Direito Administrativo

O compliance na nova lei de licitações

O termo compliance, da língua inglesa, é traduzido como cumprir, estar de acordo. Quando tratamos de programas de compliance, portanto, estamos tratando de um conjunto de mecanismos a serem implementados com o objetivo de mitigar o risco de descumprimento das regras, promovendo uma atuação em conformidade.

Nesse sentido, há uma pluralidade de programas de compliance, a depender de qual seu foco. Por exemplo, é possível implementar um Programa de Compliance Trabalhista, se as normas que se pretende dar cumprimento têm essa natureza; é possível implementar um Programa de Compliance Tributário, se o objetivo é assegurar que as normas fiscais estão sendo atendidas; e é possível, também, implementar um Programa de Integridade, como se convencionou denominar o Programa de Compliance direcionado a mitigar os riscos relacionados à corrupção. Além destes, podem ser mencionados os Programas de Compliance de Dados e os Programas de Compliance Anticoncorrencial.

Os Programas de Integridade, no Brasil, começaram a ganhar importância estratégica desde a promulgação da Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que previu a redução de penalidade caso a empresa demonstrasse que adotava mecanismos de promoção à ética e de prevenção a casos de corrupção. Ademais, a Lei Anticorrupção previu também que, caso se firmasse acordo de leniência, ele deveria contemplar o desenvolvimento de um programa desse gênero, a fim de evitar que um novo descumprimento legal surgisse, demonstrando uma preocupação tanto repressiva (penalidade a ser aplicada), quanto preventiva (evitando novos casos de corrupção).

Nesse sentido, a importância dos Programas de Integridade está associada à valorização do combate à corrupção no País, que inclui uma faceta repressiva, mas também preventiva: e é nesta que eles se enquadram.

A Lei 14.133/2021, incrementando a importância estratégica do Programa de Integridade para além do que havia sido previsto na Lei Anticorrupção, estabeleceu novas regras que incentivam ou obrigam sua adoção. Foram especialmente quatro novas disposições a respeito do tema: (i) a obrigatoriedade de adoção de Programa de Integridade em até 6 meses após a celebração de contratos de grande vulto (art. 25, § 4º); (ii) como critério de desempate caso duas empresas apresentem a mesma proposta (art. 60, IV); (iii) a redução da penalidade por descumprimento da norma em caso de se comprovar a existência de um Programa de Integridade (art. 155, § 1º, V); e (iv) para reabilitação de empresas declaradas inidôneas (art. 163, § único).

Mas, afinal, o que é um Programa de Integridade e quais são seus principais elementos? O objeto do presente artigo é responder a essa questão e esclarecer como o compliance foi impactado pela Nova Lei de Licitações!

Principais elementos de um Programa de Integridade

A Nova Lei de Licitações, como mencionado, aborda os Programas de Integridade como fator obrigatório ou que induz a concessão de benefícios. No entanto, lendo a íntegra da 14.133/2021, não é possível concluir o que é e quais são os critérios para verificar se há, de fato, um Programa de Integridade instituído na empresa avaliada, sendo necessária a expedição de um regulamento para detalhamento. Ou seja, não é na Nova Lei de Licitações que se poderá reconhecer os elementos essenciais de um Programa de Integridade.

Este decreto ainda não foi expedido. No entanto, em decorrência da regulamentação da Lei Anticorrupção, é possível antecipar as previsões gerais, conforme previsto no Decreto Federal nº 8.420/2015, que define o Programa de Integridade como o “conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira” (art. 42).

E, para mensurar a efetividade do Programa, o mencionado decreto prevê 16 diferentes critérios, que devem ser considerados a partir de uma análise de perfil da empresa, avaliando questões como o número de funcionários, faturamento e até mesmo sua área de atuação. Nesse sentido, uma microempresa ou empresa de pequeno porte será avaliada a partir de critérios menos rígidos, de modo que a análise do Programa será compatível com sua estrutura.

