Luciana de Jesus Silva Lobato Almeida.*
Resumo
A licitação é um importante procedimento administrativo pelo qual a Administração Pública direta e indireta contrata com terceiros para a satisfação de necessidades imediatas. Originariamente, a Lei de licitações instituiu como finalidades desta ferramenta a observância do princípio constitucional da isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa. No entanto, a Lei nº 12.349/2010 adicional o desenvolvimento nacional sustentável às finalidades de licitação e contratação pública, assim como as margens de preferências. Logo, o presente artigo destina-se ao estudo destas inovações como instrumento da atividade de fomento da Administração. Através do método bibliográfico, serão traçadas considerações teóricas acerca da função de fomento e sua realização por intermédio do processo licitatório, tendo em vista as novações inseridas pela Lei nº 12.349/2010.
Palavras-chave: Atividade de fomento. Administração Pública. Licitação. Desenvolvimento nacional sustentável. Margem de preferência.
Abstract
The bidding process is an important administrative procedure by which the Public Administration directly and indirectly contracts with third parties to satisfy immediate needs. Originally, the Bidding Law instituted as objectives of this tool the observance of the constitutional principle of isonomy and the selection of the most advantageous proposal. However, Law nº 12.349 / 2010 added the sustainable national development to the purposes of bidding and public procurement, as well as the preferences margins. Therefore, this article is intended to study these innovations as an instrument of the business development activity. Through the bibliographic method, theoretical considerations will be drawn about the promotion function and its fulfillment through the bidding process, in view of the novation inserted by Law 12.349 / 2010.
Key-words: Development activity. Public administration. Bidding. Sustainable national development. Preferential margin.
Introdução
A Lei de licitações fora originariamente criada exclusivamente para propiciar ás entidades administrativas a possibilidade de realizarem negócios mais vantajosos e assegurar o princípio constitucional da isonomia.
Contudo, com o advento da Lei nº 12.349/2010, surgiu a possibilidade de o Estado lançar mão do instituto jurídico das licitações como mecanismo de efetivação da atividade de fomento.
Assim, o Estado passa a utilizar seu grande potencial de compra para a mobilização de diversos setores da economia, influindo em seu comportamento de modo a promover o desenvolvimento sustentável.
A Lei nº 12.349/2010 inseriu uma nova finalidade as licitações e contrações do ente público e terceiros. O princípio do desenvolvimento nacional sustentável leva a licitação e contratação a atender além das necessidades que ensejaram a abertura do certame, passando a exigir o atendimento de necessidades mediatas, ligadas aos diversos setores do desenvolvimento nacional.
Além deste princípio, a citada Lei traz importantes mecanismos de execução do desenvolvimento, uma vez que permite a incidência de percentuais sobre determinados produtos e serviços, as chamadas margens de preferência.
O interessante é a forma como o Estado busca promover esse desenvolvimento, pois, não o faz de forma direta, mediante prestação de serviços públicos.
Com isso, as inovações abrem caminho para a Administração Pública faz uso do processo licitatório para o desempenho da função de fomento. O fomento ou função promocional do Direito autoriza a incidência da norma jurídica, ao menos indiretamente, sob a conduta do particular, de modo a induzi-lo á condutas ativas e omissivas reputadas como desejáveis para certos fins.
Esse modelo jurídico que busca induzir o comportamento do mercado em direção a práticas socialmente desejáveis, lança mão de mecanismos não cogentes, fixando comandos normativos produtores de premiação às condutas desejáveis, tornando-se, pois, mais atrativo ao particular.
A atuação desenvolvida pelo Estado não é destinada a satisfazer diretamente um interesse público. Pois, o atendimento aos interesses sociais é produzido pelos particulares na realização de suas atividades econômicas.
Porém, o que coloca o interesse particular em harmonia com o interesse público é os incentivos normativamente previstos. É o a atribuição de prêmios aos agentes que os estimulam a praticar as condutas desejadas pelo Estado como necessárias à vida social.
É nessa perspectiva que atua o processo licitatório depois da Lei nº 12.349/2010. Destarte, premia o particular que adota comportamento ambientalmente sustentável, por exemplo, com a celebração do contrato com a Administração Pública. Ou, permite a contração de produto por preço mais elevado, desde que a empresa comprove cumprimento de reserva de cargos para pessoas com deficiência.
