Gabriel Pinheiro Chagas
Resumo: Com a pluralidade de interesses públicos submetidos à Administração Pública, que por sua vez detém o dever constitucional de atender em sua plenitude os anseios da sociedade, por ser ela, mera representante da coletividade detentora da titularidade do poder, tornou-se inevitável que esses mesmos interesses públicos entrassem em conflito entre si e exigissem que a Administração criasse novas formas de solução para a colisão entre os difusos e plurais anseios da sociedade.
Acerca da metodologia para a solução do conflito entre interesses públicos e privados, a doutrina já vem há muito apontando críticas e ponderações acerca das formas existentes no trato da colisão entre tais interesses, onde de um lado se tem a chamada supremacia do interesse público a tutelar as postulações de caráter geral, e de outro, juízos de ponderação e proporcionalidade que devem considerar todos os direitos e garantias envolvidos, a bem de salvaguardar os interesses privados, que são, por sua vez, igualmente legítimos.
A partir do que já se consolidou no exame de conflitos entre interesses públicos e privados, procuraremos tratar a questão sob a ótica dos conflitos entre interesses públicos e como se dá a incidência da supremacia em casos de conflitos entre esses mesmos interesses públicos.
Summary: With the plurality of public interests submitted to the Public Administration, which in turn holds the constitutional duty to meet in full the aspirations of society, since it is the mere representative of the collectivity that holds power, it became inevitable that these same public interests conflicted with each other and demanded that the Administration create new forms of solution to the collision between the diffuse and pluralistic aspirations of society.
Regarding the methodology for the solution of the conflict between public and private interests, the doctrine has long been pointing out criticisms and considerations about the existing forms in dealing with the collision between such interests, where on the one hand there is the so-called supremacy of the public interest to protect and on the other, judgments of weight and proportionality which must consider all the rights and guarantees involved, in order to safeguard private interests, which are in turn equally legitimate.
From what has already been consolidated in the examination of conflicts between public and private interests, we will try to deal with the issue from the point of view of conflicts between public interests and how the incidence of supremacy occurs in cases of conflicts between those same public interests.
Palavras chave: Colisão. Conflitos. Interesse Público. Pluralidade. Ponderação.. Proporcionalidade. Razoabilidade. Resolução. Supremacia.
Sumário: 1. Introdução; 2.O conceito de interesse público; 3.A supremacia dos interesses públicos sobre os interesses privados; 4. A pluralidade de interesses públicos e o inevitável conflito entre eles; 5. Conclusões; Referências.
1. Introdução
Tido como ponto central da concepção da teoria do Direito Administrativo moderno e apontado por parcela significativa da doutrina como função precípua da atividade estatal, o conceito jurídico de interesse público e sua ideia de supremacia sobre os interesses privados, vêm permeando um profícuo e intenso debate acerca do papel estatal na proteção de direitos e garantias fundamentais, à medida em que se por um lado a Administração detém o “dever-poder” de concretizar determinadas políticas públicas a bem de toda a coletividade, de igual forma e nas mesmas proporções, possui a vinculação legal de garantir o pleno exercício de direitos igualmente constitucionais, ainda que reputados como de interesse privado.
É desse conflito que advêm as principais propostas alternativas à chamada supremacia do interesse público sobre o privado, que muitas vezes é questionada quanto à sua inexistência constitucional e viabilidade de preponderar sobre direitos positivamente descritos na Constituição da República, como o direito de propriedade por exemplo.
Conquanto seja recorrente no debate doutrinário e jurisprudencial a natureza da supremacia do interesse público e sua efetiva aplicação em detrimento dos interesses privados, não pode passar incólume o fato que a Administração Pública busca atender uma pluralidade de interesses públicos, que lhe são apresentados pelos mais diversos segmentos da sociedade, de maneira que passa a ser inevitável que essa gama de anseios coletivos acabem entrando em conflito entre si, tornando ainda mais delicado falar em supremacia, à medida que todos esses anseios e postulações são todos eles públicos e coletivos.
