O Direito, como o próprio ser humano, deve conseguir conciliar em si, tendências aparentemente opostas. Sim, é verdade que, aparentemente, a vontade individual pode vir a se contrapor à solidariedade social. Mas, se no século XIX e metade do século XX, o maior valor era o individualismo e a sua liberdade, a partir da segunda metade do século passado essa mentalidade começa a mudar por força das próprias conseqüências desse modo de ver e ser na sociedade.
Sim, se é verdade que o homem na era feudal se viu totalmente desprovido de liberdade; e que, posteriormente, a burguesia buscou alcançá-la através de leis que lhe permitissem contratar da forma como melhor lhe conviesse, fazendo com que as riquezas circulassem; também é verdade que o homem vem descobrindo que ele ainda não sabe exatamente o que é liberdade, e que, não raro, a tem confundido com irresponsabilidade, ganância, egoísmo.
O ser humano vem descobrindo que ser mais inteligente, mais esperto, mais rápido na iniciativa, não significa ignorar noções básicas de altruísmo, não significa ser insensível aos problemas que afligem o seu semelhante – exatamente por ser este semelhante a ele próprio: a lei que hoje o possibilita levar vantagem sobre o outro poderá ser utilizada por alguém que se revele mais “esperto” do que ele, fazendo-o, sentir em seu próprio bolso como pode ser rápido e cruel o fenômeno da perda de seu patrimônio.
Inúmeras vezes o homem tem se escondido atrás de seu patrimônio, achando que o dinheiro é tudo, e em nome dele tudo se justifica – inclusive o sacrifício de sua própria consciência, de sua própria alma. Acredita que por ter acumulado riquezas, isso o transformou num deus, e que pode escravizar, humilhar e enganar a quem quer que seja, ou pelo menos a grande maioria dos indivíduos. Há muitos que só se sentem lucrando quando estão infligindo uma grave perda a outrem.
Ocorre que assim como, hoje, o “esperto” pode estar alegremente se aproveitando de brechas na lei, despojando outrem de tudo, até do que lhe for essencial para a sobrevivência; amanhã todo esse mecanismo pode vir a ser usado contra ele por alguém tão ou mais inescrupuloso que ele.
É assim que, a partir dos anos 20, o Estado se vê obrigado a intervir nas relações interprivadas, para tentar impedir que – em plena metrópole – impere a lei da selva, impere a lei do mais forte.
Destarte, por não ter sabido utilizar a liberdade conquistada, o indivíduo a foi perdendo, e hoje se vê novamente ameaçado por um movimento intervencionista do Estado.
Principalmente hoje, quando no mundo tem imperado a lei da força – das armas de destruição em massa, de um mais profundo conhecimento sobre as leis do mercado financeiro etc. – e não a força da lei; onde o mais armado ou o que dispõe de informações privilegiadas sobre o movimento do mercado financeiro impõe a sua vontade sobre a vontade da maioria, é que todos que se reconhecem como tão-somente seres humanos, devem lutar para que essa vontade individual (que pode ser de alguém que pensa ser deus) possa coexistir em equilíbrio com princípios como os da solidariedade e da justiça social. Pois na verdade não há porque o interesse individual ir de encontro ao da coletividade sendo que tanto um quanto outro originam-se da vontade de seres humanos e que, aceitem ou não, são seres semelhantes, passíveis dos mesmos sofrimentos e dificuldades – e igualados pela única certeza que ainda temos: a morte.
Sabemos que certas coisas ainda parecem utopia, e que muitos ainda se crêem superiores – seja no que concerne à raça, à sexo, à religião, à status social, ao nível intelectual etc. Mas o mundo vem mudando com uma celeridade espantosa, de modo que já não é o mesmo de um ano atrás. Muitas das coisas em que acreditávamos há uma década, não têm mais a menor credibilidade; e assim como assistimos horrorizados o prevalecer da força bruta no início do tão esperado terceiro milênio, temos certeza de que assistiremos a uma extraordinária guinada – desta vez para melhor – que levará o homem a saber dar valor a sua liberdade individual, a saber usá-la em seu benefício, sem jamais prejudicar seja a um indivíduo, seja a um grupo – qualquer que sejam eles.
Um dia, e não tardará, a vontade da maioria honesta e trabalhadora, que clama por paz e justiça – prevalecerá. Sim, e a força jurígena existirá apenas para produzir ou criar um Direito que seja justo; a vertiginosa velocidade das informações, a quantidade avassaladora de conhecimento disponível através da tecnologia, as experiências pessoais e coletivas farão com que as leis sejam aperfeiçoadas a ponto de impedir que a minoria egoísta e inescrupulosa transforme o mundo num inferno, num lugar onde impere a total desconfiança, num lugar inabitável.
Os valores éticos e morais hão de prevalecer, propiciando uma harmônica convergência entre os princípios clássicos – como o da autonomia individual da vontade, do pacta sunt servanda, lex inter partes – e os novos princípios – o princípio da boa-fé, o princípio da eticidade – porque se o Estado não intervier a favor do hipossuficiente, este terá seus direitos pulverizados pela ganância e egoísmo, pela total falta de ética e boa-fé por parte daquele que é mais forte econômica, social e intelectualmente.
Em verdade, a liberdade é um bem que não pode ser outorgado: a liberdade só pode ser usufruída por aqueles que a conquistam, através de um comportamento conseqüente, responsável, altruísta, solidário. O mundo, a humanidade não podem ficar sob a ameaça de ser destruído ou ser exterminada porque temos de dar liberdade a quem não está preparado para exercê-la, a quem ainda não aceita que o seu direito termina onde começa o direito do outro.
Bom seria que todos pudessem ter liberdade, mas se esta for dada a todos, indiscriminadamente, ela não chegará a ser nem ao menos vislumbrada pelos mais fracos. Assim sendo, é bom que o Estado intervenha em favor dos economicamente mais fracos, para que efetivamente chegue a eles os benefícios assegurados na CRFB/88. Porque todos nós, seres humanos que somos, devemos ter em mente que todas as riquezas do mundo só são assim consideradas porque somos nós mesmos que lhes atribuímos esses valores: desabitado fique o planeta, e o petróleo, e o ouro, e os diamantes, ou qualquer outro bem hoje supervalorizado nada mais serão além do que sempre foram desde tempos imemoriais. Na verdade nenhum bem é maior do que a vida – não só a nossa, mas de todos que formam o multidiverso ecossistema planetário, sem o qual a nossa vida ou seria de baixa qualidade ou impossível. A verdadeira riqueza não é a propriedade, ou o dinheiro, ou o petróleo, ou o ouro etc.: a verdadeira riqueza é a vida.
E sendo o Direito uma ciência do espírito, urge que desse espírito se deixe dominar para que aperfeiçoe as leis; aos operadores do Direito urge que repensem a doutrina e a jurisprudência para que, efetivamente, os benefícios dessa redirecionalização do Direito no sentido de repessoalizá-lo chegue a todos que clamam por paz e justiça.
* Lucília Lopes Silva – Formação acadêmica: Graduada em Direito pela Faculdade Cândido Mendes. Pós-graduada Lato Sensu em Direito Civil, pela ESA/OAB-RJ. Cursos de especialização na FGV Online: Direitos do Consumidor, Direitos Humanos, Direito Societário, Direito Processual Civil – Fundamentos e Teoria Geral e Atualização em Direito Processual Civil. Dados profissionais: Consultora jurídica e parecerista