1. A função promocional do direito segundo Norberto Bobbio.
Cumpre ressaltar, no presente trabalho, algumas considerações feitas por Bobbio em sua obra “Da estrutura à função”, na qual tece questões acerca de novos estudos de Teoria do Direito.
Nessa obra, o autor mostra a existência de dois modelos jurídicos distintos, o modelo protetor-repressivo e o modelo promocional. O primeiro está atrelado à concepção jurídica clássica, baseada na noção de direito como ordenamento coativo[1], constante no pensamento de importantes autores, como Christianus Thomasius em sua teoria do direito como um conjunto de normas negativas[2]. Em contra partida, o segundo modelo vincula-se à nova realidade do Estado Moderno, o qual necessita, para além das normas de proteção e repressão, do uso de técnicas de encorajamento. Bobbio explica esses dois entendimentos de ordenamento jurídico de forma muito clara:
Em poucas palavras, é possível distinguir, de modo útil, um ordenamento protetivo-repressivo de um promocional com a afirmação de que, ao primeiro, interessam, sobretudo, os comportamentos socialmente não desejados, sendo seu fim precípuo impedir o máximo possível a sua prática; ao segundo, interessam, principalmente, os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim a realização destes até mesmo aos recalcitrantes[3].
Com isso, para Bobbio, a inserção das técnicas de encorajamento reflete uma transformação na função do sistema normativo em seu todo e no modo de realizar o controle social, à medida que se volta mais a favorecer as ações vantajosas do que em desfavorecer as nocivas (controle passivo), caracterizando, portanto, um controle mais ativo[4].
Dentro dessa visão funcional, destaca-se ainda que as medidas de desencorajamento são utilizadas com o objetivo de conservação social, ou seja, visa a permanência das coisas como estão; e a as medidas de encorajamento possuem o objetivo da mudança, de transformação da situação atual.
Ao longo das análises trazidas na supracitada obra, Bobbio leva à constatação de que o Estado assistencial contemporâneo não mais comporta apenas o sistema protetivo-repressivo, suas necessidades suscitam normas de incentivo, dar-se vida, pois, á técnicas de estímulo e propulsão no intuito de estimular atos inovadores considerados socialmente úteis e desejáveis[5].
Como visto, o desenvolvimento e aplicação de sanções positivas ou premiais, as quais dirigem-se às condutas socialmente desejáveis com a produção de prêmio ao agente, configura a chamada função promocional do Direito. Esta vem ganhando cada vez mais espaço no direito positivo de diversos países, inclusive no Brasil, frente à função repressiva, sem, contudo, eliminá-la.
Portanto, a função promocional do Direito suscita a pretensão de mudança social, visando a persecução de fins considerados de interesse público. Levando esta percepção ao Direito brasileiro, a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 3º traça os objetivos que devem ser perseguidos pela República Federativa do Brasil sob as suas diversas formas de atuação. Com isso, uma das formas de atingir tais objetivos, tendo em vista a atuação da Administração Pública e a função promocional do Direito, é através da atividade de fomento, a qual se concretiza por diferentes superfícies.
2. Atividade administrativa de fomento
A atividade de fomento constitui uma das diversas facetas do Estado na realização dos fins que lhe são impressos pela Constituição Federal. Esta atividade apresenta características peculiares fundamentais para a perquirição do interesse social, concreção dos direitos humanos e desenvolvimento nacional sustentável.