Com efeito, sem desconsiderar por completo a relevância do debate atinente acerca da prevalência dos interesses públicos em detrimentos dos privados, o presente trabalho se dedicará a abordar com mais profundidade a existência de conflitos entre interesses públicos e o papel da supremacia do interesse público na resolução de colisões dessa natureza.
A partir das ideias de ponderação e proporcionalidade já amplamente difundidas na esteira de conflitos entre interesses públicos e privados, buscaremos indicar as soluções existentes quando o conflito se dá entre interesses públicos à luz da própria supremacia.
2. O conceito de Interesse Público
Embora já exaustivamente descrito e conceituado pela doutrina dedicada ao tema, a descrição daquilo que se entende por interesse público e a importância desse binômio para a compreensão do Direito Administrativo, é de fundamental relevância para termos clara a extensão da definição do chamado interesse público, suas implicações e as razões pelas quais se afirma que há uma supremacia de sua incidência sobre os interesses privados.
No direito brasileiro, a definição de interesse público mais recorrente e clássica é a adota por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, para quem interesse público se caracteriza por ser o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem.[1]
Em proposta mais recente acerca da essência do interesse público, a professora da Universidade de São Paulo, ODETE MEDAUAR, assentou que interesse público é a própria razão de ser do Direito Administrativo, o que norteia as ações estatais e dá suporte à atuação estatal:
A noção de interesse público aparece, ao mesmo tempo como fundamento, limite e instrumento do poder; configura medida e finalidade da função administrativa. Já foi utilizada no direito francês como de caracterização do direito administrativo. Subjacente a grande número de institutos do direito administrativo, apresenta-se como suporte e legitimidade de atos e medida no âmbito da Administração, sobressaindo com frequência nos temas do motivo e fim dos atos administrativo.[2]
A partir da constatação de que a existência do interesse público e sua aplicação se dá em praticamente toda conduta estatal, tem-se que a observância do interesse público é o que garantirá e permitirá a legalidade dos atos administrativos, pois sem que atinja de forma plena toda a coletividade interessada, não é possível falar que o ato administrativo atingiu sua finalidade.
Disso decorre a constatação de que a Administração Pública deve perseguir o interesse público em toda sua atuação, pois este é o motivo de sua existência, o que determina a forma e as finalidades do exercício da função administrativa.
Por ser a própria razão de ser da Administração Pública e o mote de toda a sua atuação, não parece exagero reconhecer que o interesse público é a perfeita tradução do art. 1º, parágrafo único da Constituição da República[3], à medida em que a consagração do interesse público nada mais é que o atendimento aos anseios do povo, detentor da titularidade do poder e em nome de quem, o Estado implementa suas atividades e funções.
3. A Supremacia do Interesse Público sobre os Interesses Privados
Justamente em razão de sua imprescindibilidade para o exercício da função administrativa e por ser em verdade, a própria essência do Direito Administrativo, à medida que se destina a atender aos anseios da população, por sua vez apontada constitucionalmente como verdadeira titular do poder conferido aos entes estatais, a observância do interesse público passa pela necessidade do Ordenamento garantir e atribuir certos privilégios à Administração para que possa concretizar suas políticas e atingir os seus fins.
Essas prerrogativas e privilégios confiados à Administração Pública, abarcados no conceito de “dever-poder”, são para os seus entusiastas a força motriz que permite ao Estado implementar suas medidas voltadas ao interesse público, sem o que, seriam muito diminutas as possibilidades de o Poder Público atingir a contento suas obrigações.
Em virtude disso, parte da doutrina advoga que o interesse público esteja em patamar elevado em relação aos interesses privados, a fim de que possam ser concretizados de uma maneira satisfatória, reverberando seus efeitos a toda a sociedade. E é justamente essa diferenciação entre interesses públicos e privados, e uma suposta prevalência do primeiro sobre o segundo, que se denomina de supremacia do interesse púbico sobre o privado, mecanismo jurídico apto a conferir legitimidade à predominância de certas atuações estatais que venham a relegar ou suprimir certos interesses privados.
