Direito Administrativo

Da possibilidade de prorrogação de contratos oriundos do inciso V, do art. 24 da Lei nº 8.666/93

Alexandre Castro Sousa[1]

Paulo Henrique Resende Marques[2]

Resumo: Este artigo analisou a possibilidade de prorrogação de contratos decorridos do inciso V, do art. 24, da Lei nº 8.666/93. A importância deste estudo está na falta de debate expresso deste ponto na doutrina e jurisprudência. Chegou-se à conclusão de que tal prorrogação é juridicamente permitida.

Palavras-chave: licitação deserta; contratação direta; serviço contínuo; prorrogação contratual.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de prorrogação de contratos administrativos de serviço contínuo oriundos do inciso V, do artigo 24, da Lei 8.666/93.

A importância desse estudo está na pouca abordagem explícita sobre o tema na doutrina e jurisprudência, tanto é assim que as obras e artigos citados neste exame não estarão falando expressamente sobre a possibilidade, ou não, da prorrogação aqui investigada.

As fontes utilizadas serão doutrina sobre o tema, que, inclusive, conforme mencionado no parágrafo acima, não falam expressamente sobre a prorrogação; e um julgado do Tribunal de Contas da União, que apesar de não tratar claramente desse tema, permite levar a um entendimento.

1 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

É sabido que a regra geral é que os contratos administrativos não podem ser prorrogados, porém a legislação traz algumas hipóteses que permitem essa ocorrência.

Dentre as hipóteses de permissão está o caso de vínculos contratuais de serviços contínuos, conforme inciso II, do artigo 57, da Lei 8.666/93:

Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos:

 […]

II – à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses;

 Esse é o padrão no caso de serviços de natureza continuada, que comporta exceções dentro da própria Lei de Licitações, algumas dessas ressalvas são claras, como a do inciso IV do artigo 24 que veda a prorrogação: 

Art. 24. É dispensável a licitação:

 […] 

IV – nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

 Ou seja, ainda que um contrato seja de serviço contínuo, se ele foi oriundo de uma emergência ou calamidade pública (sem licitação) ele não poderá ser prorrogado e seu prazo máximo será de 180 dias.

Situações há, como a que aqui se analisa, em que podem surgir dúvidas sobre a possibilidade de prorrogação. Trata-se aqui do inciso V, do art. 24, da Lei 8.666/93.

2 DAS POSSÍVEIS INTERPRETAÇÕES ANTE A PRORROGAÇÃO NO CASO DO INCISO V, DO ART. 24, DA LEI DE LICITAÇÕES

Conforme o dispositivo legal que se analisa neste capítulo:

Art. 24. É dispensável a licitação: 

V – quando não acudirem interessados à licitação anterior e esta, justificadamente, não puder ser repetida sem prejuízo para a Administração, mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas;

 A incerteza sobre a prorrogação contratual neste caso pode surgir pois ao mesmo tempo em que este inciso não veda a prorrogação do contrato se o serviço for contínuo, ele condiciona a ausência de licitação ao fato desta justificadamente “não puder ser repetida sem prejuízo para Administração”. De tal forma que havia uma situação de prejuízo que impedia repetir o procedimento licitatório, permitindo, então, uma contratação direta.

Nota-se que esta situação de “evitar prejuízo” do inciso V é diferente e mais abrangente do que a emergência mencionado no inciso IV. Conforme Marçal Justen Filho:

A Administração estaria obrigada a renovar o processo licitatório, na sua etapa externa. No entanto, verifica que a repetição dos atos acarretaria prejuízos ao interesse buscado pelo Estado. Os prejuízos a que se refere o inciso não têm natureza idêntica aos do inc. IV. Se o inc. V estabelece requisitos idênticos aos do inc. IV, seria inútil e desnecessário. Não se exige um prejuízo irreparável ou a periclitação da integridade ou segurança de pessoas etc. O vocábulo “prejuízo” apresenta, naquele dispositivo, significação muito mais ampla do que possui no inc. V.[3]

O que é importante ficar claro é que no inciso IV a lei expressamente veda a prorrogação contratual (além de limitar o prazo a no máximo 180 dias), o que não ocorre no inciso V, em que não há nenhuma vedação expressa quanto à possibilidade de prorrogação.

A celeuma que pode surgir no inciso V é a seguinte: Se a lei apenas permite a ausência de licitação no caso deste inciso quando esta não puder ser repetida, não seria vedada a prorrogação haja vista que durante o prazo de vigência desse contrato oriundo de dispensa licitatória haveria tempo suficiente para iniciar e concluir um novo procedimento de licitação? Se na origem foi necessária uma condição para dispensar a licitação e celebrar o contrato, essa condição pode ser dispensada para que haja a prorrogação do mesmo? Essas perguntas podem levar à interpretação de que não caberia prorrogação contratual neste caso.