Dessa forma, a Constituição Federal impõe ao Estado deveres de estímulo, os quais se realizarão por meio da atividade de fomento. A concepção de fomento fora trabalhada por importantes autores, dentre eles, Marçal Justen Filho elabora a seguinte definição:
Fomento é uma atividade administrativa de intervenção no domínio econômico para incentivar condutas dos sujeitos privados mediante a outorga de benefícios diferenciados, inclusive mediante a aplicação de recursos financeiros, visando a promover o desenvolvimento econômico e social.[6]
De forma semelhante, igualmente importante, conceitua Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
[…] função administrativa através da qual o Estado ou seus delegados estimulam ou incentivam, direta, imediata e concretamente, a iniciativa dos administrados e de outras entidades, públicas e privadas, para que estas desempenhem ou estimulem, por seu turno, as atividades que a lei haja considerado de interesse público para o desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.[7]
Primeiramente, observa-se que a o fomento constitui uma atividade administrativa, a qual será desempenhada pela Administração Pública em sentido objetivo, que atua visando o desempenho de uma função pública.[8]
Um segundo aspecto dirige-se ao incentivo á iniciativa privada de interesse público. Significa dizer que o Estado, a fim de perseguir a concretização dos preceitos constitucionais e infraconstitucionais, volta seus esforços á persuasão do particular à consecução de medidas em que se concilie o interesse público com o individual. Portanto, tem-se uma atuação conjunta, de colaboração entre Estado e particular, aquele atua buscando afetar a conduta deste, de forma que adote postura ativa ou omissa apreciada como desejável para a realização de determinados fins[9]. Dessa forma preleciona Célia Cunha Mello:
O fomento público é instituto que permite ao particular colaborar com a Administração Pública no exercício de suas atividades, cuja característica principal é justamente a colaboração com o poder público. Figura como uma atividade paralela ao Estado, como uma atividade que atua na vizinhança com o serviço público. O fomento não é serviço público e não é atividade inteiramente privada. Ele está numa zona intermediária. [10]
Adiante, talvez uma das principais características da atividade ora analisada seja a ausência de utilização de instrumentos cogentes. Como supramencionado, o fomento consiste no estímulo à adoção de certos comportamentos pelo particular, o que não permite a aplicação de qualquer tipo de força cogente. Ademais, como afirma Marçal Justen Filho, a imposição de comandos normativos qualificadores das condutas desejadas, não são obrigatórios ou proibitivos, mas permitem a faculdade de adesão ou não do particular ao preceito.[11]
Cumpre salientar, que para alguns autores não há potestade sancionadora apenas na fase inicial, pois, neste momento o que se busca é incentivar os interessados, mas após este momento é possível a aplicação de medidas coercitivas, como afirma Célia Cunha Mello:
[…] compete à administração exigir que o agente fomentado cumpra todos os requisitos ensejadores da concessão das vantagens que passou a perceber nessa condição, oportunidade em que a Administração Pública dispõe de medidas autoexecutórias e deve recorrer aos instrumentos fiscalizadores, preventivos e repressores, utilizando, inclusive, medidas coercitivas, em nome do interesse público.[12]
De tal modo, a Administração apenas convence o particular a fazer ou deixar de fazer voluntariamente determinada prática apta á satisfazer as necessidades públicas, culminando em uma atuação indireta do Estado, pois, o Estado não realiza diretamente a finalidade pretendida, mas leva o particular á realizá-la[13]. Maria Sylvia Zanella Di Pietro mostra um ótimo exemplo dessa atuação indireta:
É normalmente utilizado quando o Poder Público quer incentivar a iniciativa privada de interesse público. Ao invés de o Estado desempenhar, ele mesmo, determinada atividade, opta por incentivar ou auxiliar o particular que queira fazê-lo, por meio de auxílios financeiros ou subvenções, financiamentos, favores fiscais etc. A forma usual de concretizar esse incentivo é o convênio.[14]
Para tanto, a atividade de fomento deve estar prevista em lei, em consequência do princípio da legalidade inerente à atuação da Administração Pública. Destarte, há uma variedade de instrumentos jurídicos aptos a concretizarem o fomento. Em alguns casos, o fomento utiliza indiretamente um instrumento criado para outro fim, como, por exemplo, a promoção do desenvolvimento nacional por meio da contratação pública, questão do presente artigo. De outro lado, há providências específicas e isoladas, como no caso em que o Estado disponibiliza ajuda pecuniária a um particular para que este desempenhe atividade socialmente útil.[15]
Em suma, a atividade de fomento configura uma verdadeira exteriorização da função promocional do Direito. Assim, o Estado desenvolve sua competência direcionando-se a influir nas decisões dos particulares para que estes desenvolvam atividades socialmente indispensáveis ao desenvolvimento nacional sustentável, assim como à realização dos direitos fundamentais.
3. As inovações apresentadas pela Lei nº 12.349/2010 a Lei de licitações
3.1. Noções gerais
O Poder Público não dispõe de total liberdade quando pretende adquirir, alienar, locar bens, ou contratar a execução de obras ou serviços a fim de suprir suas necessidades. Para tanto, a Constituição Federal de 1998 impõe a Administração Pública o dever de realizar tais pretensões por meio de um procedimento determinado e preestabelecido em lei, chamado de licitação.[16]
O processo licitatório surge em virtude das imposições constitucionais feitas á atuação da Administração Pública, como a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Assim, a licitação não apenas proclama tais princípios, como busca realizá-los em cada etapa de seu procedimento.