Novamente nas palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, o princípio da Supremacia do Interesse Público resume-se da seguinte forma:
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.
(…)
Significa que o Poder Público se encontra em situação de autoridade, de comando, relativamente aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses os interesses públicos postos em confronto. Compreende, em face da sua desigualdade, a possibilidade, em favor de ato unilateral daquela. Implica, outrossim, muitas vezes, o direito de modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas.[4]
Em raro trabalho sobre o tema, o professor DANIEL HACHEM, sustenta que a incidência do princípio da supremacia do interesse público sobre os privados se dá quando constatado um conflito entre interesses públicos tutelados juridicamente e interesses privados não tutelados juridicamente e, de igual forma, em conflitos entre interesses ditos gerais e outros ditos específicos, cingidos a determinados grupos sociais.
Vejamos:
As colisões de interesses capazes de ser resolvidas pela aplicação do princípio em epígrafe podem ser de duas ordens: (i) entre um interesse juridicamente resguardado e outro não tutelado pelo Direito positivo; (ii) entre dois interesses albergados pelo sistema normativo, sendo um deles atinente à coletividade em si mesma considerada (interesse geral) e outro relativo a interesses de indivíduos ou grupos determinados (interesses específicos). A supremacia de um interesse sobre outro se dará distintamente, conforme cada uma dessas situações.[5]
Com relação à primeira hipótese levantada, não nos parece ser o caso de conflitos entre interesses públicos e privados a hipótese da Administração Pública se ver confrontada com interesses juridicamente inexistentes e até censurados pelo Ordenamento – como o caso do interesse pessoal de certo integrante de comissão de licitação trabalhar para ver um conhecido seu vencedor de uma licitação.
Parece-nos, nessas circunstâncias, tratar-se de legalidade x ilegalidade, de modo que em casos como este, não há nem que se falar em supremacia do interesse público sobre o privado, mas sim, na impossibilidade jurídica da Administração atuar para além dos limites da legalidade, sendo defeso a ela consentir com qualquer tipo de ilegalidade.
Na hipótese, portanto, de “conflitos” entre interesses legítimos e ilegítimos, não é a supremacia do interesse público que arbitrará a solução fática, mas o próprio princípio da legalidade, que imporá à Administração a obrigatoriedade de impor a solução prevista em lei, inclusive acenando com a hipótese de sanção àquele que externou ao Poder Público interesse não abarcado (e talvez censurado) pelo Ordenamento.
Em casos como este, temos que a preponderância do interesse público não se dará em razão da supremacia deste em relação aos privados, mas pelo fato de que somente há apenas um direito juridicamente tutelado no caso concreto que deve, por óbvio, prevalecer em detrimento daquele interesse inexistente juridicamente.
Temos que só é possível falar em supremacia do interesse público sobre o privado, quando está-se diante de interesses públicos legítimos confrontados com interesses particulares igualmente legítimos e tutelados juridicamente, ocasião que haverá de ser dado prioridade ao interesse público para fins de observância ao art. 1º, parágrafo único da Constituição Federal. Dito de outro modo, o fato da Administração Pública se ver confrontada com interesses privados ilegítimos, impõe que este seja rechaçado em virtude de sua ilicitude, independente de qualquer supremacia do público sobre o privado.