Que fique claro que:

Ao contrário do procedimento de dispensa alicerçado no inciso IV, do art. 24, da Lei nº 8.666/93, o procedimento de dispensa ancorado no inciso V, do mesmo artigo, tem como esteio principiológico precípuo não os princípios da indisponibilidade do interesse público e da continuidade do serviço público e sim os princípios da economicidade e da eficiência.[4]

Ou seja, o interesse da Administração Pública em celebrar uma contratação direta no caso do inciso V não está, necessariamente, no risco de ficar sem a prestação de um serviço público, mas no gasto desnecessário com uma nova licitação que tende a não ser frutuosa.

Ainda contra a prorrogação, pode-se ponderar que a licitação é a regra geral, sendo que a prorrogação contratual leva a uma postergação de nova licitação haja vista a permanência do contrato vigente.

Pela possibilidade de prorrogação tem-se que: vedar a prorrogação seria impor uma restrição não prevista expressamente na legislação. Ora, a partir do momento em que foi originado um contrato administrativo decorrente de dispensa de licitação do inciso V, este contrato ganha autonomia e passa a vigorar conforme a Lei de Licitações, e esta é clara em permitir a prorrogação contratual se o serviço for contínuo. Pode-se fazer um paralelo aqui com a autonomia do contrato decorrente de uma ata de registro de preço.

A razão da Lei de Licitação permitir a prorrogação contratual neste tipo de serviço (contínuo) se dá porque: “em razão da necessidade permanente do serviço (continuidade do atendimento do interesse público), é razoável admitir a contratação por prazo superior a um ano em vez de licitações e contratações anuais […]”[5]

Tem-se, assim, que há argumentos para ambos os posicionamentos, tanto para impedir a prorrogação quanto para autorizá-la.

No sentido de posicionamento favorável à prorrogação, pode-se mencionar um julgado do Tribunal de Contas da União em que apesar de não ser específico de serviço contínuo, relaciona a contratação com base no inciso V ao prazo de sessenta meses:

uma vez cumpridas todas as formalidades legais pertinentes que garantam a ampla participação dos licitantes na alienação de materiais e equipamentos, divididos por itens ou unidades autônomas, na modalidade de Concorrência, se ainda assim não acudirem interessados para todas as parcelas ofertadas, é cabível a aplicação do disposto no art. 24, inciso V, da Lei nº 8.666/93, para a venda dos itens e unidades remanescentes, mantidos todos os critérios de habilitação, preço mínimo e demais condições fixadas no edital que deu início ao certame, limitada a dispensa de nova licitação ao prazo máximo de sessenta meses;[6]

Adentrando no princípio da vantajosidade e isonomia, cabe fazer algumas considerações.

No que toca a argumentos de que a prorrogação nesse caso iria contra o princípio da vantajosidade (no que se refere ao preço), é sabido que foi feita uma pesquisa de preços antes da licitação, o que evitaria, a princípio, a aquisição de um serviço contínuo com preço acima do mercado, além disso, o procedimento de prorrogação contratual, por si só, exige a comprovação da vantajosidade, o que obrigaria a um estudo de preço para tal fim. De tal modo que prorrogações de contratos com base no inciso V do artigo 24 não levam a pagamento de preços acima do mercado.

Sem dúvida que a pesquisa de valor para fins de dispensa de licitação deve ser ampla:

Em primeiro lugar, devem ser consultados o maior número possível de empresas do ramo pertinente, não sendo adequado, em homenagem ao princípio da eficiência e da razoabilidade, que o órgão se contente com apenas três cotações.

[…]

Além disso, seria de ótimo alvitre que o setor de compras realizasse a análise de mercado exatamente como o faria caso estivesse diante de uma licitação, ou seja, consultar licitações, contratos e atas de outros órgãos, preços anunciados na internet.[7]

Referente à isonomia tem-se que, realmente, ao permitir a prorrogação com base no inciso V, se estaria perpetuando por até 60 meses uma contratação feita sem licitação, mas fato é que, originalmente, houve uma licitação, ou seja, houve possibilidade de qualquer um participar, porém a mesma foi consagrada deserta, o que permitiu dispensa de licitação.

Lembrando que a contratação por dispensa nesse caso deve obedecer aos mesmos requisitos de habilitação e condições previstos na licitação deserta. Ou seja, se o prazo de execução do serviço previsto no Edital eram de 10 dias úteis, esse prazo não pode ser alargado na futura contratação direta. O mesmo raciocínio vale se o Edital exigiu alguma documentação de qualificação técnica por parte dos licitantes: o contratado por dispensa deverá possuir tal documentação.