Nessa perspectiva, a realização de contratação de terceiros para a realização de necessidades Administrativas deve ser necessariamente precedida de licitação[17]. Dessa mesma forma afirma Lucas Rocha Furtado:
Caso a Administração Pública decida pela celebração de qualquer contrato, ela deve proceder à abertura de procedimento licitatório com vista a assegurar a todos os interessados que preencham os requisitos legais a oportunidade de apresentarem propostas e de serem escolhidos para o fornecimento de bens, prestação de serviços, execução de obras etc. Faz-se a licitação, portanto, tendo em vista a celebração do futuro contrato. Ela não se insere como atividade fim, mas como atividade meio da Administração Pública: é a licitação a atividade por meio da qual a Administração Pública escolhe a empresa com a qual celebrará o contrato.[18]
As normas gerais de licitação e contratação são de competência privativa da União, a qual aprovou a Lei nº 8.666/1993. Inicialmente, esta Lei trazia como finalidades da licitação a garantia da observância do princípio constitucional da isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
Contudo, o advento da Lei nº 12.349/2010, que resultou da Medida Provisória nº 495/2010, agregou mais uma finalidade a licitação e contratação Administrativa. A partir daí, o artigo 3º da Lei de Licitações passou a ter a seguinte redação:
A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
A nova redação dada ao artigo 3º da Lei nº 8.666 traz como cláusula geral obrigatória: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
Porém, não se pode entender tal cláusula como o motivo único e suficiente para a realização do certame licitatório, pois, a licitação é uma atividade-meio utilizada para a celebração de contrato futuro, tendo em vista o surgimento de uma necessidade da Administração. O autor Lucas Rocha Furtado chama muita atenção á esse aspecto:
Uma vez que a alteração legislativa não tenha o propósito de autorizar que a Administração realize licitações que tenham como única motivação o interesse em promover o desenvolvimento nacional, contratando inclusive algo de que não necessite, melhor seria ter-se dito que ‘a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração e para a promoção do desenvolvimento nacional’.[19]
Portanto, ao surgir uma necessidade da Administração Pública, e para supri-la utilize-se do processo de licitação, que o faça não apenas para realizar sua necessidade imediata, mas também de forma a promover o desenvolvimento nacional sustentável.
Com efeito, a nova destinação da licitação, o desenvolvimento nacional sustentável, não é um benefício extraído diretamente da licitação, mas sim da proposta dela decorrente, a qual será realizada mediante a execução do contrato. Isto posto, a atual finalidade vincula além do processo licitatório, mas também o contrato dele consequente.
O que se pode observar, portanto, é que a promoção do desenvolvimento nacional como finalidade da licitação, faz do próprio processo e do contrato instrumentos para além do atendimento de uma necessidade que motivou a abertura do certame, passando a configurar uma atividade de fomento. Dessa maneira, atende-se aos interesses imediatos da Administração e ao mesmo tempo satisfaz os interesses mediatos que norteiam a Administração Pública em geral, relacionados aos setores econômicos, sociais, e ambientais de interesse público.[20] A partir disso afirma Lucas Rocha Furtado:
Assim, do mesmo modo que a descrição do objeto incluía especificações destinadas a garantir a utilidade do bem adquirido frente à necessidade que motivou a abertura do procedimento, deverá, agora, incluir qualidade que o torne apto também a suprir essa nova necessidade. O objeto passou a conter elementos que não dizem respeito estritamente à utilidade que o bem ou o serviço prestará à Administração, mas com os efeitos que sua compra desencadeia em proveito da sociedade brasileira.[21]
Como visto no tópico antecedente, a atividade de fomento da Administração Pública é realizada pela outorga de incentivos. Estes incentivos são produzidos por previsão normativa de benefícios vinculados á adoção de determinadas condutas pelo particular. Algumas vezes, no entanto, a função de fomento é desempenhada em conjugação com outras funções estatais.
Portanto, podemos observar na Lei de licitações a aglutinação de duas funções de natureza diversa. A primeira corresponde ao fim próprio para o qual o instituto jurídico fora criado: obter uma prestação de satisfação de necessidades Administrativas. E a segunda função se faz presente com introdução da novel finalidade, ao passo que há uma preferência de contratação do particular praticante de condutas ativas ou omissivas voltas ao desenvolvimento nacional sustentável.