Superada essa ponderação, importante abordar as razões que levam às ressalvas ao princípio da supremacia do interesse púbico e as soluções advogadas por seus críticos para a resolução de conflitos entre interesses públicos e privados.[6]
3.1 – Ponderações e ressalvas à Supremacia do Interesse Público
Muito em razão da sua concepção de prerrogativas do Poder Público em face dos interesses particulares e da ideia de comando e primazia do Estado no que concerne ao atendimento do interesse público, parte da doutrina vem defendendo com cada vez mais ênfase que o princípio da Supremacia do Interesse Público carrega em si uma conotação autoritária do Direito Administrativo, de maneira que outras formas de se observar e solucionar os atritos entre interesses públicos e privados devem ser levadas em consideração, mantendo a equidade na relação entre os dois regimes jurídicos.
Dentre os críticos do princípio ora em exame, os professores HUMBERTO ÁVILA[7] e GUSTAVO BINENBOJM[8] asseveram sucintamente que a supremacia do interesse público não pode ser reputada como princípio constitucional por não haver correspondente expresso na Constituição da República e por supostamente confrontar com os valores já positivados na mesma Carta.[9]
Comungando da crítica formulada pelos outros dois autores, ALEXANDRE SANTOS ARAGÃO aponta que se a supremacia do interesse público sobre o privado fosse de fato um princípio, na prática não seria sequer um princípio jurídico, porque estes admitem ponderação e podem deixar de incidir, ou incidir com menor intensidade[10], o que não se coaduna ao conceito de princípio atribuído à Supremacia do Interesse Público, posto que esta deverá sempre prevalecer em detrimento dos interesses privados.
Em comum entre todos os críticos da Supremacia do Interesse Público sobre o privado, está o fato de que o que deve preponderar em qualquer conflito entre interesses legítimos, não é o fato de um deles ser pretensamente superior e gozar de certos privilégios e prerrogativas, mas sim a necessidade de todos os direitos e valores envolvidos serem analisados e considerados para que à luz do caso concreto, a melhor solução seja tomada contemplando todos os direitos e interesses envolvidos, sejam eles públicos ou privados.
A sintetizar essa constatação, mais uma vez vale a lição de ALEXANDRE SANTOS ARAGÃO:
Concordamos com as críticas ao princípio da supremacia do interesse público. De fato, as situações disciplinadas pelo direito público são muito mais complexas do que aquela que poderia ser resolvida por uma abstrata e geral prevalência do interesse público sobre o interesse privado. O que deve ser feito é ponderar os diversos interesses juridicamente tutelados que estiverem em jogo, sejam eles públicos ou privados, ponderação esta que só pode ser realizada diante de cada situação.[11]
Segundo os partidários dessa mitigação e até mesmo negação da Supremacia do Interesse Público, a substituição dessa alegada supremacia, em que o Estado, enquanto representante da vontade popular, sempre prevalecerá quando em conflitos com direitos privados igualmente tutelados pela Constituição, representa em verdade, a própria noção de Democracia e igualdade, à medida que todos os sujeitos à Lei são colocados em um mesmo patamar à espera da aplicação legislativa, sem privilégios ou prerrogativas.
Ou seja, retirar da Administração Pública o monopólio de sempre sagrar-se vencedora em disputas contra o interesse privado, apenas por ser ela supostamente, titular da obrigação de atender o interesse público, seria uma forma de impedir o retrocesso ao autoritarismo, e garantir que também o Estado está abaixo da Lei e deve, tal qual o ente privado, demonstrar a viabilidade jurídica de seu interesse.
A refutar as críticas destinadas à Supremacia do Interesse Público e de sua suposta veia autoritária, o já citado DANIEL HACHEM o faz com eloquência ímpar, expondo e esclarecendo a natureza da supremacia do interesse público sobre o privado. Confira-se:
Como se buscou demonstrar acima, há disposições constitucionais nas quais se pode encontrar fundamentos normativos de validade do princípio sob exame, o que, por si só, derrubaria a crítica de que não se está falando de uma norma-princípio. A questão é que o simples fato de o princípio constitucional da supremacia do interesse público encontrar um correlato na “ética comunitária” ou na “política jurídica” não afasta a sua condição de princípio jurídico. Essa é uma característica compartilhada por diversos princípios constitucionais, que muito embora consubstanciem valores que foram juridicizados pela Constituição na forma de normas jurídicas, jamais deixaram de encontrar suas origens na ética, na política ou na filosofia. Três exemplos de princípios constitucionais bastam para desfazer o argumento: a democracia, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa humana.[12]
Com efeito, é este o cenário que permeia a discussão sobre a Supremacia do Interesse Público e sua efetiva aplicabilidade em casos de conflito envolvendo interesses públicos e privados.
