desconforto cultural tem produzido pesada indisposição no impulso crítico, talvez pelo fato de, se abrirmos criticamente nossos olhos, as coisas mais simples do cotidiano se tornem por demais pesadas. Os que se aventuram por esse caminho acabam culturalmente feridos, mas, por isso mesmo, empenham-se em apontar caminhos na direção da cura. O autor aponta as feridas abertas pelas realizações críticas de Rousseau, Marx, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger, Freud e Adorno, dentre outros, afirmando, textualmente, que cada crítica é um trabalho pioneiro na dor do tempo, um esboço de cura exemplar. Nossa sociedade vive uma compulsão à mentira. E o sonho de Sloterdijk é fazer florescer a árvore moribunda da filosofia, no seu primitivo sentido grego, quando a “theoria”, repentinamente iluminada, transforma-se em linguagem clara e acessível.

[8] ADPF 132/RJ

[9] ADPF 132/RJ

Como citar e referenciar este artigo:
FEDRIGO, Camila Paese. Contributos marxistas e foucaultianos ao reconhecimento da união homoafetiva. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/contributos-marxistas-e-foucaultianos-ao-reconhecimento-da-uniao-homoafetiva/ Acesso em: 21 nov. 2024