Assim, a celebração do contrato é o prêmio que a Administração Pública oferece ao particular que exerce sua atividade econômica mediante práticas consideradas socialmente desejáveis ao interesse público.
Segundo Daniel Ferreira, há uma finalidade adicional e extraordinária da licitação e da contratação. Esta finalidade se mostra no sentido de satisfação indireta e mediata de outros interesses também reconhecidos como relevantes para o Direito, não se confundindo com aqueles direta e imediatamente justapostos ao objeto licitado ou contratado. Com isso, a licitação e a contratação podem servir á atividade de fomento, á medida em que estimulam a adaptação voluntária da indústria, do comércio e da prestação de serviços á comportamentos que atendam aos parâmetros de satisfação do desenvolvimento nacional sustentável.[22]
Ainda segundo Daniel Ferreira: “a conscientização do ‘poder de compra’ governamental é imprescindível para que todos os entes políticos assumam que, isoladamente ou em conjunto, interferem de forma profunda na condução dos negócios privados.” [23]. Essa interferência é observada de forma muito clara, posto que segundo Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o mercado de compras governamentais corresponde, em média, a 13% do produto interno bruto (PIB) brasileiro.[24] Daí a importância desse poder de compra ser utilizado de forma a implementar políticas públicas, mesmo que indiretamente, assim como atender os direitos constitucionalmente garantidos.
É tendo em vista este grande poder de compra e a necessidade de assegurar e realizar os interesses públicos que as alterações legislativas introduzidas pela Lei nº 12.349/2010 fazem do processo licitatório um instrumento da atividade de fomento da Administração Pública.
Convém ressalta, que a alteração legislativa ora mencionada, não apenas trouxe a cláusula geral da promoção do desenvolvimento nacional sustentável, como também trouxe formas de colocá-lo em prática, trazendo, assim, aspectos concretos. Sendo assim, a Lei nº 12.349/2010 inseriu os parágrafos 5º ao 13º no artigo 3º da Lei nº 8.666/1993, instituindo, pois, as margens de preferências, que serão analisadas mais a frente.
3.2. Do desenvolvimento nacional sustentável
O desenvolvimento nacional sustentável não é apenas um princípio geral[25], mas uma cláusula geral. Em um primeiro momento, o desenvolvimento nacional sustentável está referenciado no preâmbulo da Constituição Federal de 1988. Em seguida, a Lei Maior em seu artigo 3º proclama os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, instituindo o desenvolvimento nacional no inciso II.
Ademais, alguns autores reconhecem em tal princípio o caráter de norma fundamental, e, portanto, imperativo de interpretação e aplicação das normas constitucionais e infraconstitucionais, assim como elemento para a atuação de todos os âmbitos de Poder do Estado. Assim, Manoel Messias Peixinho e Suzani Andrade Ferraro sustentam que o:
[…] direito ao desenvolvimento nacional é norma jurídica constitucional de caráter fundamental, provida de eficácia imediata e impositiva sobre todos os poderes do Estado e, nesta direção, não pode se furtar a agir de acordo com as respectivas esferas de competência, sempre na busca da implementação de ações e medidas de ordem política, jurídica ou irradiadora que almejam a consecução daquele objetivo fundamental.[26]
O desenvolvimento, para ser reconhecido, exige sustentabilidade e natureza pluridimensional. A sustentabilidade consiste no atendimento das necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades. Por outro lado, a multimensionalidade mostra o desenvolvimento como um processo de mudança estrutural e qualitativa da realidade social em suas diferentes expressões, política, social, econômica e ambiental por exemplo.