3.2 – Critérios de Solução envolvendo interesses públicos e privados
Em decorrência das críticas tecidas ao conceito de princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o privado e conforme já vimos brevemente anteriormente, as propostas à sua substituição giram em torno da necessidade de os direitos e interesses envolvidos serem ponderados e cotejados à luz da proporcionalidade.
Principal partidário dessas colocações, GUSTAVO BINENBOJM assevera que a que as dimensões individuais e coletivas convivem concomitantemente no Texto Constitucional e essa equiparação impõe ao intérprete que sopese e pondere direitos no momento de implementar determinadas políticas públicas, à medida que todos os direitos e interesses envolvidos não destoam entre si, não cabendo falar em prevalência de nenhum deles, mas sim em ponderação entre todos. Confira-se:
O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre outros. Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em um dado confronto de interesses é procedimento que reconduz o administrador público à interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e na lei, e, via de regra, o obriga a realizar seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo dever de proporcionalidade.[13]
Em resumo, é essa a ideia de ponderação que muitos sustentam ao tratar de conflitos entre interesses públicos e privados, desconstituindo a prevalência imediata do primeiro sobre o segundo e apontando que à luz da proporcionalidade, todas as medidas e impactos daquele determinado confronto sejam avaliados e considerados.
4. A pluralidade de interesses públicos e o inevitável conflito entre eles
Com efeito, embora exista uma conceituação clara do conflito entre interesses públicos e privados, e uma proposta para a resolução de tais de conflitos, quer seja pela incidência da supremacia, quer seja pela aplicação das técnicas de ponderação e proporcionalidade, o mesmo não se pode afirmar quando o conflito se dá entre interesses públicos.
Todo interesse público tem uma relevância social e uma importância para um dado segmento da sociedade, de maneira que não podemos afirmar que há uma prevalência de interesses públicos em detrimento de outros também públicos, que devem de alguma forma, serem harmonizados entre si.
A Administração Pública se relaciona com diversos interesses, todos igualmente públicos e que requerem atenção plena e eficaz do Estado, de modo que em casos como esses, a heterogeneidade entre muitos desses inúmeros interesses públicos, por vezes impede a observância concomitante de cada um deles.
Bem por isso, se mostra até temerário falar em homogeneidade do interesse público, como se fosse algo comum e satisfatório a toda coletividade e aos integrantes de uma certa sociedade.
Nas palavras de ODETE MEDAUAR, a concepção de um interesse público plural e coletivo, impossível de ser comum a todos os partícipes de uma sociedade resume-se ao fato de que a uma ideia de homogeneidade do interesse público, segue-se uma situação de heterogeneidade e da visão de unicidade, passou-se à concreta existência de multiplicidade de interesses públicos.[14]
Na mesma toada, FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO assentou que a proliferação de interesses tão díspares entre si, não permite mais que se diga que há apenas um interesse público. Vejamos:
De outro turno, a exógena refere-se à efetiva impossibilidade de se falar em um único interesse público, mas, sim, de um conjunto de interesses coletivos dotados de legitimidade, que não podem ser alijados de ponderação no norte da atividade estatal, decorrentes da proliferação de grupos de pressão no ambiente público.[15]
Logo, é necessário para a compreensão da extensão do interesse público e de tudo o que ele representa, que ele seja visto como algo plural, que congrega os anseios dos mais diversos polos da sociedade.[16]
Não sendo o interesse público um interesse único, isolado, que permita ao Poder Público sempre atendê-lo sem maiores consequências, sem impacto em outros interesses também públicos, o desafio que se coloca ao administrador é como eleger o interesse público a ser atendido, à medida que se todos são públicos, todos teriam supremacia, e ao hipoteticamente possuírem supremacia, devem ser atendidos de maneira prioritária em detrimento de todos dos demais.
