O Uber anunciou recentemente que está trazendo o famoso aplicativo para Florianópolis. Como já era de se esperar, o sindicato dos taxistas da cidade já reagiu, alegando que o serviço do Uber é ilegal. Tal conflito já aconteceu em diversas cidades do país e tudo indica que os taxistas florianopolitanos pretendem resistir à chegada do serviço por meio de aplicativo à capital catarinense.
Mas afinal, quem tem razão nessa história? O Uber realmente é um serviço clandestino? Realmente precisa de regulamentação? Antes que a cidade pegue fogo, vamos debater essa questão neste artigo.
COMO FUNCIONA O UBER
Se você não morou em uma caverna durante os últimos 2 anos, com certeza sabe o que é o Uber: um aplicativo de celular para transporte privado (também tratado como “caronas remuneradas”). Funciona de maneira simples: o passageiro abre o aplicativo, escolhe o destino e o Uber indica um motorista para buscá-lo e o preço do trajeto.
Importante destacar que os motoristas não são funcionários do Uber. São profissionais autônomos que se cadastram no aplicativo e são remunerados por cada carona, pagando um percentual ao Uber. Assim, podemos dizer que o Uber funciona como uma espécie de “corretor de motoristas”.
Diante de tais características, é evidente a semelhança do Uber com o serviço de taxi, o que faz com que seja inevitável a concorrência. E é justamente por isso que surge a controvérsia.
CRÍTICAS DOS TAXISTAS
A grande crítica dos taxistas com relação ao Uber é a suposta “clandestinidade” com que opera, por não ser um serviço regulamentado. Dessa falta de regulamentação, decorrem outras críticas:
- Falta de controle sobre o serviço e sobre os motoristas – Os taxistas alegam que não há como atestar a qualidade do serviço e nem garantir que os motoristas são pessoas idôneas e estão habilidades a exercer a função;
- Concorrência desleal – Os taxistas alegam que são prejudicados na concorrência, pois enquanto precisam arcar com os custos da regulamentação do serviço de taxi, o Uber consegue praticar preços mais atrativos.
Há ainda algumas críticas de ordem emocional/apelativa, como, por exemplo, de que as famílias que dependem financeiramente do serviço de táxi serão prejudicadas ou de que o Uber está tirando o dinheiro do Brasil para levar para uma empresa dos Estados Unidos. No entanto, por serem juridicamente irrelevantes, tais críticas não serão abordadas aqui.
Sendo assim, o presente texto tratará primordialmente a respeito da necessidade de o serviço prestado pelo Uber precisar de regulamentação. E então, questiona-se: afinal, o Uber realmente precisa de regulamentação?
O TAXI TEM O MONOPÓLIO LEGAL DO TRANSPORTE INDIVIDUAL DE PASSAGEIROS?
Um argumento que costuma ser utilizado por aqueles que afirmam que o Uber necessita de regulamentação é de que o transporte individual de passageiros é legalmente uma exclusividade do serviço de táxi, tendo em vista que a Lei nº 12.468/2011, em seu art. 2º, estabelece que:
“Art. 2o É atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será de, no máximo, 7 (sete) passageiros. “
Ocorre que o próprio dispositivo legal deixa claro que a exclusividade é para o transporte público individual, vez que o serviço de taxi é um serviço público fornecido pelo meio de concessão a particulares. O Uber, no entanto, fornece transporte privado, que não está sujeito ao mencionado regramento.
A própria legislação traz forte indicativo de que tal monopólio inexiste. É o caso, por exemplo, da Lei nº 12.587/2012, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Em seu art. 24, inciso V, a lei prevê a necessidade de “integração dos modos de transporte público e destes com os privados e os não motorizados”.
Além disso, a Lei nº 12.587/2012 conceitua o serviço de transporte público individual como “serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas” (art. 4º, inciso VIII), diferenciando-o do transporte motorizado privado, que é definido como “meio motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares” (art. 4º, inciso X). Se o transporte individual de passageiros realmente fosse atividade privativa do serviço público (táxi), não haveria sentido em a própria lei conceituar o transporte privado individual.
E A LEGISLAÇÃO MUNICIPAL?
A própria mídia, ao noticiar a vinda do aplicativo para Florianópolis, já expôs a ideia de que o Uber é um serviço que requer regulamentação e que se começasse a operar de imediato, estaria na ilegalidade.
A lei que é mencionada para fundamentar essa afirmação é a Lei Complementar Municipal nº 85/2001, que dispõe sobre o serviço de taxi na capital catarinense. O § 1º do art. 4º da lei dispõe:
“§ 1º Nenhum veículo poderá recolher passageiros dentro dos limites do município sem portar a correspondente “Licença de Tráfego”, sob pena de apreensão imediata do veículo, acompanhada da correspondente multa”.
A interpretação que tem sido dada a tal dispositivo é de que ninguém poderia transportar passageiros em Florianópolis sem a dita “licença de tráfego”. Trata-se, contudo, de interpretação equivocada, pois o dispositivo legal está sendo interpretado isoladamente.
Diz a boa técnica legislativa que os parágrafos expressam aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo – essa, aliás, é a indicação da legislação para redação de leis com ordem lógica, conforme previsto na Lei Complementar nº 95/1998. Assim, sendo o citado § 1º um parágrafo do art. 4º, este não pode ser interpretado de forma dissociada do caput do artigo. O caput do art. 4º dispõe:
“Art. 4º A prestação dos serviços de Táxi fica condicionada à outorga de permissão para sua exploração e a “Licença de Tráfego” para o veículo trafegar, que será expedida pelo Órgão Gestor de Transportes da Prefeitura Municipal”.