Nessa linha, o Relatório Brundtland, organizado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas conceitua desenvolvimento sustentável nas seguintes palavras:
O desenvolvimento sustentável não é um estado permanente de harmonia, mas um processo de mudança no qual a exploração dos recursos, a orientação dos investimentos, os rumos do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional estão de acordo com as necessidades atuais e futuras. (…) Assim, em última análise, o desenvolvimento sustentável depende do empenho político.[27]
A incorporação deste princípio ás finalidades da licitação faz do poder de compra da Administração Pública um grande fomentador de condutas positivas. Pois, a estimulação de condutas sustentáveis mediante a celebração de contratos com a Administração Pública coloca o processo licitatório como importante instrumento da atividade de fomento. A pergunta feita é como a licitação sustentável alcança esse objetivo:
Se a maioria dos compradores públicos optar por produtos mais sustentáveis, uma demanda maior estimulará uma oferta maior, que conduzirá por sua vez a um preço mais baixo. Aquisições públicas podem ajudar a criar um grande mercado para negócios sustentáveis, aumentando as margens de lucro dos produtores por meio de economias de escala e reduzindo seus riscos. Além disso, as autoridades públicas, atores poderosos do mercado, podem incentivar a inovação e, conseqüentemente, estimular a competição da indústria, garantindo aos produtores recompensas pelo melhor desempenho ambiental de seus produtos, por meio da demanda do mercado ou de incentivos concretos.[28]
Portanto, há efeitos surpreendentes quando as diversas autoridades públicas combinam seu pode se compra e contratação, estabelecendo critérios de sustentabilidade para a licitação. Os critérios firmados na abertura dos certames colocam o Estado como um consumidor criterioso, que exige de seus contratados um comportamento socialmente indispensável ao desenvolvimento nacional. E é o benefício advindo do cumprimento dessas exigências que influi nas atitudes dos particulares.
A Lei de licitações, contudo, não premia apenas as condutas voltadas á produção de bens ambientalmente sustentáveis, como também, abre seu mercado ás micro e pequenas empresas[29], importantes fatores de crescimento e distribuição de renda regional e local. Além disso, volta sua contratação á produtos manufaturados e serviços nacionais, e á estes quando resultados de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, os quais representam geração de emprego e renda.
3.3. Das margens de preferência
A Lei nº 12.349/2010 trouxe importantes elementos concretizadores do novel princípio. Porém, tal princípio não incide sobre o mundo real apenas por meio dos preceitos constantes nos § 4º ao13 do artigo 3º da Lei 8.666/1993.
Lembre-se que o desenvolvimento nacional sustentável figura-se como cláusula geral. Portanto, somente o seu uso rotineiro pela Administração e as técnicas interpretativas e aplicadoras do Direito é que se poderão mensurar as consequências desta nova finalidade.
As margens de preferências constituem um percentual a ser aplicado sobre o valor dos produtos, serviços, grupos de produtos ou grupos de serviços referidos nos §§ 5º e 7º. Este percentual é fixado pelo Poder executivo Federal, mediante decreto, não podendo ultrapassar vinte e cinco por cento sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros.[30]
A margem determinada no §5º incide sobre os produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas e técnicas brasileiras, e, do mesmo modo, sobre os bens e serviços produzidos ou prestados por empresas que comprovem cumprimento de reserva de cargos prevista em lei para pessoa com deficiência ou para reabilitado da Previdência Social e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação.
De outro modo, há uma margem adicional aos produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País.[31]
O índice será estabelecido com base em estudos periódicos, de prazo não superior a cinco anos, acerca da geração de emprego e renda, efeitos na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais, desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País, e custo adicional dos produtos e serviços.[32]
Como conseqüência desses preceitos é possível verificar a existências de contratações nos seguintes moldes:
A licitação poderá, então, se o edital assim estabelecer, ser processada de forma que as propostas relativas a produtos e serviços estrangeiros, se estiverem melhor colocadas,cedam lugar na ordem de classificação às propostas atinentes a produtos e serviços nacionais que tenham preço superior até o limite próprio segundo o objeto licitado.
As margens de preferências exigem um ônus adicional aos custos estritamente necessários à satisfação das necessidades da Administração Pública. No entanto, este ônus adicional não representa uma ruptura do princípio da escolha da proposta mais vantajosa, mas o dá uma nova concepção.
Isto porque deve haver uma ponderação entre os princípios norteadores da licitação e contratação. O novel princípio não permite mais apenas a escolha da proposta que traga menos custos, mas exige o atendimento de interesses indiretos e mediatos.
Com as alterações da Lei nº 12.349/2010, a eventual elevação do preço não representa transigência com a vantagem buscada pelo contratante. Mas representa um preço a ser pago pelo atendimento ás necessidades mediatas da Administração — ligadas ao desenvolvimento nacional sustentável. Dessa forma afirma Lucas Rocha Furtado:
Resta claro, então, o entendimento de que a margem de preferência permite ou implica custos nas contratações da administração pública superiores ao que ela poderia obter recorrendo à melhor proposta oferecida no certame, desde que a medida seja considerada útil ao desenvolvimento nacional.[33]
Evidencia-se ainda, que as margens de preferência permitem que o certame sofra influência decisiva, na escolha da melhor proposta, em face de fatores estranhos ás características intrínsecas do objeto licitado. Passando experimentar ingerências de interesses do §6º da Lei de licitações, tais como a geração de emprego e renda, efeito na arrecadação de tributos, desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país e custo adicional dos produtos e serviços.