Note-se, então, ser possível afastar a alegação de violação ao princípio da isonomia.

Ponto apto a justificar a possibilidade de prorrogação nestes casos é quando o inciso V menciona: “mantidas, neste caso, todas as condições preestabelecidas”. Explica-se. Suponhamos que um edital de licitação coloque em sua minuta contratual a possibilidade de prorrogação. Caso esta licitação seja deserta e haja contratação direta com base no inciso em questão, terão que ser mantidas as mesmas condições, dentre as quais o contrato com previsão de prorrogação.

Jorge Jacoby cita a impossibilidade de se alterar os anexos do Edital mencionados no §2º, do art. 40, da Lei 8.666/93 no caso dessa contratação direta:

Impõe a lógica jurídica que a Administração mantenha as condições ofertadas e exigidas na licitação anterior, pois, se houver qualquer alteração, ficará irremediavelmente comprometido o requisito “ausência de interesse” em participar na licitação.

Efetivamente, não pode a Administração alterar as exigências estabelecidas para a habilitação, tampouco as ofertas constantes do convite ou edital. Essa restrição abrange, inclusive, quando for o caso, a alteração dos anexos do ato convocatório, previstos no art. 40, §2º, da Lei nº 8.666/93, como, por exemplo, o preço estimado pela Administração.[8]

Ora, considerando que a minuta contratual é um anexo ao edital, se essa previa a prorrogação, pelo menos, em tese, deve ficar mantida tal previsão na contratação direta.

Defenderemos nosso posicionamento em sede de conclusão.

3 CONCLUSÃO

É notório que a Lei de Licitações impõe uma série de restrições ao administrador público, de tal modo que se deve evitar interpretações desse regramento licitatório que restrinja ainda mais o agir do gestor.

Conforme mostrado acima, há permissivo expresso de prorrogação de contratos de serviço continuado, sendo que há exceções a tal possibilidade que estão explícitas, como no caso de inciso IV, do art. 24, da Lei 8.666/93.

O mesmo não ocorre no caso do inciso V, onde não há nenhuma vedação manifesta de prorrogação contratual (caso o serviço seja contínuo). Há, inclusive, necessidade de, na contratação direta, manter as mesmas condições previstas na licitação deserta. De modo que, caso o Edital desta licitação autorizasse a possibilidade de prorrogação, nada mais correto que a contratação direta dela decorrente também permita.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão 655/1995. Plenário. Relator: Adhemar Paladini Ghisi. DJ 06/12/1995. Disponível em <http:www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 ago. 2019.

CHAVES, Luiz Claudio de Azevedo. A atividade de planejamento e análise de mercado nas contratações governamentais: estudo prático sobre a atividade de pesquisa de preços nas licitações, dispensa e inexigibilidade da Administração Pública e do Sistema “S”. Curitiba: JML, 2018.

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Licitação deserta/fracassada que não pode ser repetida. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 4, n. 48, dez. 2005. Acesso em: 10 dez 2019.

FROTA, Hidemberg Alves da. Considerações sobre os requisitos para a dispensa de licitação baseada no art. 24, V, da Lei nº 8.666/93. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6, n. 66, jun. 2007. Acesso em: 10 dez 2019.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: 2015.



[1]Doutorando e Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP – Bolsista Capes. Servidor Público Federal. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.

[2]Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo. Advogado.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 417.

[4] FROTA, Hidemberg Alves da. Considerações sobre os requisitos para a dispensa de licitação baseada no art. 24, V, da Lei nº 8.666/93. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6, n. 66, jun. 2007. Acesso em: 10 dez 2019.

[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: 2015. p. 458.

[6]BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão 655/1995. Plenário. Relator: Adhemar Paladini Ghisi. DJ 06/12/1995. Disponível em <http:www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 ago. 2019.

[7] CHAVES, Luiz Claudio de Azevedo. A atividade de planejamento e análise de mercado nas contratações governamentais: estudo prático sobre a atividade de pesquisa de preços nas licitações, dispensa e inexigibilidade da Administração Pública e do Sistema “S”. Curitiba: JML, 2018. p. 247-248.

[8] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Licitação deserta/fracassada que não pode ser repetida. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 4, n. 48, dez. 2005. Acesso em: 10 dez 2019.

Como citar e referenciar este artigo:
SOUSA, Alexandre Castro; MARQUES, Paulo Henrique Resende. Da possibilidade de prorrogação de contratos oriundos do inciso V, do art. 24 da Lei nº 8.666/93. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/da-possibilidade-de-prorrogacao-de-contratos-oriundos-do-inciso-v-do-art-24-da-lei-no-866693/ Acesso em: 22 nov. 2024