Gustavo Schiefler
O inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal prescreve a regra geral de que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, os serviços, as compras e as alienações serão contratados mediante processo de licitação pública.
Em outras palavras, isto significa que, se não houver uma exceção prevista em lei, a Administração Pública deve realizar uma licitação pública se quiser contratar alguém.
O grande ponto sobre este assunto é que, na prática, essas exceções do plano jurídico representam uma parcela muito significativa das contratações públicas. E isto é muito relevante para a compreensão do universo das licitações e dos contratos administrativos, já que, para atuar neste mercado, é indispensável conhecer o que, de fato, acontece no cotidiano da Administração Pública. Veja, ao longo deste texto, a análise detalhada das principais estatísticas do mercado público.
Os dados do Painel de Compras Públicas
Em estatística que pode até parecer contraintuitiva, extraída de dados das compras públicas entre 2016 e 2020, verifica-se que 71,25% dos contratos celebrados pelo Governo Federal decorreram de processos de contratação pública em que não houve licitação. Do total de contratações celebradas pelo Governo Federal, 59,18% foram fundamentadas em hipóteses de dispensa de licitação e 12,07% em hipóteses de inexigibilidade de licitação pública. Aproveitando a oportunidade para conhecer as modelagens estatisticamente mais comuns no universo das contratações públicas, note-se que, das 258.023 licitações realizadas, no período, pelo Governo Federal, 252.692 licitações foram realizadas pela modalidade do pregão eletrônico. Isto significa que o pregão eletrônico foi responsável por 97,93% das licitações públicas realizadas no período.
Essas estatísticas foram bem analisadas por Eduardo Schiefler, em sua dissertação de mestrado (UnB)[1]. Veja-se:
“No período de 2016 a 2020, dos 897.538 processos de compras divulgados no Governo Federal, 531.198 ocorreram por dispensa de licitação e 108.317 por inexigibilidade de licitação, o que corresponde a aproximadamente 71,25% do total de processos. Por sua vez, o restante das compras (28,75%) foi realizado mediante licitação, sendo 252.692 por pregão, 3.134 por tomada de preços, 1.492 por concorrência, 570 por convite, 84 por concurso e 51 por concorrência internacional.
Em valores financeiros despendidos, a ordem de prevalência das modalidades sofre alteração, de sorte que: (i) o pregão representa o principal destinatário dos valores destinados aos processos de compras, atingindo o montante que supera R$ 630 bilhões; em seguida, têm-se (ii) a dispensa de licitação e a inexigibilidade de licitação, as quais representam aproximada e respectivamente R$ 82 bilhões e R$ 78 bilhões; por sua vez, (iii) as demais modalidades de licitação alcançam aproximadamente R$ 10,5 bilhões (concorrência), R$ 1,8 bilhão (tomada de preços), R$ 280 milhões (concorrência internacional), R$ 58 milhões (convite) e R$ 6,6 milhões (concurso). Ademais, observa-se do Painel de Compras que, do total de processos de compras divulgados, a contratação de serviços corresponde a 40,1%, enquanto a de materiais representa 59,9%.
Com o intuito de consolidar as informações que ora foram apresentadas, elaborou-se a seguinte tabela:
Dados disponibilizados no Painel de Compras Públicas[2], referentes às contratações do Governo Federal entre 2016 e 2020: |
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Valor total estimado |
R$ 805.639.740.474,61 |
Valor destinado às ME/EPP |
Mais de R$ 460 bilhões |
Quantidade de ME/EPP contratadas |
101.247 |
Quantidade total de processos de compras |
897.538 |
Representação percentual da contratação de materiais em relação à quantidade total de processos de compras |
Aproximadamente 59,9% |
Representação percentual da contratação de serviços em relação à quantidade total de processos de compras |
Aproximadamente 40,1% |
Quantidade, valores e representação percentual de dispensas de licitação em relação à quantidade total de processos de compras |
531.198 |
Aproximadamente R$ 82 bilhões |
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Aproximadamente 59,18% |
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Quantidade, valores e representação percentual de inexigibilidades de licitação em relação à quantidade total de processos de compras |
108.317 |
Aproximadamente R$ 78 bilhões |
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Aproximadamente 12,07% |
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Representação percentual das contratações diretas (dispensas e inexigibilidades) em relação à quantidade total de processos de compras |
Aproximadamente 71,25% |
Quantidade, valores e representação percentual de pregões (presenciais ou eletrônicos) em relação à quantidade total de processos de compras |
252.692 |
Mais de R$ 630 bilhões |
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Aproximadamente 28,15% |
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Quantidade, valores e representação percentual de tomada de preços em relação à quantidade total de processos de compras |
3.134 |
Aproximadamente R$ 1,8 bilhão |
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Aproximadamente 0,35% |
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Quantidade, valores e representação percentual de concorrências em relação à quantidade total de processos de compras |
1.492 |
Aproximadamente R$ 10,5 bilhões |
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Aproximadamente 0,17% |
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Quantidade, valores e representação percentual de convites em relação à quantidade total de processos de compras |
570 |
Aproximadamente R$ 58 milhões |
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Aproximadamente 0,06% |
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Quantidade, valores e representação percentual de concursos em relação à quantidade total de processos de compras |
84 |
Aproximadamente R$ 6,6 milhões |
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Aproximadamente 0,01% |
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Quantidade, valores e representação percentual de concorrências internacionais em relação à quantidade total de processos de compras |
51 |
Aproximadamente R$ 280 milhões |
|
Aproximadamente 0,006% |
Tabela 2 – Painel de Compras Públicas do Governo Federal (2016 e 2020)
Como se verifica, na prática, quantitativamente o que deveria ser a exceção (contratação direta de bens e serviços), conforme a legislação constitucional e infraconstitucional, acaba se tornando a regra nos processos de compras públicas, ao passo que a regra (contratação mediante processo licitatório) é empreendida em menos ocasiões. Uma possível justificativa para a ocorrência dessa inversão na realidade administrativa, em termos quantitativos, pode estar presente no fato de ser permitido, diretamente e sem licitação, comprar bens e contratar obras e serviços até um determinado valor[3], por dispensa de licitação, nos termos da Lei nº 8.666/1993 (artigo 24, I e II), assim como em situações de emergência ou de calamidade pública (artigo 24, IV).