Nesse sentido, temos que em se tratando de conflitos entre interesses públicos, é incabível falar em supremacia, pois claramente o conceito de supremacia se dá em comparação em confronto com interesses privados, ao passo que quando o conflito for com outros interesses públicos, a supremacia por óbvio está mitigada, impondo ao administrador que aponte outros critérios e formas de solução.
Sobre isso, MARÇAL JUSTEN FILHO muito bem pondera que diante da pluralidade de interesses públicos a serem tutelados pelo Estado, merecedores de igual proteção, o princípio da Supremacia do Interesse Público não fornece qualquer critério para identificar a solução compatível com o direito.[17]
Com efeito, conquanto a solução de ponderação encontre ressalvas acerca de sua aplicação nos conflitos entre interesses públicos e privados, à medida que a imposição do interesse público sobre o privado é, em verdade, a consagração do art. 1º, parágrafo único da Constituição da República, em se tratando de conflitos entre interesses públicos parece não haver outra alternativa que não o instituto da ponderação, tendo em vista que nesse particular inexiste a figura da supremacia.
Isso porque, a pluralidade de interesses públicos quase sempre gera interesses colidentes e contraditórios entre si, de forma que competirá à Administração Pública ponderar a partir da razoabilidade e proporcionalidade qual o interesse público deve ser atendido.
Assim, dentro de um conceito de equilíbrio e isonomia, o eminente jurista argentino JUAN CARLOS CSSAGNE assevera que o que deve prevalecer é o bem comum no qual se encontram todos os interesses individuais e coletivos, e os eventuais conflitos devem ser resolvidos ou pelas autoridades administrativas ou pelos juízes, dentro da justiça e, inclusive, com equidade.[18]
Por força da equivalência entre os interesses públicos, que não comportam qualquer tipo de supremacia entre si, temos que no tocante à resolução de conflitos entre interesses dessa natureza, haverá de ser empregado o instituto da ponderação.
5. Conclusões
A despeito de toda a discussão envolvendo o princípio da Supremacia do Interesse Público, é inegável que até mesmo aqueles que a criticam não rejeitam a existência e a importância do interesse público para a consecução de certas atividades estatais. Disso decorre, que não há como se afastar que o interesse público é a razão de existir do Direito Administrativo, de forma que atender o interesse público é atender na plenitude o art. 1º, parágrafo único da Constituição da República.
Acerca da forma de atendimento ao interesse público e seus reflexos no Estado Democrático de Direito, repousam as principais dúvidas quanto à sua incidência plena e irrestrita em face de interesses privados – a chamada supremacia do interesse público. A partir da consagração do princípio da supremacia do interesse público sobre os privados, parcela da doutrina se dedicou a apontar supostas falhas e inconsistências em sua estrutura e apontou que, em detrimento da apontada supremacia, a Administração Pública estaria vinculada a ponderar e realizar juízos de proporcionalidade e razoabilidade antes de interferir em esferas de direito privado.
Conquanto controversas, as soluções envolvendo os conflitos entre interesses públicos e privados, são claras e precisas, divididas entre aqueles que defendem a supremacia do interesse público e aqueles que sustentam o juízo de ponderação, mas no que toca aos conflitos entre interesses públicos, não se vislumbra a mesma clareza de solução.
Isso porque, por serem públicos e legítimos, os interesses envolvidos não estão sujeitos a qualquer tipo de supremacia ou privilégios, de maneira que nesse particular, não há como a Administração Pública invocar qualquer prerrogativa.