Conclusão
O Estado utiliza-se da licitação como instrumento de fomento, uma vez que, propicia a cooperação voluntária dos agentes particulares no processo de desenvolvimento nacional sustentável, direcionando as formas de produção e consumo do mercado por técnicas de encorajamento.
O Poder Público usa sua posição imponente de consumidos, incluindo nos editais de suas licitações termos e critérios que conformam produtos, serviços e obras aos requisitos da sustentabilidade.
A fomentação, atividade voltada ao estímulo à cooperação voluntária e para a inserção da solidariedade no âmbito do Direito, promete um futuro de superação de modelos jurídicos protetivos-repressivos que, em razão do seu rigor, distanciam-se das finalidades sociais de mudança e inovação.
A introdução desta função na atividade licitatória, por intermédio nas novações trazidas pela Lei nº 12.349/2010, mostra essa perspectiva de usar o Direito como fator de promoção de condutas cobiçadas como socialmente relevantes ao desenvolvimento.
Em razão disso, verifica-se, pois, que a conjugação da função de fomento á função licitatória abre um leque de possibilidades de atuação estatal na busca pelos interesses públicos positivamente determinados.
Feitas tais considerações, afere-se que o debate é amplo e necessário, considerando o contexto político, social, econômico e ambiental vivido pelo País. Portanto, não se encerra aqui a discussão, mas mostra a importância desse tipo de pesquisa não só no ambiente acadêmico, mas nas diversas esferas da vida social, afinal somos todas atingidos pelas ações e omissões do Estado.
Referência
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
* Graduanda em Direito na Universidade Estadual do Maranhão. Email: Luciana.almeida45@outlook.com.
[1] BOBBIO, Norberto. Da estrutura á função. São Paulo: Manole, 2007. p. 7.
[2] Idem. p. 3.
[3] Idem. p. 15.
[4] Idem. p. 15.
[5] Idem. p. 17-21.
[6] FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 715.
[7] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 514.
[8] FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 715.
[9] Idem. p. 715.
[10] MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 58.
[11] FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 716.
[12] MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 46.
[13] FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 719.
[14] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 349.
[15] FILHO, Marçal Justen. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 721.
[16] Art. 37, XXI, Constituição Federal: “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”
[17] Assim preleciona o artigo 2º, caput, da lei 8.666/1993: “As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.”
[18] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013. p. 323.
[19] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013. p. 325.
[20] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013. p. 327.
[21] Idem.
[22]FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 35-45.
[23] Idem. p. 41.
[24] Informação disponível em: http://www.fnde.gov.br/acoes/compras-governamentais/sobre-compras-governamentais. Publicado em junho de 2017.
[25] Regra de conduta que não conta do sistema normativo, mas se encontra na consciência dos povos e é seguida universalmente.
[26] PEIXINHO, Manoel Messias; FERRARO, Suzani Andrade. Direito ao desenvolvimento como direito fundamental. In: congresso nacional do conpedi. Belo Horizonte, 16., 2007. BeloHorizonte. Anais… Belo Horizonte: Fundação Boiteux, 2007. p. 6963. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/manoel_messias_peixinho.pdf.>. Acesso em: 21 nov. 2017.
[27] Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1991
[28] BIDERMAN, Rachel, et. al. Guia de compras públicas sustentáveis: uso do poder de compra do governo para promoção do desenvolvimento sustentável. Disponível em:
<http://www.cqgp.sp.gov.br/gt_licitacoes/publicacoes/Guia-de-compras-publicas sustent%C3%A1veis.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2017.
[29] O parágrafo 14 do artigo 3º determina o seguinte: “As preferências definidas neste artigo e nas demais normas de licitação e contratos devem privilegiar o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei.” Os critérios, por sua vez, serão fixados pela Lei Complementar nº 123/2006.
[30] Presente do artigo 3º, §8º da Lei nº 8.666.
[31] Presente do artigo 3º, §7º da Lei nº 8.666.
[32] Presente do artigo 3º, §6º da Lei nº 8.666
[33] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2013. p. 412.