Por outro lado, dentre as modalidades de licitação, exalta-se a contratação por pregão, cuja sistemática de competição foi, em larga escala, incorporada pela Nova Lei de Licitações[4], de sorte que, sob a sua égide, também passará a ser a regra para as demais modalidades de licitação. A propósito dos pregões, que podem ser empreendidos nas formas presencial ou eletrônica, é importante mencionar uma informação que detém especial pertinência a este trabalho, qual seja, a obrigatoriedade imposta pelo Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019, editado pelo Governo Federal, de que os pregões sejam realizados no formato eletrônico, em detrimento do presencial[5].”
A partir destes dados, pode-se compreender melhor as estatísticas do mercado de contratações públicas.
Compreendendo as Estatísticas do Mercado de Contratações Públicas
Como toda estatística, é importante compreendê-la para além dos números propriamente expostos. Note-se, primeiramente, que uma parcela significativa da estatística se refere à quantidade de contratações, o que não se confunde com o volume financeiro das contratações. Quando se analisa o volume financeiro das contratações, o resultado é distinto.
Daí se verifica que, na prática, a maioria dos contratos administrativos, em termos de quantidade de contratos, são avenças de baixo valor econômico, o que leva à conclusão que a maioria dessas contratações se fundamenta na hipótese de dispensa de licitação em razão do valor. Este cenário tende a se perpetuar com a Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), uma vez que os limites para as contratações por dispensa em razão do valor foram significativamente aumentados.
Portanto, sob a perspectiva dos negócios empresariais, é fato que existe um imenso mercado público em que as empresas são contratadas sem licitação pública. A depender da precificação do produto ou serviço a ser vendido à Administração, o empreendedor precisará dominar muito mais as normas aplicáveis às contratações diretas, sobretudo a dispensa de licitação, do que as regras de licitação propriamente dita.
Ainda que não sejam as mais pujantes sob a perspectiva financeira, as contratações por dispensa de licitação em razão do valor do contrato representam uma parcela muito significativa das contratações públicas brasileiras e, tomando por base o que ocorre no Governo Federal, a maioria em termos quantitativos de contratações.
E a inexigibilidade de licitação?
Note-se, a partir das estatísticas oficiais, que o mercado das contratações diretas por inexigibilidade de licitação também é muito expressivo: aproximadamente R$ 78 bilhões/ano e mais de 12% dos contratos firmados.
Portanto, há também muito espaço para empreendedores que adotam uma modelagem negocial geradora de produtos ou serviços exclusivos, que não podem ser adquiridos livremente no mercado, por inexistirem concorrentes, ou que oferecem serviços técnicos profissionais especializados, com o objetivo de resolver problemas singulares, especiais, extraordinários.
As estatísticas ora apresentadas foram estruturadas em termos relativos ao próprio mercado de contratações públicas, ou seja, a relação de proporcionalidade é interna ao próprio mercado.
Este artigo foi originalmente publicado em: https://schiefler.adv.br/contratacoes-diretas/
[1] SCHIEFLER, Eduardo André Carvalho. Controle das Compras Públicas, Inovação Tecnológica e Inteligência Artificial: o paradigma da administração pública digital e os sistemas inteligentes na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 2021. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2021, p. 29-30.
[2] As informações foram extraídas do Painel de Compras Públicas no mês de abril de 2021, de sorte que eventuais alterações podem ter ocorrido por conta de possíveis correções empreendidas pelo Governo Federal em momento posterior.
[3] Os valores referentes às modalidades de licitação, que são determinadas de acordo com os seus limites (artigo 23 da Lei nº 8.666/1993), foram atualizados pelo Decreto nº 9.412/2018; consequentemente, as contratações diretas por dispensa de licitação, com base no artigo 24, I e II, da Lei nº 8.666/1993, foram majorados para R$ 33.000,00 (obras e serviços de engenharia) e para R$ 17.600,00 (compras e serviços que não configuram de engenharia). Com a Nova Lei de Licitações, estes limites foram majorados ainda mais, para R$ 100.000,00 (obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores) e para R$ 50.000,00 (outros serviços e compras), conforme o seu artigo 75, I e II, assim como o § 1º do mesmo dispositivo legal.
[4]Por exemplo, nos processos licitatórios fundamentados na Nova Lei de Licitações, foi absorvida a característica dos pregões de inverter as fases de julgamento das propostas e de análise da habilitação dos licitantes, de acordo com o artigo 17, IV e V, da nova lei.
[5] Decreto Federal nº 10.024/2019: Art. 1º […] § 1º A utilização da modalidade de pregão, na forma eletrônica, pelos órgãos da administração pública federal direta, pelas autarquias, pelas fundações e pelos fundos especiais é obrigatória.