Nesse sentido, a partir da análise de ponderação e razoabilidade proposta em outras esferas de conflitos, em se tratando de conflitos entre interesses públicos, a ponderação entre direitos se mostra a medida mais equânime e eficaz.
Gabriel Pinheiro Chagas: Advogado. Especialista em Direito Administrativo pela FGV-SP e mestrando em Direito Administrativo pela PUC-SP.
Referências
ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo, 2ª Edição. Editora Forense. 2013
ÁVILA, Humberto, Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”, Revista Diálogo Jurídico, ano I, vol. I, nº .7
BINENBOJM, Gustavo, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, nº 239.
CASSAGNE, Juan Carlos Os grandes princípios do Direito Público, 1ª Edição. Editora Contracorrente. 2017.
DE MELLO, Celso Antônio Bandeira, Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, Malheiros Editores, 2015;
HACHEM, Daniel Wunder, O princípio Constitucional da Supremacia do Interesse Público. 1ª edição, Editora Fórum, 2012;
MEDAUAR, Odete, O Direito Administrativo em evolução; 3ª edição, Gazeta Jurídica, 2012;
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação Estatal e Interesses Públicos, 1ª Edição. Malheiros Editores. 2002.
SCHIRATO, Vitor Rhein, Livre Iniciativa nos Serviços Públicos, 1ª Edição. Editora Fórum. 2011.
[1] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira, Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, p.63.
[2] MEDAUAR, Odete, O Direito Administrativo em evolução; 3ª edição, p. 230.
[3] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[4] DE MELLO, Celso Antônio Bandeira, Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, p.70 e 71
[5] HACHEM, Daniel Wunder, O princípio Constitucional da Supremacia do Interesse Público. 1ª edição, p.183
[6] Importa assentar brevemente que não nos dedicaremos no presente artigo a fazer qualquer análise crítica a respeito da natureza do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e tampouco adentrar na discussão a respeito de ser o aludido princípio fruto de um Direito Administrativo autoritário. Nosso objetivo aqui é apontar que além dos conflitos entre interesses públicos e privados, também a figura do conflito entre interesses públicos merece atenção, de maneira que a concepção das críticas e soluções acerca da supremacia do interesse público contribui para o exame dos conflitos entre interesses públicos.
[7] ÁVILA, Humberto, Repensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”,Revista Diálogo Jurídico, ano I, vol. I, nº .7
[8] BINENBOJM, Gustavo, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, nº 239.
[9] BINENBOJM, Gustavo, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, nº 239, p 12.
[10] ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo, 2ª Edição. p. 82
[11] ARAGÃO, Alexandre Santos. Curso de Direito Administrativo, 2ª Edição. p. 82
p. 83
[12] HACHEM, Daniel Wunder, O princípio Constitucional da Supremacia do Interesse Público. 1ª edição, p.216.
[13] BINENBOJM, Gustavo, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o Direito Administrativo, Revista de Direito Administrativo, nº 239, p. 20
[14]MEDAUAR, Odete, O Direito Administrativo em evolução; 3ª edição, p. 243
[15] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Regulação Estatal e Interesses Públicos, p. 144 e ss.
[16] A respeito disso, Vitor Rhein Schiratto muito bem pondera que o interesse público deve ser analisado a partir de uma vertente pluralista, na qual não há apenas um interesse público, mas sim diversos interesses coletivos legítimos, bem como na qual não há, de maneira necessária, uma contraposição imanente entre interesses públicos e interesses privados, em razão do conteúdo garantístico da Constituição Federal, pautado sobre os direitos fundamentais.(SCHIRATO, Vitor Rhein, Livre Iniciativa nos Serviços Públicos. p.143).
[17] JUSTEN FILHO, O Direito Administrativo do Espetáculo…Op. Cit. p. 79
[18] CASSAGNE, Juan Carlos Os grandes princípios do Direito Público, p. 405 e 406.