Dentre esses critérios, destacam-se, para prevenir a ocorrência de ilícitos:

A elaboração de uma análise de riscos, que permita ajustar o Programa à realidade da empresa;

A existência de apoio da alta direção da empresa, por meio de manifestações favoráveis à instituição do Programa, para que os funcionários saibam que a postura ética é exigida pela empresa;

A existência de Código de Ética ou outro instrumento que consolide as regras gerais de integridade da empresa, aplicáveis tanto internamente quanto a terceiros com quem a empresa se relaciona;

A adoção de mecanismos de confiabilidade dos registros contábeis e relatórios financeiros;

Adoção de procedimentos para evitar que sejam praticadas fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios e na execução de contratos administrativos;

Previsão de medidas que orientem e previnam a prática de ilícitos nas interações com o setor público, mesmo que seja por um representante da empresa;

A existência e a autonomia de uma estrutura interna responsável por fiscalizar e implementar o Programa de Integridade, geralmente denominada Comitê de Integridade;

A realização de treinamentos periódicos sobre o Programa, informando os funcionários e parceiros sobre as regras de integridade e preparando as equipes para adoção dos procedimentos;

A adoção de diligências para contratação e supervisão de terceiros, reduzindo os riscos de que um parceiro pratique atos ilícitos em nome da empresa ou, ainda, que um parceiro de negócios comprometa a sua reputação;

A existência de mecanismos de monitoramento contínuo do Programa, com a finalidade de assegurar sua implementação e de identificar pontos de fragilidade para seu aprimoramento;

Em caso de reestruturações societárias, como fusões e aquisições, a previsão de mecanismos para identificação de vulnerabilidades em relação ao terceiro.

Ademais, além dos critérios preventivos, foco do Programa de Integridade, é previsto também que sejam adotados mecanismos repressivos, seja facilitando a identificação do ilícito, seja punindo o descumprimento das regras do Programa, por meio dos seguintes elementos:

A disponibilização de canais de denúncia, divulgados tanto para os membros da empresa, quanto para terceiros que com ela se relacionem;

A previsão de proteção aos denunciantes de boa-fé, para evitar que sofram qualquer retaliação;

Sejam previstas sanções em caso de violação ao Programa, desde uma advertência até demissão ou rompimento do contrato;

Sejam adotados procedimentos para a interrupção imediata de irregularidades identificadas, bem como sejam adotados mecanismos para remediar os ilícitos.

Considerando todos esses critérios e com o intuito de assegurar a uniformidade da análise da efetividade dos Programas de Integridade, a Controladoria-Geral da União elaborou uma planilha detalhada, com quase duas centenas de quesitos, nos quais atribui uma pontuação para cada item analisado, que pode aumentar a nota (ou seja, preenchendo o requisito de efetividade) ou reduzir a nota (seja não preenchendo o requisito, seja por se tratar de uma violação aos preceitos ético dos programas).

Por exemplo, a existência de um Código de Ética é um fator que demonstra a efetividade do Programa de Integridade, podendo aumentar pontuação que varia de 0% (não há Programa de Integridade) até 4% (há Programa de Integridade integralmente implementado desde antes da existência do ato lesivo investigado). Contudo, se se deixar de apresentar um Código de Ética em língua portuguesa, além do não preenchimento da pontuação no quesito, ainda haverá um fator redutor da nota, dada a essencialmente do documento.

Caso a pontuação total atribuída seja inferior a 1%, aplicando-se os critérios e valores previstos na planilha da CGU, então se considera que o Programa é meramente formal e ineficaz para evitar a ocorrência de atos lesivos.

Deste modo, considerando que ainda não há uma previsão normativa específica para aferição da efetividade do Programa de Integridade previsto na Nova Lei de Licitações, enquanto não houver regulamento, os órgãos administrativos poderão se utilizar das normativas vigentes, adotando os critérios já consolidados pela CGU, a fim de atribuir maior uniformidade nas avaliações dos Programas e, por consequência, maior segurança jurídica, desde que isso esteja expressamente previsto no instrumento convocatório.