Ora, o art. 4º da referida lei regulamenta o serviço de táxi – que, como já dito, é um serviço público que é prestado por meio de concessão. Logo, os parágrafos do art. 4º também se referem a veículos utilizados para o serviço de táxi e não se aplicam ao transporte privado.
Ademais, ainda que não se tenha notícia a respeito de discussão judicial de tal questão, pode-se argumentar a inconstitucionalidade da referida lei, tendo em vista que a Constituição Federal, em seu art. 22, inciso XI, dispõe ser de competência privativa da União legislar sobre trânsito e transporte. Essa, inclusive, é a posição do renomado jurista J. J. Gomes Canotilho, em parecer sobre o assunto.
RECONHECIMENTO CONSTITUCIONAL DA LIVRE INICIATIVA
Acima de qualquer regulamentação está a Constituição Federal, que já no seu art. 1º, inciso IV, estabelece como fundamentos da República os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. A livre iniciativa também é reconhecida como fundamento da ordem econômica, conforme disposto no art. 170.
O art. 5º, inciso XIII, por seu turno, reconhece como direito fundamental o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão. Aliás, a liberdade, por si só, é um direito fundamental reconhecido no caput do art. 5º.
Evidente que a liberdade de iniciativa e profissional reconhecida na Constituição não é irrestrita. Contudo, o seu reconhecimento constitucional impõe ao Estado o ônus de comprovar a necessidade de limitá-la.
E é daí que surge a principal questão: o Uber, de fato, precisa de regulamentação? Voltemos então às críticas feitas pelos taxistas que foram mencionadas no início do texto.
Um dos argumentos utilizados pelos que defendem a necessidade de regulamentação e pelos taxistas é de que há a necessidade de regulamentar o serviço para garantir a qualidade do serviço e que os motoristas são pessoas idôneas e estão habilidades a exercer a função.
Tal argumento, contudo, pode ser rejeitado facilmente, tendo em vista que o Uber exige dos motoristas certidões de antecedentes criminais, além de, claro, a comprovação da habilitação para dirigir. Além disso, o Uber possui um sistema de avaliação dos motoristas pelos próprios usuários do sistema, pois, afinal, quem melhor do que o próprio consumidor para decidir o que é melhor para si?
A crítica a respeito de suposta concorrência desleal também não se sustenta, pois o fato de os taxistas serem motoristas credenciados pelo Estado – que atesta a qualidade do serviço – agrega valor ao seu serviço perante a clientela e lhes confere alguns benefícios, como a exclusividade de uso de determinados pontos e vagas e desonerações tributárias para a aquisição de veículo. Se tais vantagens, contudo, não forem suficientes para que o serviço do táxi seja competitivo perante o Uber, sempre há a possibilidade de os taxistas passarem a prestar serviço também pelo aplicativo.
Vale destacar que o surgimento de um novo serviço que torna um serviço já prestado obsoleto é natural do mercado, sobretudo com o avanço tecnológico. Diversos são os exemplos de profissões que deixaram de existir por conta do advento de novas tecnologias, como, por exemplo, a de entregador de leite e a de acendedor de lampiões. Não cabe ao Estado utilizar a regulação estatal para frear o desenvolvimento de um novo serviço para proteger um serviço que seja incapaz de sobreviver por conta próprio no mercado – o que, frise-se, não é necessariamente o caso do serviço de táxi.
Foi com base em tais fundamentos que o juiz Bruno Bodart, da 1ª Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro/RJ, proferiu decisão liminar determinando que o Presidente do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Detro/RJ) e o Secretário Municipal de Transportes do Rio de Janeiro, bem como demais órgãos ou agentes, se abstivessem de praticar atos para restringir ou inviabilizar a prestação de serviço pelo Uber.
Assim, parece claro que o Estado não tem legitimidade para restringir a livre iniciativa no ramo do transporte privado individual de passageiros.
CONCLUSÃO
O Brasil sempre teve uma forte tradição de controle estatal. Não é a toa que temos até hoje uma cultura cartorária de que qualquer documento precisa ter firma reconhecida, qualquer cópia precisa ser autenticada e absolutamente qualquer coisa precisa de um carimbo de algum órgão público para ter alguma validade.
A ideia de que o Uber precisa ser regulamentado, no fundo – além do aspecto protecionista invocado pelos taxistas, que estão defendendo os próprios interesses -, é só mais uma expressão dessa cultura: é a ideia de que o cidadão é incapaz de decidir o que é bom para si próprio e de que precisa que o Estado lhe diga qual serviço é bom para ele.
O sucesso do Uber em diversas cidades do país, no entanto, mostra que esses tempos estão ficando pra trás e que as pessoas, insatisfeitas com os serviços fornecidos pelo Estado, estão cada vez mais preferindo decidir por si próprias utilizar o serviço que melhor lhes convém.
Por isso, a conclusão é de que não há melhor forma de regulamentar os serviços de transporte, senão a de lhes submeter ao crivo da livre concorrência, deixando que o consumidor decida qual serviço prefere. Afinal, existe uma máxima muito repetida no mundo dos negócios que sintetiza muito bem essa ideia: o cliente tem sempre a razão.
¹Advogado, sócio do escritório Carreirão & Dal Grande, com atuação em Direito Constitucional, Direito Civil e Processual Civil.