Afinal, ao se atribuir uma exigência legal, como no caso de contratações de grande vulto, ou mesmo um benefício, é preciso que haja uma baliza que permita ao administrador identificar a existência do Programa de Integridade.

Mas, enfim, o que prevê a Nova Lei de Licitações sobre o tema?

A obrigatoriedade do Programa de Integridade na Nova Lei de Licitações

Uma das grandes novidades da Nova Lei de Licitações sobre o tema é a previsão de que será obrigatória a implementação de Programa de Integridade nas contratações de grande vulto, que consistem naqueles contratos cujo valor estimado seja superior a R$200 milhões.

Na legislação, houve a opção de não restringir a contratação àqueles potenciais fornecedores que já tivessem implementado seus Programas, restringindo o universo de concorrência, mas de determinar que, aquele que firmar o contrato, terá a obrigação de comprovar a implementação do Programa em um prazo de até seis meses da assinatura do contrato.

O Programa de Integridade deverá ser avaliado conforme a previsão contida no Regulamento da legislação, que irá definir os mecanismos de comprovação da existência e efetividade do Programa, bem como as penalidades aplicáveis em caso de descumprimento.

Enquanto o Regulamento não for editado ou caso não haja especificação dos critérios em edital, viabilizando a plena aplicação da nova norma, é possível que sejam utilizados como referência os critérios previstos pela CGU, sendo necessário que esta referência normativa seja expressamente prevista no instrumento convocatório.

Por sua vez, nos casos em que os entes federativos já adotem legislação que contemple a obrigatoriedade da implementação de Programa de Integridade, como no caso do Distrito Federal (Lei 6.112/2018), Rio de Janeiro (Lei Estadual 7.753/2017), Amazonas (Lei Estadual 4.730/2018) e Pernambuco (Lei Estadual 16.722/2019), as regras locais continuam valendo, desde que as previsões sejam adotadas para serem compatíveis com a especificidade regional, especialmente no que se refere ao valor estabelecido para exigência do Programa.

Por exemplo, a legislação fluminense prevê a obrigatoriedade de adoção de Programa de Integridade em caso de compras e serviços de valor superior a R$650 mil reais – muito inferior aos R$200 milhões da Lei 14.133/2021. No Distrito Federal, a regra também é válida para valores inferiores ao da norma geral: basta que o contrato supere os R$5 milhões e tenha prazo de execução ou de vigência a partir de 180 dias para que a implementação do programa seja obrigatória.

Assim, a regra é que em todo o território nacional em que houver contratação firmada por quem está sujeito à Lei 14.133/2021 (Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluindo os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública), se o contrato for superior a R$200 milhões, a empresa contratada terá até seis meses para comprovar a implementação do Programa.

Por outro lado, se houver uma legislação regional que estabeleça um valor inferior para tornar a obrigatoriedade de implementação do programa, ela deverá ser seguida, adotando como parâmetro de análise da efetividade os critérios regulamentares locais estabelecidos.

Afora a obrigatoriedade da adoção do Programa de Integridade nas contratações de grande vulto, o que mais a Nova Lei de Licitações previu sobre o tema? 

O Programa de Integridade como fator de concessão de benefício

A implementação do Programa de Integridade também pode implicar, conforme prevista na Lei 14.133/2021, a concessão de um benefício para a licitante ou contratada, por dois meios: (i) como critério de desempate em licitações ou (ii) como fator a ser considerado para dosimetria de uma penalidade a ser aplicada.

Conforme previsto no artigo 60 da NLL, em caso de empate nas propostas apresentadas pelos licitantes, há quatro critérios sucessivos que poderão desempatá-las, sendo o quarto a existência de um Programa de Integridade – critério este que, antecipa-se, raramente será utilizado, considerando os outros três precedentes: (i) disputa final, hipótese em que os licitantes empatados poderão apresentar nova proposta em ato contínuo à classificação; (ii) avaliação do desempenho contratual prévio dos licitantes; e (iii) desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento.

Por outro lado, o benefício relativo à dosimetria da pena é derivado da própria experiência da Lei Anticorrupção, que prevê a adoção de Programa de Integridade como um redutor da multa a ser aplicada. Nos termos do § 1º do artigo 156 da Lei 14.133/2021, será considerada a implantação e o aperfeiçoamento do Programa de Integridade como critério para definição da penalidade a ser aplicada, seguindo as orientações dos órgãos de controle.

Para dar efetividade a essa previsão e atribuir maior segurança jurídica, será fundamental que sejam definidas balizas para serem consideradas pelo sancionador, de modo que se tenha clareza da importância relativa do Programa de Integridade.

O Programa de Integridade como fator de reabilitação

Por fim, a Nova Lei de Licitações (art. 163, § único) previu que, em caso penalidade decorrente da prática dos atos ilícitos consistentes em “apresentar declaração ou documentação falsa exigida para o certame ou prestar declaração falsa durante a licitação ou a execução do contrato” ou de “praticar ato lesivo previsto no art. 5º da Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013” (atos lesivos contrato a Administração Pública previstos na Lei Anticorrupção), será obrigatória a implantação ou aperfeiçoamento do Programa de Integridade a fim de que seja reabilitada.

Ou seja, para que a empresa possa voltar a participar de licitações e firmar novos contratos com o Poder Público, é imprescindível que ela cumpra uma série de requisitos estabelecidos na lei, cumulativamente: (i) seja concluída a reparação integral do dano causado à Administração Pública; (ii) seja quitada a multa aplicada; (iii) tenha transcorrido o prazo mínimo de 1 ano da aplicação da penalidade, no caso de impedimento de licitar e contratar, ou de 3 anos da aplicação da penalidade, no caso de declaração de inidoneidade; (iv) cumpra todas as condições de reabilitação definidas no ato punitivo; e (vi) seja realizada uma análise jurídica prévia, com posicionamento conclusivo quanto ao cumprimento dos requisitos definidos na norma.

Além de todos eles, como mencionado, a depender da conduta que ensejou a aplicação da penalidade, será obrigatória a adoção de um Programa de Integridade para, só então, ser permitida sua participação em certames e contratações diretas.

A importância de implementar um Programa de Compliance

Como demonstrado, neste artigo, a adoção de um Programa de Integridade foi encorajada na Nova Lei de Licitações, mas não é apenas em decorrência desta nova legislação que se mostra vantajosa a adoção desses mecanismos de controle interno.

O Programa de Integridade, notadamente para quem participa de negócios com a Administração Pública, se mostra um diferencial para mitigar os riscos de práticas indevidas, atribuindo maior segurança a todos os colaboradores e terceiros que atuam em favor da licitante ou contratada, bem como da própria empresa, que reduz a probabilidade de que um representante atue indevidamente e a prejudique.

Com a adoção de mecanismos de prevenção de riscos, todos são encorajados a manter uma cultura de longo prazo de preservação e promoção da ética, bem como são treinados para ter absoluta clareza das normas aplicáveis, dos comportamentos esperados e da postura a ser adotada junta aos servidores públicos, adotando comunicação clara e objetiva, com frases completas e indicando o seu contexto.

Ademais, o Programa pode evitar que, de boa-fé, seja adotada uma conduta indevida, como a concessão de brindes a servidores públicos em valores superiores aos definidos na legislação ou, ainda, que seja concedida uma hospitalidade equivalente àquela ofertada no mercado privado, que pode ser incompatível com a Administração Pública.

Por isso, ao decidir participar de licitações e firmar contratos com a Administração Pública, é recomendável a implementação de um Programa de Integridade, a fim de promover um negócio saudável, longevo e protegido contra os riscos inerentes à atividade. 

Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/compliance/

 

Como citar e referenciar este artigo:
GAMBA, Giovanna. O compliance na nova lei de licitações. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2022. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/o-compliance-na-nova-lei-de-licitacoes/ Acesso em: 21 nov. 2024